Ensaio sobre a cegueira… enxadrística

O xadrez é um jogo de informação perfeita, o que significa que tudo o que os jogadores precisam para tomar suas decisões está diante de seus olhos (ao contrário de outros jogos, como o Poker). Isso não significa que seja um jogo no qual as pessoas tomem sempre as melhores decisões, pois, a rigor, ninguém é capaz de “enxergar” todos os bilhões de possibilidades de posições sobre o tabuleiro. Na verdade, todo o perdedor de qualquer partida falhou em ver tudo o que precisava, senão conseguiria pelo menos empatar.
 
Ultimamente, com a chegada do AlphaZero, a definição de cegueira enxadrística precisa ser atualizada, pois a máquina “vê” tanta coisa que até os melhores humanos podem ser considerados cegos.
 
Por exemplo, no recente match Ca x Ca (Carlsen x Caruana), a sexta partida acabou num final muito interessante no qual o desafiante (com peças pretas) tinha bispo, cavalo e peão contra bispo e peão do campeão, mas que acabou em empate. Num dado momento, o computador, profundo e frio, viu xeque-mate para as pretas em 30 jogadas! Nesse nível, todos estavam cegos, até os dois jogadores mesmo depois de ver a jogada da máquina não percebiam o desfecho fatal.
 
Mas a cegueira que mais nos impressiona é a cegueira ao óbvio, coisa que até o mais neófito dos enxadristas seria capaz de ver.
 
Em 1953, jogava-se o famoso Torneio de Candidatos de Zürich, que deve sua fama aos excelentes livros escritos sobre ele e às polêmicas envolvendo a política soviética e a competição enxadrística. Na 19ª rodada do evento (que teve um total de 30!) enfrentavam-se o húngaro Szabo (que estava entre os últimos colocados) e o norte-americano Reshevsky (que tinha boas chances de vencer o certame).
 
Szabo tinha as peças brancas e jogou um xadrez bem dinâmico e, ao ponderar seu 21° lance, mirava a seguinte posição:

Szabo, L. × Reshevsky. S (Zürich, 1953), posição após 20.… ×f6


A maioria dos jogadores que costumam praticar e estudar xadrez perceberá que há acima uma situação de xeque-mate em 2 jogadas para as brancas, começando com 21.×g6! ♗g7 22.×g7# ou 21. …♔h8 22.♗×f6#. Szabo, que tinha muito tempo disponível em seu relógio para pensar, jogou rapidamente 21.♗×f6?? arruinando a vitória imediata.

Vejamos o que os grandes cronistas (e participantes) do torneio falaram sobre este erro:
 
“Seguramente contagiado pelo angustiante apuro de tempo de seu adversário, o grande mestre húngaro retoma a peça, quando tinha mais tempo que suficiente para ver o simples mate em duas jogadas” (Najdorf)
 
“Um caso único em muitos anos de torneios: nenhum dos grandes mestres vê 21.×g6! g7 22.×g7#” (Bronstein)
 
A audiência, que seguia a partida em tabuleiro mural, reagiu com tamanha surpresa que seus ruídos chegaram aos ouvidos de Szabo que logo percebeu a oportunidade perdida. Mais adiante, voltou a errar numa posição ainda vantajosa, e acabou por propor empate mesmo em posição ainda ligeiramente melhor para ele. Segundo Najdorf, naquela altura para Szabo “era mais difícil solucionar os problemas de seus nervos que os problemas do tabuleiro”.
 
Afetado pelo erro, Szabo só voltou a vencer alguma partida naquele evento após 9 rodadas!

2 comentários em “Ensaio sobre a cegueira… enxadrística”

  1. Como sempre, Rewbenio nos brinda com seus bons conteúdos.

    Não sei, mas creio que a pressa do mundo moderno tem levado a situações como esta: a cegueira ao óbvio.
    Mas o tempo há de mostrar o caminho, precisamos aprender a escutar e a pensar.

    Como disse Guimarães Rosa: "Calma. É só aos poucos que o escuro fica clara".

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