Quando a partida termina (*)

Foto de Maarten van den Heuvel obtida em Unsplash.com

“Não sabem que a mão assinalada
do jogador governa seu destino,
não sabem que um rigor adamantino
sujeita seu arbítrio e sua jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(a máxima é de Omar) de um tabuleiro
de negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que deus detrás de Deus o ardil começa
de pó e tempo e sonho e agonias?”

(Jorge Luis Borges, Xadrez)
No fim da partida, enquanto apertam as mãos, os jogadores ainda discutem algumas variantes que não aconteceram sobre o tabuleiro, prometem um novo confronto em breve e terminam por se despedir. O dono das peças cuidadosamente as coloca na caixa, após a obrigatória contagem. Havia sido uma partida longa, as peças tinham feito inúmeros movimentos e manobras, o descanso era mais que merecido.
– Achava que o xeque-mate não ia chegar nunca. O meu jogador poderia ter vencido cinco jogadas antes, mas não viu. Depois da segunda hora de partida ele não estava enxergando mais nada!
– Ganha e ainda reclama… Pensa que é fácil permanecer de pé, parado, sabendo que o fim é inevitável? Ah, não é! Eu não via a hora de acabar logo aquele sofrimento e voltar aqui para relaxar.
– Sei como é, semana passada aconteceu comigo. Não pense que não vi que você estava segurando o riso, porque meu jogador deixou a oitava fila descoberta.
– Por favor, abram espaço para o artilheiro da noite.
– Ah, eu sabia, lá vem você se gabar do xeque-mate. Tudo bem, aproveite seu momento, sua vitória, afinal é tão difícil ver um jogador te usar para arrematar uma partida!
– Pode até ser raro, mas é lindo! Quem mais pode dar o mate afogado, quem!? O cavaleiro, claro!


– Lá vem você de novo com essa história de cavaleiro, eu só vejo um cavalo.
– Não tenho culpa se as pessoas têm preguiça de esculpir a peça inteira, fazem a montaria mas esquecem que sobre o garanhão está um Sir!
Os companheiros de lida começaram a rir, no meio da aparente bagunça da caixa, não havia ali um exército fortemente hierarquizado, tampouco bandos opostos, mas amigos de longa data que comentavam suas batalhas com entusiasmo e bom humor.
– Não reclama de barriga cheia, ô pangaré, pior sou eu, um arqueiro nato, ter que usar essa roupa de sacerdote. Bom mesmo era nos tempos dos elefantes, quando eu ficava sobre eles mandando flechas para todo lado.
– Flechas? São muito fraquinhas, só arranham. Os jogadores preferem minhas catapultas, lançadas do alto, com longo alcance nas quatro direções.
Não se pode criticá-los, são combatentes antigos, cheios de intimidade. Que graça teria se não pudessem sequer brincar uns com os outros, ainda que por um momento parecesse rixa de crianças. Sabiam que um não existiria sem o outro, se qualquer um deles se perdesse, nunca mais poderiam batalhar juntos.
A elegante senhora logo tomou a palavra para acalmar os rapazes que ainda discutiam qual munição era mais eficiente.
– Vocês são tão bobos, não veem que eu, que lanço flechas e catapulto bombas não posso abrir mão de nenhuma delas? O importante é cada um fazer sua parte no momento certo, nem uma jogada antes, nem uma jogada depois.
A multidão de soldados logo aplaudiu aquela que para eles era um ídolo, por seu enorme poder e velocidade. Durante as partidas, alguns chegavam a poder jogar como ela, ou ainda como outros companheiros, a depender da opção do jogador. Um deles estava um pouco contrariado.
– Hoje meu jogador me promoveu a cavaleiro, ainda não entendi, poderia ter ficado com duas senhoras, mas não quis.
– Calma amiguinho, disse um dos cavaleiros, veja que vantagem que vocês têm! Ainda não percebeu? Todos nós somos condenados a fazer sempre as mesmas coisas nas partidas, secretamente todos invejamos vocês, que podem assumir diferentes papeis, e a cada embate sentem o gostinho de ter outros poderes e viver outras emoções.
– Isso é verdade, a gente precisa se esforçar muito, mas quando conseguimos chegar ao final do tabuleiro, o direito à promoção compensa os riscos e a longa caminhada.
Um arqueiro estava pensativo depois de ouvir a singular situação do soldado, e perguntou com uma ponta de mágoa:
– Não sei porque quase nenhum de vocês é promovido a arqueiro. Seria tão fantástico ver dez de nós lutando juntos!
– Desculpe, não nos cabe responder a essa questão, mas aos jogadores!
Os demais riram. Ninguém fazia ideia se a reclamação do arqueiro era justa, mas a resposta do soldado foi engraçada de qualquer jeito.
Chegou o sono que levou cada uma das peças dentro da caixa a seu próprio tabuleiro onírico. Alguns sonhavam com os antepassados, elefantes, barcos, carruagens, vizires. Outros sonhavam com batalhas recentes. Uma delas sonhou ser um jogador, mas foi um sonho inquieto, pois por mais que procurasse, jamais encontrava uma peça que faltava para completar o tabuleiro e iniciar a partida…
Uma grande claridade encerrou o sonho.
Antes que notassem, já estavam novamente perfiladas para batalha. Em cada lado do tabuleiro, os jogadores estavam em grave concentração. A peça que há pouco sonhava ser um jogador olhou longamente para eles e compreendeu: assim como elas, os jogadores eram indispensáveis às partidas, apesar de não compartilharem da mesma caixa, eles não existiam senão pelo jogo; de certa forma, eram peças também.
Só lhe restava uma dúvida: “O que faziam depois que a partida termina?”
(*) O autor publicou uma primeira versão deste texto no Blog Reino de Caíssa.

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