Imaginem um menino que, das 64 casas, só conhecia o jogo de Damas. Um belo dia, esse garoto, passando pela alameda de sua escola, percebe umas figuras diferentes sobre o tabuleiro tão conhecido e desprezado. Foi uma surpresa e tanto.
Eram muitas as novas “pedras” que se moviam de forma um tanto misteriosa naquele primeiro encontro. Só reconhecia ali o cavalo, que, vira e mexe, aparecia em alguma alegoria na televisão.
Ao chegar em casa, depois da aula, no tempo em que era possível uma TV sintonizar somente seis canais e uma casa ter, quando muito, somente um aparelho fixo de telefone, o menino não conseguia se distrair de sua nova obsessão.
Mais tarde, quando sua mãe também chegou, cansada do trabalho, ele não a largou enquanto não a convenceu de comprar-lhe um jogo de, já sabia como se chamava, xadrez.
– E você sabe jogar isso, menino? Aqui em casa ninguém joga isso.
– Não mãe, mas vou aprender.
Foi como um novo mundo, desvelado assim, em códigos, nos movimentos de seis diferentes figuras, peças, nunca mais “pedras”. Era um Colombo juvenil, redescobrindo pela primeira vez, os encantos que seduziram tantos antes dele.
Não tardou para ser tomado da sede de saber. E lhe foi dito:
– Arranje um “Xadrez Básico”, leia-o de cabo a rabo, e aprenderás a jogar.
Ganhou da mãe um livro de aspecto diferente, grosso e estreito, de capa vermelha, com um belo desenho de peças que se refletiam alternando suas cores. Com cuidado foi folheando o livro, lendo pela primeira vez na vida sobre a existência de jogadores lendários, como Phillidor, Andersen, Morphy, Steinitz, Lasker, Capablanca e tantos outros. Ficava horas decifrando o démodé sistema descritivo que registrava as partidas magistrais no livro.
O autor do livro ostentava dois títulos que impressionavam: Doutor (médico) e Mestre Nacional de Xadrez.
Muitos anos depois, sem ter lido todo o seu ‘Xadrez Básico’ (e, talvez por isso, não jogasse tão bem), o menino cresceu, tornou-se homem e enxadrista, mas nunca mais ouviu falar de outro Mestre Nacional de Xadrez no Brasil. Ouviu, sim, falar dos nossos Mestres e Grandes Mestres Internacionais, mas jamais outro Mestre Nacional.
O livro foi escrito no ano de 1954, apenas dois anos antes o Brasil havia tido seu primeiro Mestre Internacional de Xadrez, Eugênio German, e somente teria um Grande Mestre vinte anos depois (Henrique Mecking). Era uma época em que se valorizava o título nacional de mestre.
Por algum motivo esse título foi esquecido, caiu em desuso no Brasil. O menino, agora homem, olhava seu ‘Xadrez Básico’ de soslaio, pensando: “será que o último mestre nacional vai ser mesmo o Dr. Orfeu D’Agostoni?”.
Uma geração de mestres de verdade passou sem reconhecimento. O xadrez é um jogo difícil e duro com seus profissionais, muitos talentosos mestres não conseguiram alcançar a esfera internacional, mas no Brasil eram jogadores respeitados, só que sem título algum.
Aliás, no xadrez, em suma, só há dois títulos: ou você é mestre, ou você é carinhosamente apelidado de ‘capivara’. É muita injustiça deixar tanto jogador forte no rol dos capivaras, não é?
É não, era injustiça, pois a nossa Confederação Brasileira de Xadrez acaba de ressuscitar o título de Mestre Nacional. Se você tem ou já teve uma pontuação de pelo menos 2200 no rating CBX ou FIDE, seu título está garantido.
Certamente, muitos dos novos mestres titulados lembrarão emocionados que foi no livro volumoso, de capa vermelha, que deram seus primeiros passos rumo à maestria no xadrez! Dr. Orfeu não foi o último, mas o patrono duma legião de mestres nacionais, agora justamente reconhecidos.
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