O engenheiro e a borboleta

Pode-se fugir do próprio destino? Um menino dividido entre duas paixões acaba escolhendo a certeza dos cálculos, mas, talvez inconscientemente, sua outra paixão jamais esteve longe o suficiente. Ao contrário, esteve até perto demais…

Ainda menino, ele se interessou pela concisão dos números, pela lógica das operações matemáticas, pela simetria. Ao mesmo tempo, era fascinado pelo movimento de peças articuladas, de elementos que se encaixavam e formavam um objeto maior, com funcionalidades diversas e maravilhosas.

A vida no interior facilitava a observação da natureza, o convívio com plantas e animais. Começou a criar forte interesse num tipo de inseto comum de se ver, as borboletas. Talvez por serem pequenas “máquinas” voadoras com perfeita simetria, economia de formas, pelas belas padronagens nas asas, um ciclo de vida intrigante, aqueles simples insetos ganharam lugar em sua vida.

Desde que se conhecia por gente, então, ele equilibrava seus dias entre o estudo da matemática, o desenho de engenhocas e sua pesquisa particular sobre os lepidópteros. Esta última parecia ser sua maior paixão.

Por forte influência familiar, resolveu cursar engenharia mecânica, em vez de ciências biológicas; afinal de contas, tinha grande afinidade com a engenharia, e quanto às borboletas… bem, jamais precisaria afastar-se de sua paixão por elas.

Ele cursou a universidade, formando-se com louvor, estagiando numa grande empresa que fabricava máquinas enormes. Durante o curso, leu o que podia sobre borboletas, participava de expedições para caçá-las e só viajava para cidades que tivessem borboletários.

Nunca se casou. Uma vida era muito curta para a engenharia e, especialmente, para as borboletas.

Seu espírito minucioso, detalhista, e seu amor pela simplicidade e eficiência, fizeram dele um grande engenheiro. Projetou e liderou a construção de máquinas maravilhosas. Foi pioneiro na criação de máquinas que constroem outras máquinas. O fascínio daquele ofício era o de combinar peças simples até formar artefatos complexos. Faltasse somente um daqueles elementos básicos, uma engrenagem, um pino, e a máquina não funcionaria.

Tinha hábitos eficientes, imutáveis. Era o primeiro a chegar à fábrica, mas não ficava um minuto sequer além do horário. Dentro dos galpões, onde o ritmado som metálico mantinham sua ativa mente concentrada na produção, ele só pensava em suas máquinas. Porém, ao colocar o pé na calçada, ávido pelas poucas horas de luz que ainda havia, o maravilhoso mundo entomológico tomava conta de suas sinapses, de seus sentidos. No bolso do casaco, sempre trazia uma caderneta para suas anotações sobre as queridas borboletas.

É verdade que, com o passar dos anos, seu estudo no campo dos insetos foi ficando muito mais teórico que prático, na grande cidade não tinha muita chance de vê-las, era difícil afastar-se muitos dias da fábrica (que não parava jamais), tamanha era a importância de sua presença para o bom andamento da produção.

Liderava a linha de montagem como se fosse um experimento biológico, que não podia ser exposto à contaminação. Tudo precisava estar limpo, regulado, em ordem. Ele pensou tudo para que, aos poucos, não precisasse haver mais ninguém ali, só ele e suas máquinas. Cada equipamento enchia o engenheiro de orgulho, pois eram todos fruto do seu pensamento. O mais simples e grosseiro deles, porém, era o mais importante: a gigantesca prensa, onde o metal era moldado conforme seus minuciosos cálculos. Por capricho, havia sido projetada como duas asas de borboleta, que se fecham uma sobre a outra. Seu movimento era lento até meio curso, depois se fechava rápido, aplicando uma força tremenda. Ela era toda pintada de azul.

Numa sexta-feira, no final do dia, o engenheiro apanhou seu casaco e foi andando pela fábrica. Verificou os ajustes para a produção noturna, foi até próximo da grande prensa que trabalhava com precisão. Vestiu o casaco e colocou a mão dentro do bolso, à procura de sua caderneta. Ao retirar a mão, não percebeu a queda dum parafuso, que ele havia substituído duma máquina e havia esquecido naquele bolso.

No caminho para casa, folheando a caderneta, foi recordando os desenhos e anotações sobre uma espécie da qual gostava muito, uma borboleta azul, que ele só conhecia por livros, já que não era comum na sua região e não tivera a sorte de ver em todas as suas viagens. Talvez, pensou, já fosse tempo de se aposentar das máquinas e seguir sua velha paixão integralmente.

Naquela noite, teve um sonho. Um menino corria por um campo relvado, com uma puçá nas mãos, buscava capturar uma borboleta azul que se afastava dele somente o suficiente para não desvanecer seu ímpeto. Quando a rede da puçá tocou a asa do inseto, ele despertou. Já era dia claro, e ele resolveu levantar e ver como estava a produção.

Ao se encaminhar para a fábrica, porém, o engenheiro pensava no sonho que havia tido. Seu possível significado ainda o intrigava, e ele não notou, atrás de si, uma nuvem de borboletas que se aproximava, um panapaná.

O som das minúsculas asas em movimento trouxe o engenheiro de volta à realidade quando a nuvem já passava por ele. Uma multidão de borboletas alaranjadas, no meio delas, o engenheiro viu uma única azul.

Ele se apressou, acompanhando com dificuldade o dinâmico movimento dos insetos, mas percebeu quando a borboleta azul entrou por um dos janelões da fábrica.

Ainda mais apressado, ele entrou no lugar sem sequer se dar conta do firme som do maquinário, cíclico como um relógio. Ao fundo, tal como um bumbo, a grande prensa marcava a cadência. Ele só via a borboleta que se arriscava entre engrenagens, hastes, compensadores, e voava em direção à prensa.

Correu, na tentativa de que seu pesado corpo alcançasse o outro, levíssimo, que voava. A borboleta pousou sobre a prensa, que iniciava seu processo de fechamento. O engenheiro resfolegava na tentativa de alcançar não mais a borboleta, mas o botão de emergência, para parar as máquinas. A prensa fechava lentamente, a borboleta imóvel, como se aguardasse por ele. A poucos passos, já quase tocando o botão, o engenheiro escorregou, ao pisar o parafuso, que não devia estar ali.

Durante a queda, a mão do engenheiro se afastou do botão, enquanto seu corpo foi atraído para a borboleta, como sua alma havia sido atraída a vida toda. Quando ele caiu sobre a prensa, a borboleta voou.

Pouco antes do impacto das grandes asas metálicas, os olhos ainda seguindo o voo do pequeno inseto, ele atentou de repente ao som da produção que fechava mais um ciclo, a borboleta saia pelo janelão, ele ainda pensou: o sonho agora faz todo o sentido.

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O Jogo da Criação


Algumas vezes, nas Esferas Celestes, havia tanta, mas tanta paz, que Deus se sentia entediado. Os anjos tentavam de tudo: canto, exibições de circo, balé, etc, mas era difícil remover o Criador de seu tédio.


Foi, então, que surgiram os jogos, invenção dos anjos, para tentar dar alguma distração ao seu Mestre.

A princípio, Deus gostou da novidade e experimentou todos os jogos que apareceram, tendo por adversários os próprios querubins. Primeiro foi um jogo de palitinhos, cujo objetivo era adivinhar quantos deles havia na mão de cada jogador. Ora, sendo Deus tão mais esperto que seus anjos, e ainda onisciente, esse jogo rapidamente perdeu a graça.

Tentaram jogos com dados, explicando ao Criador que eram instrumentos capazes de incluir incerteza nos resultados, o que era bastante útil quando se tratava de jogar contra a própria onisciência. Acontece que Deus, ao contrário da crença comum, jogava dados muito bem e conseguia sempre tirar os números que desejasse. Portanto, nada de incerto havia para ele, apenas para seus menos hábeis adversários angelicais. O mesmo aconteceu quando passaram ao carteado, apesar de que neste caso, o Criador precisou usar das artimanhas do blefe para vencer algumas partidas em que se distraiu no trato com as cartas.

Essa miríade de jogos fatalmente chegou a um jogo de tabuleiro, com peças redondas, chamado de jogo de Damas. Excelente matemático que é, Deus logo percebeu que era um jogo com muitas possibilidades, mas, para Ele, não era grande coisa: apenas meio sextilhão de posições possíveis. Ainda assim, por vezes, o jogo foi capaz de distraí-lo. O problema é que, por natureza, os anjos não sentiam vontade alguma de vencer seu Criador. Isso, além da infinita capacidade divina, tornava impossível para Deus ser derrotado. E ganhar sempre, até para o Onipotente, enjoa.

Foi quando chegou o Anjo Caído, com um tabuleiro como o de Damas, porém as figuras que se moviam sobre ele eram bastante diversas, assim como os movimentos de cada uma. Rapidamente, Deus calculou que se tratava de um jogo com mais possibilidades que átomos no universo, e talvez trouxesse algum desafio. Além disso, por ser um dissidente, Deus sabia que aquele antigo anjo seria muito mais combativo. Tratava-se do Jogo das Seis Aflições, depois conhecido como Xadrez.

Jogaram a primeira partida. Deus tinha as peças brancas, e começou com o peão do rei. O Anjo da Discórdia tentou respostas simétricas, sem saber que, a cada lance, a vantagem continuava com o Criador. Por fim, uma combinação fatal de sete movimentos surgiu: seis sacrifícios seguidos de peças e um mate com o cavalo, a única peça que restava para o condutor das figuras brancas.

Insatisfeito, o ex-anjo solicitou revanche, com troca de cores, e começou a segunda partida com o peão da dama. As peças moviam-se tão rapidamente que apenas os dois jogadores conseguiam entender o que se passava. A plateia angelical mantinha silêncio e, mal eles tentavam entender uma jogada, já outra era feita no tabuleiro. Quando restavam apenas poucas peças, Deus tinha um peão de vantagem, Lúcifer jogou seu cavalo na quinta casa do bispo do rei, xeque! Os anjos empalideceram, o rei do Rei estava em perigo, mas uma defesa hábil anulou as ameaças, e a vitória veio logo depois, quando o peão a mais chegou aos confins do tabuleiro e se tornou uma dama.

O anjo caído não podia mais disfarçar sua ira, duas derrotas seguidas era algo que nunca lhe acontecera. Como Deus recusasse uma nova partida, uma ideia macabra começou a formar-se na mente do Grande Tentador.

— Senhor, fui tolo em achar que seria páreo para tua infinita sabedoria. E sou indigno de uma nova tentativa, na qual certamente eu sairia derrotado mais uma vez.
Deus ouviu o falso bajulador com indiferença, mas apenas até as palavras seguintes, que Lhe causaram um estranho interesse.

— É claro, Grandioso Criador, que seria diferente se não fosses Tu o meu adversário direto, se Tu fosses apenas um Ser inspirador, mas que não fossem tuas as decisões das jogadas sobre o tabuleiro.

— O que estás a insinuar, Lúcifer?

— Apenas deixa que eu jogue contra peças vivas, de próprio e livre arbítrio, que apenas sejam inspiradas por tua Vontade, mas que seja delas a decisão final.

— Somente os anjos são parte viva de minha Criação, e mesmo um deles conseguiu me descontentar. Por que Eu daria vida a outros seres, meras peças num jogo tolo?

— Será que duvidas, ó Grandioso, que tua simples inspiração sobre as figuras não é suficiente para me vencer nesse jogo?

Vis palavras, porém certeiras.

Como muito tempo depois viria a repetir-se, num episódio envolvendo um certo Jó, o desafio do malfeitor foi aceito. Deus soprou sobre o tabuleiro, que num grande novo mundo se tornou. As figuras, tomaram vida, e logo perceberam que eram donas do supremo dom da vontade. O primeiro movimento foi do grande tentador, e teve algo a ver com um fruto proibido.

Assim, à guisa de entretenimento divino, começou a história dos homens. Condenados a viver num jogo entre as forças do mal e do bem. Numa disputa que parece infinita.

Porém, como séculos para os homens são apenas segundos para o Criador, é bem capaz que a partida já se tenha encerrado lá nos hiperplanos celestiais. Mas, para nós, meros peões animados, o resultado permanecerá um mistério até o final.


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