Encontro com o decano do xadrez do Ceará

Coronel Carlos Alberto Ferreira, 97 anos de idade, decano do xadrez cearense!
Não sei se acontece com todos, mas quando eu leio os livros de xadrez dos grandes mestres do passado, parece que eles estão ao meu lado, contando suas histórias vividas numa época áurea do xadrez. Lamento que, de fato, eu não os tenha conhecido; nomes como Bronstein, Najdorf, Kotov, Averbakh… para falar somente daqueles cujos livros eu gosto mais.

Há poucos ainda no mundo que foram contemporâneos desses homens, que leram suas palavras quando a tinta ainda estava fresca no papel, que conheceram alguns deles pessoalmente. Há muito poucos no mundo, mas quantas dessas testemunhas oculares estão próximas de nós?

Será que quietos em sua casa, lendo e jogando xadrez, não existem veneráveis senhores ou senhoras que compartilharam este mundo com grandes jogadores, não necessariamente no mesmo espaço físico, mas ainda assim próximos dos eventos que hoje são somente histórias em livros.

Tive a honra de visitar pela segunda vez uma pessoa assim!

O coronel Carlos Ferreira (apenas Cel Ferreira nos tempos da ativa) é, com certeza, o decano do xadrez cearense (talvez até do Brasil), ainda que muitos dos enxadristas atuais do estado não o conheçam! Ele é uma testemunha das glórias do xadrez desse estado de enorme tradição no jogo (algo que hoje não se fala e divulga da maneira que deveria ser divulgado). Aos 97 anos, com uma lucidez e agilidade mental que demonstram o bem que faz o xadrez! Ele continua professando aos quatro cantos seu amor ao jogo, que pratica desde muito tenra idade!

Nosso decano demonstra grande combatividade no tabuleiro! Cheguei para uma conversa, mas fui desafiado para duas partidas!

Posição final de uma das partidas (Ferreira x Frota, 1/2-1/2)
O Cel Ferreira foi aluno da Escola Preparatória de Fortaleza (que funcionou entre 1942 e 1961 no prédio do atual CMF em Fortaleza-CE), oficial de carreira do Exército Brasileiro, vice-presidente da CBX, organizador do V Zonal Sulamericano de Xadrez (realizado em Fortaleza no ano de 1963), diretor do DETRAN-CE na década de 1960, além de ter atuado na indústria de pesca do Ceará nos anos 1970 e no SENAI nos anos 1980. No xadrez, continua forte jogador até hoje (como comprovei).
Além das partidas, ouvi histórias sobre o mestre Ronald Câmara (cearense, mestre nacional e bi-campeão brasileiro de xadrez) e sobre o também coronel Francisco Alves dos Santos, ou simplesmente Chico Alves (cearense, vice-campeão brasileiro de 1961 e membro da equipe brasileira na Olimpíada de Xadrez de 1972, realizada em Skopje, Alemanha). Ouvi sobre seu contato com nomes importantes como os grandes mestres Eliskases e Mecking.

Na memória do Cel Ferreira, está firme um tempo em que os segredos do xadrez estavam quase inacessíveis, sobretudo por trás da Cortina de Ferro. Contou que certa vez afastou-se do Ceará para residir em Recife, em virtude de sua posição como oficial das Forças Armadas, deixando alguns colegas de mesma força enxadrística que ele. Só que nesse intervalo de alguns anos, chegaram à Fortaleza alguns exemplares da famosa revista soviética de xadrez 64 que foram traduzidos e minuciosamente estudados pelos colegas do coronel. Quando ele voltou, uma surpresa: seus antigos rivais de mesma força eram agora quase invencíveis!

Perguntei: “Coronel, quem é o número 1 de todos os tempos?”. Ele falou sem titubear: “Fischer”! “E quanto a Kasparov?”. “Este fica em segundo”. Mas não pensem que ele ficou preso ao passado, regularmente acompanha partidas dos garotos de hoje, Carlsen e companhia.

O tempo foi curto para ouvir as histórias e jogar as partidas que ambos desejávamos, mas outras visitas virão!

Aproveitando o ensejo, ofertei ao Cel Ferreira um exemplar (único impresso) do meu ebook Xadrez Fascinante, não para concorrer com os clássicos de sua seleta biblioteca de xadrez, mas como singela contribuição de um conterrâneo que também ama esse jogo.

Já deixei a promessa de retornar, jogar mais um pouco, ouvir outras histórias e, quem sabe, poder ofertar o segundo volume do ‘Xadrez Fascinante’, ainda em elaboração.

Compartilhe: bit.ly/DecanoCeara

Ensaio sobre a cegueira… enxadrística

O xadrez é um jogo de informação perfeita, o que significa que tudo o que os jogadores precisam para tomar suas decisões está diante de seus olhos (ao contrário de outros jogos, como o Poker). Isso não significa que seja um jogo no qual as pessoas tomem sempre as melhores decisões, pois, a rigor, ninguém é capaz de “enxergar” todos os bilhões de possibilidades de posições sobre o tabuleiro. Na verdade, todo o perdedor de qualquer partida falhou em ver tudo o que precisava, senão conseguiria pelo menos empatar.
 
Ultimamente, com a chegada do AlphaZero, a definição de cegueira enxadrística precisa ser atualizada, pois a máquina “vê” tanta coisa que até os melhores humanos podem ser considerados cegos.
 
Por exemplo, no recente match Ca x Ca (Carlsen x Caruana), a sexta partida acabou num final muito interessante no qual o desafiante (com peças pretas) tinha bispo, cavalo e peão contra bispo e peão do campeão, mas que acabou em empate. Num dado momento, o computador, profundo e frio, viu xeque-mate para as pretas em 30 jogadas! Nesse nível, todos estavam cegos, até os dois jogadores mesmo depois de ver a jogada da máquina não percebiam o desfecho fatal.
 
Mas a cegueira que mais nos impressiona é a cegueira ao óbvio, coisa que até o mais neófito dos enxadristas seria capaz de ver.
 
Em 1953, jogava-se o famoso Torneio de Candidatos de Zürich, que deve sua fama aos excelentes livros escritos sobre ele e às polêmicas envolvendo a política soviética e a competição enxadrística. Na 19ª rodada do evento (que teve um total de 30!) enfrentavam-se o húngaro Szabo (que estava entre os últimos colocados) e o norte-americano Reshevsky (que tinha boas chances de vencer o certame).
 
Szabo tinha as peças brancas e jogou um xadrez bem dinâmico e, ao ponderar seu 21° lance, mirava a seguinte posição:

Szabo, L. × Reshevsky. S (Zürich, 1953), posição após 20.… ×f6


A maioria dos jogadores que costumam praticar e estudar xadrez perceberá que há acima uma situação de xeque-mate em 2 jogadas para as brancas, começando com 21.×g6! ♗g7 22.×g7# ou 21. …♔h8 22.♗×f6#. Szabo, que tinha muito tempo disponível em seu relógio para pensar, jogou rapidamente 21.♗×f6?? arruinando a vitória imediata.

Vejamos o que os grandes cronistas (e participantes) do torneio falaram sobre este erro:
 
“Seguramente contagiado pelo angustiante apuro de tempo de seu adversário, o grande mestre húngaro retoma a peça, quando tinha mais tempo que suficiente para ver o simples mate em duas jogadas” (Najdorf)
 
“Um caso único em muitos anos de torneios: nenhum dos grandes mestres vê 21.×g6! g7 22.×g7#” (Bronstein)
 
A audiência, que seguia a partida em tabuleiro mural, reagiu com tamanha surpresa que seus ruídos chegaram aos ouvidos de Szabo que logo percebeu a oportunidade perdida. Mais adiante, voltou a errar numa posição ainda vantajosa, e acabou por propor empate mesmo em posição ainda ligeiramente melhor para ele. Segundo Najdorf, naquela altura para Szabo “era mais difícil solucionar os problemas de seus nervos que os problemas do tabuleiro”.
 
Afetado pelo erro, Szabo só voltou a vencer alguma partida naquele evento após 9 rodadas!

Xadrez: uma beleza até de ponta cabeça!*

Num dia comum, como qualquer outro, vejo um problema de xadrez no Twitter, penso por alguns instantes ate achar que resolvi. A beleza da combinação chega até a me arrancar um sorriso.

Apressei-me para enviar para outros amigos do jogo pelas redes sociais.

Brancas jogam e dão mate em 3 jogadas.

Enviei assim, sem as coordenadas do tabuleiro e logo apareceram comentários com mais de uma solução: uma supondo que os peões pretos se movem para cima; outra supondo que os peões pretos se movem para baixo no tabuleiro.

Seria possível o xadrez ser tão mágico assim? Não seria engano de alguns colegas?

A posição original, com as coordenadas corretas, deveria ser a seguinte:

Diagrama com coordenadas (lado das brancas).

E a solução para o problema original é: 1.♔f3! g1=♕ (se, por exemplo, 1. … g1=♘+ 2.♔f2 3.♘f3 3.♗×f3#) 2.♘f2+ ♕×f2+ 3.♔×f2#. As promoções do peão em g1 a bispo ou torre também levam a desfechos similares.

A posição que foi interpretada por outros é a seguinte (girando o tabuleiro 180º, sem mudar as coordenadas originais):

Brancas jogam e dão mate em 3 jogadas

E o que surpreendeu a todos é que, realmente, apesar da radical mudança na posição, o problema de mate em 3 é mantido! A solução é muito elegante: 1.♗c6! b×c6 (única) 2.♔c8 c5 (única) 3.♘c7#.

O fato não passou despercebido, e muitos interpretaram a coincidência como prova do manancial infinito de belezas que é o xadrez.

Seria possível criar outros problemas “irmãos” desses acima variando a colocação do bispo (entre b7 e e4 no primeiro caso; entre g2 e d5 no segundo caso), mas outras variações não seriam tão felizes em manter a simetria. Por exemplo, mudando-se o rei para e1 no primeiro caso, o problema passa a mate em 4, mas no segundo caso, a mudança do rei para e8 ainda permite mate em 3 (vale a pena verificar).

Naquele dia foram muitos os devotos de Caíssa que dormiram encantados, alguns que estavam há meses sem tocar em seus livros de problemas ousaram dar uma olhada, outros jogaram partidas para extravasar a adrenalina enxadrística.

Quanto a mim?

Eu fiquei pensando neste texto, tinha que escrever e publicar! Quem sabe não acontece de alguém ler, de se encantar também, e de o mundo ganhar mais um enxadrista?

♚♕♝♘♜♙

*Uma primeira versão deste texto apareceu previamente no blog parceiro Reino de Caíssa.

Aprendendo com os campeões

A cada campeonato mundial, Isaías sente renovar-se um pouco a velha chama enxadrística que por tantos anos esteve presente em sua vida, aquecendo sonhos e planos, apesar de sua paixão pelo jogo nem sempre ser correspondida.

O mundial deste ano até lembrava nostalgicamente os embates lendários entre Kasparov e Karpov (K × K), não somente porque voltavam a se enfrentar os dois melhores enxadristas do planeta, mas também por causa das iniciais: Ca × Ca.

Isaías seguiu todas as partidas pela internet, em especial a 12ª, que poderia definir o confronto. O melhor era acompanhar as análises dos grandes mestres online, pois sempre aparecia alguma ideia nova, alguma dica que, embora ele quase não jogasse mais com tanta frequência, poderia ser útil algum dia.

Num desses vídeos, o grande mestre Yasser Seirawan comentou algo sobre uma armadilha de abertura na 12ª partida (uma Siciliana) na qual as pretas poderiam acabar num interessante xeque-mate “afogado” caso jogassem sem bastante cuidado.

Impressionante como tem coisas ocultas no tabuleiro, mesmo nas primeiras jogadas! Claro que o Campeão Mundial jamais cairia naquilo, mas Isaías pensou que algum jogador menos talentoso que Carlsen poderia muito bem se tornar uma vítima naquela situação. Só havia uma dificuldade: Isaías não jogava peão do rei e seria improvável enfrentar aquela variante da Defesa Siciliana.

Aquela 12ª partida acabou empatada, após uma estranha proposta de igualdade feita pelo campeão numa posição vantajosa. No desempate, em partidas rápidas, Magnus Carlsen se impôs e manteve seu título.

Embalado pelas partidas do mundial, assim como dois anos antes, Isaías sentiu novamente vontade de jogar. Correu para o clube, mas lembrava fortemente de não tomar as lições aprendidas durante o campeonato mundial muito ao pé da letra como fizera da última vez.

Nos clubes sempre tem alguém pronto para um par de partidas rápidas, e Isaías não teve dificuldades em encontrar adversários. Foi difícil desenferrujar, mas após algumas derrotas iniciais ele conseguiu alguns pontinhos.

Já perto do fechamento do clube, Isaías moveu seu peão da dama duas casas para iniciar aquela que seria última partida da noite. Seu adversário respondeu com uma Defesa Benoni Antiga, e uma posição parecida com aquela da 12ª do mundial apareceu:

Posição após 4. … Ce7

Como já era tarde da noite, Isaías pensou “Por que não?” e seguiu jogando 5.Cb5 a6 6.Da4 Bd7. Com uma estranha satisfação, Isaías concluiu que, definitivamente, seu adversário não vira o vídeo do Seirawan… Jogou o xeque-mate “afogado” ensinado dias antes: 7.C×d6#.

Posição final, após 7.C×d6#

É sempre bom usar o que se aprende. Dá uma sensação de dar um passo a mais na vida, mesmo que esse passo seja bem pequeno, menor até que o passo de um peão no tabuleiro. Para Isaías, porém, aquele pequeno triunfo serviu para manter acesa a velha chama durante a longa espera que virá, de dois anos, até o próximo confronto pelo título mundial.

Xadrez Fascinante


Há alguns anos (como passam rápido), pensei em fazer uma série de postagens para este blog a fim de apresentar aos leitores aquelas posições de maior importância para a história do xadrez. Como eram postagens curtas, e eu não tinha nada a acrescentar nas análises técnicas das partidas completas em relação às magistrais obras publicadas ao longo dos anos, decidi focar na posição chave de cada partida famosa e contribuir no sentido de unir informações soltas, quase nenhuma delas disponível em língua portuguesa, sobre o contexto da partida, quem eram os adversários, o que tornou aquela posição tão célebre etc. O objetivo era trazer um conjunto de informações mínimas, essenciais, que todo aquele que passa pela vida precisa saber sobre o xadrez.

Para o blog, apenas cerca de uma dúzia de textos foi produzida, a maioria bem curtos, limitados ao formato do canal, mas foram uma semente.

Quando pensei em retomar a série, minhas ambições já estavam mais aprofundadas, era necessário rever o que já tinha feito, ampliar, enriquecer, trocar algumas das posições escolhidas por outras mais relevantes (aprender xadrez é um processo) e completar o projeto: seriam 64 posições críticas de 64 partidas famosas. Mas como escolher?

Um dos critérios: não poderia ser uma posição de abertura, do tipo armadilha, tão comuns em livros para iniciantes. Outro critério, seriam candidatas naturais posições presentes em livros de referência como a fantástica coletânea Meus Grandes Predecessores de Garry Kasparov, Zurich International Chess Tournament de David Bronstein ou 500 Master Games de Tartakower & DuMont. Esses gigantes já haviam feito a triagem natural, mas apenas na intersecção de várias dessas magistrais fontes eu encontraria meus 64 tesouros. Mas a cada dia são criadas partidas que podem se tornar antológicas! Então, o trabalho não poderia se prender somente aos clássicos.

Algumas páginas de internet, como ChessHistory.com, Chessbase.com, Chess.com e ChessGames.com foram levadas em conta, em especial está última, que conta com uma área de comentários de usuários da página que é um verdadeiro manancial de referências!

Para dados sobre jogadores e outras personalidades citadas no livro, usei a Wikipédia como fonte principal (em geral a versão em inglês, que costuma ser mais completa) e outras fontes citadas oportunamente no texto.

Escolhidas as partidas, pesquisados os assuntos, amarradas as pontas soltas, verifiquei que o trabalho seria hercúleo! Então decidi dividir o livro em dois volumes.

Neste primeiro volume que ora entrego, cubro um período que vai desde a primeira partida do xadrez moderno, jogada em 1475, até o marcante Torneio de Candidatos de 1953. O segundo volume tratará dos anos seguintes, até a era atual, em que nomes como Kasparov e Carlsen estão ofuscados pela assombrosa perfeição técnica dos algoritmos computacionais!

Agradeço aos leitores do blog, aos amigos enxadristas e não enxadristas pelo interesse demonstrado pelo assunto ao longo dos anos. Agradeço especialmente à minha amiga Jacqueline Amorim, que corajosamente se voluntariou para revisar o texto. Finalmente, à minha família pelo apoio e paciência nos períodos de dedicação ao livro, sem os quais eu não teria o equilíbrio para realizar nenhuma tarefa de valor.

Que a leitura seja agradável e o objetivo alcançado. A repercussão desse primeiro volume vai me acompanhar e animar na conclusão do segundo, que espero lançar brevemente.


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