Ljubojević: o vingador de aberturas

Quando reuniram-se em Petrópolis, no ano de 1973, dezesseis dos melhores jogadores do mundo para o Interzonal (que decidiria metade dos Candidatos ao título mundial do Ciclo 1973-1975 da FIDE), David Bronstein já era uma espécie de relíquia viva do xadrez: ex-desafiante ao título mundial que empatara um match com Mikhail Botvinnik em 1951, mas que jamais voltara a ter outra chance. Ljubomir Ljubojević , por sua vez, era um vigoroso talento em ascensão, conhecido por seu estilo agressivo.

Talvez essa diferença de expectativas entre o jogador jovem que vinha cheio de ambições e o veterano que não via o xadrez como uma mera competição, mas como uma forma de expressão artística, tenha ajudado a criar uma das partidas mais famosas da história.

Curiosamente, Ljubojević (com peças pretas) adotou uma variante contra a qual havia triunfado facilmente, com peças brancas, quando enfrentou Honfi 3 anos antes. Pode ser que ele pensasse haver encontrado alguma melhoria significativa para o lado preto.

A partida recebeu o Prêmio de Beleza do Torneio Interzonal de Petrópolis.

Inconformado, Ljubojević deve ter aprofundado suas análises após Petrópolis, pois, poucos meses depois, colocou-se novamente na mesma situação contra Florin Gheorghiu, que desviou-se da partida anterior com 18. Re2?, após o qual Ljubojević mostrou estar muito bem preparado:

Não satisfeito com sua primeira “revanche” contra a variante, Ljubojević ainda tinha algo a provar a si mesmo, e repetiu a escolha de abertura numa partida do Interzonal de Riga em 1979, contra Grünfeld, que jogou o lance de Bronstein 18. d6. Foi a vez de Ljubojević desviar-se, melhorando em relação à partida de Petrópolis:

Após essa vitória, Ljubojević não voltou a ter oportunidade de repetir a variante em torneios, mas certamente estava satisfeito por ter conseguido usar sua novidade 18. … Dc5!. Timman opina em seu livro The Art of Chess Analysis que ele deve ter repetido a linha após ter encontrado uma posição cujas “possibilidades eram agudas o bastante e permitiam chances para ambos os lados” após a continuação 19.Ce4 Dd4! conforme se viu na partida de 1979.

Parece que Grünfeld também ficou com a variante “entalada”, pois voltou a enfrentá-la de brancas em 1984, mas acabou perdendo. Como se vê, não é sempre que alguém consegue “se vingar” de uma derrota sofrida!

Ljubojević em 2017
Ljubojević em 2017 (Foto: David Llala)

Para quem quiser tentar, porém, vale a pena pedir umas dicas a Ljubomir Ljubojević.

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Num dia caça, no outro…

A posição acima ocorreu no torneio de Wijk aan Zee de 1996, quando o ucraniano Vassily Ivanchuk assombrou seu adversário, o letão Alexei Shirov, os demais jogadores e todos aqueles que acompanhavam o torneio com aquele que é considerado por alguns como “o lance mais espetacular de todos os tempos”: 21.Dg7!!, que então era uma novidade teórica!

Sem dúvida é uma jogada bela e paradoxal (com lampejos da outra famosa jogada). Talvez atônito, Shirov não foi capaz de jogar da forma mais combativa e acabou perdendo após 21. … B×g7 22.f×g7 Tg8 23.C×c5 d4 24.B×b7+ T×b7 25.C×b7 Db6 26.B×d4 D×d4 27.Tfd1 D×b2 28.Cd6+ Rb8 29.Tdb1 D×g7 30.T×b4+ Rc7 31.Ta6 Tb8 32.T×a7+ R×d6 33.T×b8 Dg4 34.Td8+ Rc6 35.Ta1 (1-0).

Ivanchuk × Shirov (Wijk aan Zee, 1996)

Não deve ter sido fácil para um jogador daquela força ser lembrado por tamanha derrota, mas, anos depois, no mesmo torneio, Shirov teria a chance de se redimir.

Ruslam Ponomariov, campeão mundial da FIDE em 2002, resolveu testar se Shirov já estava recuperado daquela derrota de 7 anos antes, naquele mesmo torneio de Wijk aan Zee, e repetiu o sacrifício de Ivanchuk (que então já se tornara parte da teoria de aberturas), mas ele não imaginava que Shirov estava louco para se redimir, mesmo que fosse contra outro adversário (que, aliás, é ucraniano como Ivanchuk).

Shirov desviou-se da partida anterior com 23. … T×g7 24. C×d7 D×d7 25.T×a7 Tg6 (Stockfish recomenda 25. … f6) 26. Tfa1 (Stockfish recomenda 26.Td1) … Te6. A partir de agora Shirov joga quase sempre a primeira opção recomendada pelo Stockfish e vence exemplarmente! 27. Bd4 Te2 28.h4 Td2 29.Be3 T×b2 30.T1a5 b3 31.Tc5+ Rd8 32.T×b7 D×b7 33.T×d5+ D×d5 34.B×d5 Tb1+ 35.Rg2 b2 36.Be4 Td1 37.Bg5+ Re8 38.Bf6 b1=D 39.B×b1 T×b1 40.h5 Rf8 41.g4 Td1 42.Bb2 Rg8, e as brancas abandonam. Se 43.Rf3 c3, seguido de Td3+ (0-1).

Ponomariov × Shirov (Wijk aan Zee, 2003)

Nos últimos anos, diversos jogadores famosos enfrentaram o sacrifício Dg7, dentre eles o atual campeão mundial, Magnus Carlsen, mas não consta que ninguém mais tenha tentado aquele truque novamente contra Shirov!

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Quem disse que rei não ataca?

Short, N . × Timman, J. (Tilburg, 1991)
4rrk1/1bpR1p2/1pq1pQp1/p3P2p/P1PR3P/5N2/2P2PP1/6K1 w - h6 0 31
Short, N . × Timman, J. (Tilburg, 1991)
Posição pós 30. … h5

Para quem só conhece Nigel Short (Inglaterra, 1965 – ) por suas frases polêmicas ou por ter sido um garoto prodígio, vai se surpreender, talvez, em saber que ele produziu, a partir do diagrama acima, uma obra-prima da história do xadrez, contra o conceituadíssimo Grande Mestre holandês Jan Timman.

Short estava na melhor fase de sua carreira, uma fase que seria coroada com a vitória na final do Torneio de Candidatos em 1993 contra o mesmo Timman (na semi-final, Short batera Karpov, que nunca havia sido derrotado por outra pessoa além de Kasparov em matches). Em 1993, Short disputou contra Kasparov o primeiro match pelo título mundial fora da alçada da FIDE desde ‘Euwe × Alekhine ‘ (1937), perdendo para o russo por ampla margem (+1 -6 =13).

Na posição acima, o talentoso inglês percebeu que todas as peças brancas estavam em boa posição; as peças pretas, presas na defesa de pontos importantes, limitavam-se a repetir jogadas. Foi quando ele pensou: “só tenho uma peça que ainda não está fazendo muita coisa nesta partida!” e seguiu com 31.Rh2 Tc8 32.Rg3 Tce8 (é triste a situação das pretas) 33.Rf4 Bc8 34.Rg5 e as pretas abandonam, pois não há como escapar. Caso 34. … Rh7, seguiria 35. D×g6 Rh8 com mate em 4 jogadas que fica como exercício.

Apesar de a manobra ser marcante, talvez não seja tão original assim… Short pode ter buscado inspiração para sua ideia num pouco conhecido mestre do passado…

Teichmann, R . × Aliados (Glasgow, 1902) 5rk1/p3Q1p1/1pbN1p1p/3q1P2/2p5/2P4P/PP2R1P1/6K1 w - - 0 28
Teichmann, R . × Aliados (Glasgow, 1902)
Posição pós 27. … h6

A posição acima aparece no diagrama 78 (página 91, o mesmo ano da partida de Short… coincidência?) da rara versão em português do livro Estratégia Moderna do Xadrez, de Ludek Pachman, publicado por aqui em 1967 pela extinta editora BESTSELLER. Consta no diagrama 78 aquele livro os nomes “Teichmann × Beratende”, ou seja, consta de pretas um jogador que jamais existiu! O editor brasileiro apenas reproduziu o que fez o tradutor inglês (que usou uma fonte alemã), que não atentou que a palavra alemã beratende significa ‘consultantes‘ em português, ou seja, um conjunto jogadores que enfrentaram Teichman, consultando-se mutuamente sobre os lances (um outro termo comum para essa situação é ‘aliados’).

Richard Teichmann (Alemanha, 1868 – 1925) foi um mestre alemão da época pré-FIDE, cujo maior triunfo da carreira foi a vitória no Torneio de Karlsbad de 1911, à frente de Rubinstein e Schlechter, ambos derrotados duramente por ele em suas partidas individuais. Tinha um problema num dos olhos que algumas vezes obrigou-o a abandonar competições. Um fato importante sobre Teichmann é que ele tinha escore positivo contra o temido Alekhine (+3 -2 =2), e empatou contra ele um match em 1921.

A posição dos aliados não era tão penosa quanto a de Timman no primeiro diagrama, porém o mestre alemão usou o mesmo método, com sucesso, apesar de que as modernas engines indicam outras opções para as pretas que teriam sido mais sólidas: 28.Rh2 b5 29.Rg3 a5? (29. … Dd6+ teria igualado, segundo o Stockfish) 30.Rh4 g6?? (teria sido melhor 30. … h5, mas a situação já está crítica e as pretas tentaram uma última armadilha! Se 31.f×g6?? Dg5#) 31.Te3 D×g2 32.Tg3 Df2 (agora o Stockfish aponta mate em 10 lances!) 33.f×g6 Df4+ 34.Tg4 Df2+ (acelera o fim em um lance, seria melhor 34. … Dg5+) 35.Rh5 e as pretas abandonam, pois o mate está próximo (faltam 6 lances).

Richard Teichman (mestre de xadrez alemão)
Richard Teichmann (Wikipédia)

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Uma lição de Capablanca

Um dos finais mais bonitos que aprendi ainda no início dos meus estudos de xadrez foi o “Exemplo 23” do livro “Chess Fundamentals” escrito pelo genial J. R. Capablanca.

Atualmente, esse livro se encontra em domínio público e está disponível no site do Projeto Gutemberg (uma curiosidade é que ele veio ao mundo originalmente em inglês em 1921 e foi traduzido para o espanhol somente em 1947).

Fiz uma tradução livre da lição tal qual se encontra no livro e deixo aqui para o deleite dos leitores.

Fatalmente, as engines poderão indicar uma solução diversa da assinalada pelo ex-campeão mundial, mas a didática e a beleza do método proposto servem de base para a construção do pensamento enxadrístico de qualquer jogador.

Com a palavra, Capablanca:

Exemplo 23

Nesta posição, a melhor linha de defesa para as brancas consiste em manter seu peão em h2. Assim que o peão é avançado, fica mais fácil a vitória para as pretas. Por outro lado, o plano vitorioso para as pretas (supondo que as brancas não avancem seu peão) pode ser dividido em três partes. A primeira parte será obter o seu Rei para o h3, mantendo ao mesmo tempo intacta a posição dos seus peões (isso é da maior importância, já que, para ganhar o jogo, é essencial no final que as pretas possam avançar seu peão mais recuado, uma ou duas casas, de acordo com a posição do rei branco).

1.♔g3 ♔e3 2.♔g2 … Se 2.g4 f2 3.h4 g6 e ganham as pretas.

2…. ♔g2 ♔f4 3.♔f2 ♔g4 4.♔g2 ♔h4 5.♔g1 ♔h3 A primeira parte foi concluída.

A segunda parte será curta e consistirá no avanço do peão da torre até o rei preto.

6.♔h1 h5 7.♔g1 h4 Isso dá fim à segunda etapa.

A terceira parte consistirá em calcular o avanço do peão do cavalo de modo a jogar … g3 quando o rei branco estiver em h1. Agora se torna evidente quão necessário é ser capaz de mover o peão do cavalo preto uma ou duas casas de acordo com a posição do rei branco, como indicado anteriormente (*). Neste caso, como é a vez das brancas, o peão deve avançar duas casas, já que o rei branco estará no canto, mas se fosse agora a jogada das pretas, o peão deveria avançar apenas uma casa, já que o rei branco estaria em g1.

8. ♔h1 g5 9. ♔g1 g4 10. ♔h1 g3 11. h×g3 … Se 11.g1 g2.

11…. h×g3 12. ♔g1 g2 13. ♔f2 ♔h2 e ganham.

O estudante deve tentar aprender a pensar dessa maneira analítica. Ele irá, assim, treinar sua mente para seguir uma seqüência lógica no raciocínio de qualquer posição. Este exemplo é um excelente treino, pois é fácil de dividir em etapas e explicar a ideia principal de cada uma delas.

(*) Referência a uma lição anterior contida no livro.

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O Lance que Fischer não fez

Em 1961, Fischer, um astro em ascensão,  jogou um match contra o antigo menino prodígio e consagrado grande mestre norte-americano Samuel Reshevsky. Uma das armas do veterano era a variante acelerada da Defesa Siciliana Dragão contra a perene abertura do peão do rei de Fischer.

A sexta partida, desembocou na seguinte posição:

Fischer × Reshevsky (Los Angeles, 1961 – 6ª partida do match)
Posição pós 11.Bf6

Fischer optou pela pacífica linha 12. Dg4 d6 13 Dd1, que deixa as pretas em boa posição. A partida terminou com a divisão do ponto. Análises subsequentes acabaram por conferir a esta subvariante uma fama de “empatativa”, de modo que o próprio Fischer alterou seus planos para o mais sólido sistema Maroczy contra a Dragão.

No ano seguinte, a mais de 8000 km de distância, a posição acima se repetiu numa partida de um evento por equipes na URSS entre o Mestre Internacional Rashid Nezhmetdinov e o Grande Mestre Internacional Oleg Chernikov.

Talvez a partida de Fischer fosse conhecida de ambos os soviéticos, mas o fato é que Nezhmetdinov começou a pensar além do normal para uma posição com opções tão limitadas e com desfecho tão claro: o empate por repetição de lances (após 12. Dh6 Bg7 13. Dh4 Bf6 etc) ou pela linha escolhida por Fischer. Chernikov pôs-se a passear pelo salão, e chegou até mesmo a perguntar para Vladimir Voloshin, amigo de Nezhmetdinov: “Você sabe porque Rashid Gibyatovich está pensando tanto? É uma posição morta. Se ele queria evitar o empate, deveria ter pensado antes” Foi quando um garoto chegou até ele dizendo: “Senhor, ele acaba de sacrificar a dama!”.

Quando Chernikov voltou ao tabuleiro, estava jogado o fantástico lance que Fischer não fez: 12.D×f6!! Um dos sacrifícios intuitivos mais fantásticos da história do xadrez.

A partida seguiu com 12.… Ce2+ 13.C×e2 e×f6 14.Cc3 … O plano das brancas se baseia em explorar a grande diagonal a1h8 desguarnecida pelo bispo da Dragão que foi tomado pela dama, e trazer uma torre até f3. 14.… Te8 (muitos analistas indicaram que teria sido melhor continuar com 14.… d5, após o qual Nezhmetdinov teria jogado 15.Bd4! e usar plano similar ao da partida) 15.Cd5 Te6 16.Bd4 Rg7 17.Tad1 d6 18.Td3 Bd7 19.Tf3 Bb5 20.Bc3 Dd8 21.C×f6! mais uma vez um lance crucial na casa f6 ! 21.… Be2 22.C×h7+! Rg8 23.Th3 Te5 24.f4! 24.… B×f1 25.R×f1 Tc8 26.Bd4! O bispo vale muito mais que a torre inimiga! 26.… b5 27.Cg5 Tc7 … As brancas lançam mão de elegante combinação final para simplificar a posição com 28.B×f7+! T×f7 29.Th8+ R×h8 30.C×f7+ Rh7 31.C×d8 T×e4 32.Cc6 T×f4+ 33.Re2 Apesar de o final ainda demandar técnica por parte das brancas para ser vencido, Chernikov reconhecia que aquele era o dia de Nezhmetdinov, ou talvez ele só quisesse finalmente poder levantar-se a cadeira (1-0).

Rashid Nezhmetdinov Mestre de Xadrez
Rashid Gibiatovich Nezhmetdinov

Nezhmetdinov, um mestre pouco conhecido fora da ‘Cortina de Ferro’, mas cujo ímpeto de ataque lhe rendeu a alcunha de “enxadrista assassino“, foi grande amigo e grande influenciador de Mikhail Tal (contra quem, aliás teve escore positivo +3 -1 =0!).

Realmente uma lástima que, por diversos motivos, nunca tivemos um confronto “Fischer × Nezhmetdinov”, teria sido épico!

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