Quase a última derrota de Capablanca

Análise do grande Capablanca, terceiro campeão mundial de xadrez, daquela que foi quase sua última derrota.

Com sabem, o grande José Raul Capablanca y Graupera perdeu pouco mais de 50 partidas em toda a sua carreira profissional. Muitas delas, como se vê ao analisar tais derrotas, frutos de certo descuido do grande campeão mundial que, em face de sua enorme compreensão do jogo, por vezes passava por alto as ameaças dos rivais.

E sua obra clássica, Chess Fundamentals, de 1921, Capablanca lançou de forma didática as bases de seu modo de pensar o xadrez. Na parte final do livro, ele analisa por completo 14 partidas, muitas das quais perdidas por ele. Trata-se de uma fonte maravilhosa de ensinamentos.

Uma delas chama a atenção: sua derrota contra Oscar Chajes, no torneio em memória de Leopold Rice, em 1916. Chajes foi um mestre norte-americano de origem austro-húngara (hoje parte da Ucrânia) que era também secretário de Leopold Rice em seu cube de xadrez. Ele foi campeão do estado de Nova Iorque várias vezes.

Durante mais de 8 anos, esta foi a última derrota de Capablanca, até ter que inclinar seu rei contra Reti, no lendário torneio de Nova Iorque de 1924.

Levando em conta o valor dos ensinamentos de Capablanca, traduzi e atualizei a notação da análise que faz de sua partida contra Chajes. Chamo atenção em especial ao estilo pessoal das notas do grande cubano, da maneira como se culpa pelos erros e como enaltece os acertos do adversário.

Com a palavra, Capablanca, conforme nos deixou em seu famoso livro:

Oscar Chajes
Jose Raul Capablanca
Rice Memorial2
February 7, 1916 – New York, NY USA
1.e4e62.d4d53.Nc3Nf64.Bg5Bb4
De todas as variantes da defesa francesa, é a que mais gosto, porque dá mais chances às pretas de obter a iniciativa.
5.e5
Embora eu considere 5.exd5 a melhor jogada, há muito a ser dito em favor do lance do texto, mas não de toda a variante adotada pelas brancas nesta partida.
5…h66.Bd2Bxc37.bxc3Ne48.Qg4Kf89.Bc1c510.Bd3Qa511.Ne2cxd412.O-Odxc313.Bxe4dxe414.Qxe4Nc6
12345678abcdefgh
As pretas saíram da abertura com um peão de vantagem. Seu desenvolvimento, no entanto, sofreu um pouco, e há bispos de cores opostas, de modo que ainda não se pode dizer que tenham uma partida ganha; as pretas, porém, certamente têm a melhor posição, porque, além do peão a mais, ameaçam o peão do rei branco, que deve ser defendido, e isso, por sua vez, lhes dará a oportunidade de posicionar seu cavalo em d5 via e7. Quando o cavalo preto estiver em d5, o bispo será desenvolvido para c6 via d7, assim que a oportunidade se apresentar, e as pretas terão a iniciativa e, consequentemente, poderão decidir o curso da partida.
15.Rd1
Para prevenir 16. … Ce7, que seria respondido por 17.C×c3, ou pelo ainda melhor 17.Ba3. Este lance, no entanto, está estrategicamente errado, pois, ao trazer suas peças para a ala da dama, as brancas perdem qualquer chance que possam ter de fazer um ataque decisivo na ala do rei antes que as pretas estejam completamente preparadas para se defender.
15…g616.f4Kg717.Be3
Melhor seria 17.a4, para depois jogar Ba3. O bispo branco estaria muito melhor colocado na diagonal aberta do que aqui, onde atua puramente na defensiva.
17…Ne718.Bf2Nd5
Este cavalo paralisa completamente o ataque branco, pois domina todo tabuleiro, e não há como desalojá-lo. Por trás disso, as pretas podem desenvolver suas peças calmamente. Agora, pode-se dizer que a partida está estrategicamente ganha para as pretas.
19.Rd3Bd720.Nd4Rac821.Rg3Kh722.h4Rhg823.h5Qb4
Para cravar o cavalo e estar pronto para voltar para e7 ou f8. Também para evitar Tb1. Na realidade, quase todas essas precauções são desnecessárias, já que o ataque das brancas não é nada promissor. Provavelmente, as pretas deveriam ter deixado de lado todas essas considerações e jogado 23. … Da4 agora, para seguir com f5, como se fez mais tarde, em circunstâncias menos favoráveis porém.
24.Rh3
12345678abcdefgh
24…f5
Não é o melhor, como as brancas provarão em breve. 24. … Df8 teria evitado tudo, mas as pretas queriam assumir a iniciativa de uma só vez e mergulharam em complicações. No entanto, como será visto em breve, o lance do texto não é de forma alguma perdedor.
25.exf6Nxf626.hxg6+Rxg6
12345678abcdefgh
27.Rxh6+
Ganhando a dama.
27…Kxh628.Nf5+exf529.Qxb4
12345678abcdefgh
A posição parece muito interessante. Eu pensei que seria possível empreender um tal ataque contra o rei branco que seria impossível às brancas resistir por muito mais tempo, mas eu estava errado, a menos que pudesse ter feito isso jogando … Bc6 primeiro, forçando g3 e depois jogando Rh5. Segui um plano semelhante, mas perdi uma jogada muito importante ao jogar 24. … Tcg8, que deu às brancas tempo para jogar Td1. No entanto, estou convencido de que 24. … Bc6 seria a jogada correta. As brancas seriam forçadas a jogar 25.g3, e as pretas responderiam com 25. … Rh5, como já indicado, o que parece melhor (o plano, é claro, é jogar … Th8 e segui-lo com … Rg4, ameaçando mate, ou algum outro lance de acordo com as circunstâncias. Em alguns casos, é claro, seria melhor primeiro jogar … Rg4), ou 25. … Ce4, que pelo menos empataria. Existem tantas possibilidades nessa posição que seria impossível dar todas elas. O leitor será bem recompensado pelo tempo dedicado a percorrer cuidadosamente as linhas de jogo indicadas acima.
29…Rcg8
Como afirmado antes, 29. … Bc6 seria o melhor lance.
30.g3Bc631.Rd1Kh5
O plano, é claro, como explicado acima, é ir para o g4 no devido tempo e ameaçar mate em h1, mas agora é tarde demais, pois a torre branca chegou a tempo de impedir a manobra. Em vez do lance do texto, portanto, as pretas deveriam ter jogado 31. … Ce4, o que teria, no mínimo, garantido o empate. Depois do lance do texto, há uma virada de mesa. Agora são as brancas que têm a vantagem e a iniciativa, e são as pretas que precisam lutar por um empate.
32.Rd6Be4
32. … Ce4 ainda seria o lance correto, e provavelmente era a última chance das pretas para empatar, mesmo contra as melhores jogadas brancas.
33.Qxc3Nd534.Rxg6Kxg6
Não seria melhor 34. … C×c3 35.T×g8 C×a2.
35.Qe5Kf736.c4Re837.Qb2Nf638.Bd4Rh839.Qb5Rh1+40.Kf2a641.Qb6Rh2+42.Ke1Nd743.Qd6Bc644.g4fxg445.f5Rh1+46.Kd2Ke847.f6Rh748.Qe6+Kf849.Be3Rf750.Bh6+Kg8
A maioria dos jogadores se perguntaria, como fizeram os espectadores, por que eu não abandonei. A razão é que, embora eu soubesse que o jogo estava perdido, eu esperava a seguinte variante, que Chajes chegou muito perto de jogar: 51.D×g4+ Rh7 52.Dh5 T×f6 53.Bg5+ Rg7 54.B×f6+ R×f6, e não seria fácil para as brancas vencer a partida. Se o leitor não acreditar, jogue a posição resultante com as peças brancas contra um mestre e veja o que acontece. Meu oponente, que decidiu não se arriscar, jogou 51. Bg7 e finalmente venceu como mostrado abaixo.
51.Bg7g352.Ke2g253.Kf2Nf854.Qg4Nd755.Kg1a556.a4Bxa457.Qh3Rxf658.Bxf6Nxf659.Qxg2+Kf860.Qxb7… e depois de mais alguns movimentos, as pretas abandonaram.60…Be861.Qb6Ke762.Qxa5Nd763.Kf2Bf764.Ke3Kd665.Kd4Kc666.Qf5
Uma partida muito boa da parte de Chajes a partir de seu 25ºlance. Enquanto as pretas, tendo a melhor da posição, perderam várias chances, as brancas, por outro lado, não desperdiçaram nenhuma.
1–0

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Será o fim dos livros de xadrez? (III)

Livros de xadrez ainda têm espaço nos dias atuais? Uma foto recente do campeão mundial de xadrez pode nos dar uma resposta a esta pergunta.

Um dos textos mais lidos deste blog foi Será o fim dos livros de xadrez? (2013), que recebeu um rápido adendo alguns anos depois. Chegou a hora da parte III!

O estopim daquele primeiro texto foi a percepção de que as livrarias físicas não estavam mais oferecendo livros sobre nosso amado jogo. E foi uma observação certeira, em parte pela própria crise no mercado editorial nacional que já se iniciava, em parte pelos fatores que levantei na época, principalmente o reduzido interesse na nova geração de jogadores de elite em publicar livros.

Hoje, os meios mais usados pelos novos estudantes do jogo são aulas em vídeo, aplicativos para prática de posições chave e tática e, no final da fila, alguns seletos livros clássicos.

Esses clássicos, por sinal, continuam a despertar interesse dos aficionados, um dos exemplos é o texto do GM Rafael Leitão sobre os 20 livros que o ajudaram a se tornar GM, que aparece como um dos destaques em sua página na internet. Outro artigo destacado de Leitão é sobre os melhores livros de xadrez já escritos.

Recentemente, um amigo me perguntou porque eu ainda estava empenhado em produzir material sobre xadrez em forma de livros (no meu caso, ebooks), uma vez que as pessoas leem cada vez menos. Respondi que o fazia por ser primeiro um objetivo pessoal, fruto do fascínio que tenho por livros, e também pela memória afetiva que adquiri ao longo dos estudos sobre xadrez.

Admito que a palavra escrita tem perdido a popularidade apesar da disseminação do formato de livro digital. Basta ver a relativa decadência dos blogs frente aos canais do YouTube.

Mas haverá, ainda, espaço para os livros?

Na última semana, apareceu em alguns grupos de xadrez online a seguinte foto do campeão mundial de xadrez Magnus Carlsen:

Magnus Carlsen, chessboard, chess book

A principal reação das pessoas foi descobrir qual seria aquele livro ao lado de Carlsen. Isso serviu de claro exemplo para muitos de nós de que não é a chegada de novos formatos que fará o livro desaparecer. Mesmo o melhor do mundo os utiliza, em formato físico, com tabuleiro físico, de tempos em tempos.

Lembrando as palavras de Kasparov, os “livros empoeirados” ainda ajudarão a formar muitas gerações de jogadores.

P.S.: o livro na foto é Chess Strategy in Action, escrito pelo MI norte-americano John L. Watson (que deve estar bastante contente com a publicidade gratuita!)

Um dos segredos do treinamento de Magnus Carlsen?

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Xadrez no NETFLIX: The Coldest Game

Xadrez, cinema e Guerra Fria estão novamente juntos no lançamento do NETFLIX: The Coldest Game (2019). Uma produção polonesa estrelada por Bill Pullman. As referências a fatos históricos do xadrez são abundantes.

Xadrez e matemática costumam ser paixões correlatas para muitos. Um recente lançamento da NETFLIX uniu esses dois assuntos ao perene e interessante tema da Guerra Fria: The Coldest Game (Partida Fria, na versão não tão adequada do título em português).

Usando elementos da atmosfera do match Spassky × Fischer pelo título mundial, o Match do Século, que realmente aconteceu em 1972, o diretor polonês Lukasz Kosmicki traz o xadrez como peça central na famosa questão dos mísseis soviéticos em Cuba no ano de 1962 (portanto quase uma década antes de Spassky × Fischer), talvez o ponto mais alto da chamada Guerra Fria entre EUA e URSS.

A trama de Kosmicki e Marcel Sawicki (roteirista) utiliza-se de um match entre dois mestres de xadrez como meio de obter informações cruciais sobre as ameaças dos mísseis soviéticos em Cuba.

A disputa seria entre o campeão soviético Grande Mestre Alexander Gavrylov e o campeão norte-americano Grande Mestre John Konigsberg, morto misteriosamente há dias do confronto. É escolhido então o último jogador norte-americano a ter vencido Konigsberg em torneios: um obscuro e ex-professor de matemática em Princeton Joshua Mansky (interpretado por Bill Pullman) , que anos antes fora um genial enxadrista e colaborador do projeto Manhattan, mas ultimamente dedicava-se somente às cartas e ao álcool.

O match se desenrola em Varsóvia, local ideal para que um militar dissidente soviético que fazia parte das forças do Pacto de Varsóvia encontrasse oportunidade para entregar aos americanos informações que poderiam antecipar ou adiar uma guerra nuclear.

Para o fã de xadrez, apesar de alguns erros técnicos (como o match ser composto de um número ímpar de partidas, ou a pressa dos jogadores em mover as peças em momentos chave), o filme traz bastantes cenas empolgantes, como o belo salão onde são disputadas as partidas, closes no tabuleiro sem os habituais erros cometidos em outros filmes, o que permitiu analisar boa parte das partidas do match!

A primeira partida é decidida a favor do americano, felizmente foi possível capturar a exata posição:

Mansky × Gavrylov (ficção, The Coldest Game)

O desfecho deve ser conhecido para alguns enxadristas mais estudiosos, e demonstra o bom trabalho feito pelo Mestre Internacional polonês Andrzej Filipowicz, que foi consultor técnico neste filme no que diz respeito ao xadrez. Ele escolheu um desfecho brilhante que ocorreu numa partida real entre dois poloneses, Tylkowsky × Wojciechowski, disputada em 1931.

Diagrama da partida Tylkowsky × Wojciechowski de 1931, usada no filme 'The Coldest Game' da NETFLIX (2019).
Tylkowsky × Wojciechowski (Poznan, 1931)
Posição após 29 … Td2.

A partir do diagrama acima, a partida Mansky × Gavrylov segue com 30.Ca4? (segundo as engines melhor seria 30.f5) … T×b2!! 31.C×b2 c3! 32.T×b6 (único) … c4! 33.Tb4? (seria melhor 33.C×c4, mas a vitória das pretas viria após 33 … c2!!) … a5!!, e Gravrylov deixa a mesa indignado, abandonando a partida. No caso real, Tylkowski ainda resistiu até o 40º lance.

Uma curiosidade é que esse desfecho ocorreu de forma quase idêntica 2 anos depois em Madrid, numa partida entre Esteban Ortueta e Aguado Sanz :

Ortueta × Sanz (Madri, 1933)
Posição após 30 … Td2.

A ocorrência de um tema tão complexo e belo em duas partidas realizadas em anos e países diferentes (quando não havia internet nem Google) torna esse desfecho ainda mais espetacular, talvez por isso tenha sido escolhido para o filme (além de ser um dos pontos altos do xadrez polonês, certamente).

Na segunda partida, é a vez de o soviético levar a vantagem, aproveitando-se de um hipnotizador na plateia que atrapalha Mansky (mais uma vez é pescado algo da história real do jogo, mas que só ocorreu no match de 1978 pelo título mundial entre Anatoly Karpov e Viktor Korchnoi). A posição principal jamais é mostrada inteiramente, o que dificulta sua identificação, mas passa a sensação de que o norte-americano caiu numa cilada de abertura.

A terceira partida sequer é mostrada: empate.

A quarta partida, por sua vez, recebe diversos enfoques diretos, o que permite definir o desenlace no tabuleiro. Na posição abaixo, Mansky, de brancas, propõe empate, mas o soviético diz algo como “A posição do tabuleiro está clara. Não!”. Uma fala estranha, a julgar pelo que se vê no tabuleiro, no qual há igualdade material e ligeira vantagem branca devido à exposição maior do rei preto:

Diagrama da partida 4 no filme 'The Coldest Game' da NETFLIX (2019).
Mansky × Gavrylov (varsóvia,1962)
Partida 4

Mansky segue, então, com uma sequência de lances rápidos, com respostas igualmente rápidas de seu oponente: 1.Db3+ Rh8 2.Tad1 Bd7 3.Bb6 De8 4.Da3 Cfg8 5.Cd5 Bg4 6.Cc7 Dc6 7.Td6 Dc2 8.C×a8 T×a8 9.Bd4 Cf5 10.B×g7+, após o qual Mansky novamente propõe empate.

Desta vez, ao ver que o empate lhe favorecia , Gavrylov levanta-se, cumprimenta seu oponente aceitando a oferta e, em seguida, aplaude o adversário. A referência para este aplauso é o gesto idêntico que fez Spassky ao final da 6ª partida do Match do Século em 1972, quando aplaudiu Fischer por sua brilhante vitória (que dava ao americano a dianteira pela primeira vez naquele match). No filme, a situação do match agora é de igualdade em 2 pontos após 4 partidas.

Gavrylov aplaude seu adversário ao final da 4ª partida. Coldest Game NETFLIX 2019.
Gavrylov aplaude seu adversário ao final da 4ª partida

A partir deste momento, no match e na trama central da história, não seria possível qualquer análise sem revelar fatos importantes, razão pela qual deixo o restante para quem se interessar em ver o filme. Garanto que haverá surpresas, como num xeque duplo a descoberto!

Partida Fria vai agradar um amplo público, desde os exigentes enxadristas (que vão avaliar meticulosamente todos os pormenores técnicos) e matemáticos (que vão gostar das diversas referências, como o problema lógico de decidir qual caminho seguir numa encruzilhada por meio de um única pergunta feita a um de dois irmãos, um que sempre mente e outro que sempre fala a verdade, sendo que não se sabe qual é qual), até o público em geral, que sempre recebe muito bem tramas baseados em fatos reais, com guerra, intrigas e espionagem.

É sempre bem vindo um filme que trate o xadrez com decência técnica sem perder a chance de emprestar seu charme e simbolismo às duras batalhas da vida fora dos tabuleiros.

O urgente × O importante

O jogo de xadrez pode ser visto como um laboratório da vida, uma vida em miniatura. É um ambiente controlado no qual, não raro, são postas situações que encontram perfeita analogia com problemas da vivência humana.

Uma das questões amiúde enfrentadas por enxadristas (assim como outras formas de vida humana) é decidir entre fazer o que é urgente ou o que é importante. Como o jogo tem um conjunto claro, simples e finito de regras, o impacto das decisões é visto com muito mais facilidade e rapidez que nas situações da vida real.

Certa vez, vi claramente o problema do ‘urgente × importante’ numa partida do Campeonato Feminino de Xadrez dos EUA na qual se enfrentaram Apurva Virkud (com peças brancas) e Sabina Foisor (com peças pretas), ambas mestras de destacada força.

Nessa partida, ficou evidente o pobre papel exercido pela dama branca após o 16° lance, que fez este exército ficar na defensiva o restante da partida, sempre priorizando o urgente sem jamais conseguir fazer o importante: recolocar a dama (a peça mais poderosa do exército) em uma posição mais favorável.

 Virkud × Foisor, St Louis 2017 (posição após 26. Tg1)
Virkud × Foisor, St Louis 2017 (posição após 16..Da5)

Na posição mostrada no diagrama acima, mesmo alguém sem conhecimento sobre xadrez perceberá quão distante se encontra a dama branca do centro do tabuleiro e da ala do rei (metade direita do tabuleiro), que é onde se desenvolve o ataque das peças pretas.

Analisando a partida com a ajuda dos fortes aplicativos (ou engines, como são amplamente chamadas) disponíveis mesmo em nossos smartphones, verificamos que a posição das brancas é muito frágil devido ao forte centro móvel de peões pretos, além da superior mobilidade de cada uma das peças pretas em comparação com suas equivalentes do bando contrário.

As brancas não aproveitaram as duas únicas chances que surgiram para recolocar sua dama em jogo (o que, apesar de não ser a opção preferida pela fria análise da máquina, faria todo o sentido para um jogador de carne e osso): imediatamente no 17° lance, ou pouco depois, no 21°, nas demais ocasiões, a urgência se impôs de forma muito aguda.

Virkud × Foisor, St Louis 2017 (posição após 26. Tg1)
Pretas jogam e dão xeque-mate em 9 lances

Ao observarmos a posição acima, após o 26° movimento branco, perceberemos claramente a falta que fez a dama branca, agora bloqueada pelo cavalo e ainda no mesmo local há 10 jogadas, enquanto as pretas têm a opção de um belo desfecho com um ataque de mate (fica como desafio para os enxadristas – pretas jogam e dão xeque-mate em 9 lances).

A partida me deixou pensativo. Não somente em termos de xadrez, mas em termos de opções de vida. A princípio, seria melhor não se colocar numa situação na qual as urgências nos impeçam de fazer o que é importante, mas, uma vez que o cenário fica mais complicado, precisamos ficar atentos para qualquer chance de recolocar as prioridades em ordem.

Como a partida nos ensinou, fazer somente o urgente não livrou o exército branco da derrota. É preciso lembrar que, mesmo que não traga um retorno rápido, ou sequer mude o desfecho final, fazer o que é importante nos coloca em posição de lutar melhor, mantendo a honra (aliás, um atributo jamais urgente, mas sempre importante).

Último lance da partida: 31. … Tf3+

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Leão derruba Torre no xadrez

É muito raro que um jogador dê chances de sofrer derrotas espetaculares contra um mesmo adversário, mas quando acontece, normalmente entra para a história.

No princípio dos anos 1980, o promissor grande mestre filipino Eugênio Torre sofreu uma derrota contundente, que se tornou famosa, contra o lendário soviético Lev Polugaevsky.

A fantástica variante que segue após 14.d×e6! sacrificando uma torre inteira, fez dessa partida uma das mais comentadas da história do jogo! Torre nem pestanejou, pois a teoria da época lhe dava segurança, mas a posição (e a teoria daquela abertura) foi completamente alterada após 18.h4!!. Mesmo passado seu auge, Polugaevsky aplicou seu método profundo de busca da essência das posições de xadrez e encontrou uma joia. A ideia é que a “jaula” formada pelos peões na ala do rei tornaria inútil a torre extra das pretas. Até esta partida, a teoria apontava que as brancas devariam optar por 14. e×f8=D!? com melhores chances para as pretas (por exemplo na partida Beliavsky × Bagirov , jogada menos de 3 meses antes, naquele mesmo ano de 1981, e que acabou empatada).

No ano seguinte, em 1982, Torre teve sua revanche, numa partida longa, mas teve o cuidado de mudar a abertura.

Apenas 2 anos depois, Torre enfrentou novamente Polugaevsky, mais uma vez com as peças pretas. Talvez achasse que o famoso soviético estivesse sentindo o peso dos anos e pensou em reverter o escore entre os dois (que então estava empatado). Usou a mesma defesa que lhe dera a vitória em 1982.

Talvez o medo de sofrer nova derrota tenha antecipado justamente esse resultado, pois o filipino jogou bem pior que da primeira vez, praticamente entregando ao adversário uma combinação similar à famosa Lasker × Bauer, quando fez o péssimo 18. … Cb8?? . Segue a partida completa.

Torre e Polugaevsky ainda se enfrentariam 4 vezes, mas o filipino não conseguiu vencer nenhuma delas (-1 =3). Descobriu com essas derrotas aquilo que facilmente saberia se soubesse a língua russa: Lev, o primeiro nome de seu algoz, significa Leão.

Sobre os jogadores

Lev Polugaevsky

Polugaevsky (URSS/Bielorússia, 1934 — 1995) foi um jogador de grande renome internacional. Campeão absoluto da URSS duas vezes, em 1967 e 1978, além de ter empatado pelo título de 1969 com Petrosian. Foi três vezes candidato ao título mundial (numa delas, no ciclo 1976-78, ele derrotou o grande mestre brasileiro Henrique Mecking nas quartas de final, +1 -0 =11), porém nunca chegou a ser o desafiante oficial. Foi um grande teórico de aberturas, inclusive deu nome a uma importante variante da Defesa Siciliana Najdorf: 1.e4 c5 2.Cf3 d6 3.d4 c×d4 4.C×d4 Cf6 5.Cc3 a6 6.Bg5 e6 7.f4 b5. Escreveu um dos livros mais respeitados sobre o xadrez de alto nível, “Grandmaster Preparation” (1981), no qual, entre outros temas, mostra com detalhes o profundo processo para desenvolver a variante que leva seu nome.

Torre (Filipinas, 1951 — ) foi candidato ao título mundial no ciclo 1981-1984, qualificado após vencer o Interzonal de Toluca em 1982 (junto com Portisch), mas foi derrotado nas semi-finais por Ribli. Teve estreita relação com Fischer nós anos 1980-1990, e foi segundo do norte-americano em seu match de retorno em 1992 contra Spassky. Foi o primeiro asiático da história a receber o título de Grande Mestre da FIDE, em reconhecimento a sua medalha de prata individual na Olimpíada de Xadrez de Nice em 1974. Uma vitória importante de sua carreira foi o torneio de Manila de 1976, no qual terminou à frente do campeão mundial Anatoly Karpov, a quem venceu num dos confrontos individuais durante o evento. Um ponto interessante de sua carreira é que ele participou de todas as olimpíadas de xadrez desde 1970 (exceto a de 2008) até 2016. Segue como um dos melhores jogadores em atividade de seu país.

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