Bronstein, o mais humano dos grandes mestres

L. Pachman x D. Bronstein
Praga, 1946
Posição após 20. Td2.

“Uma partida que abriu uma nova página no desenvolvimento do pensamento enxadrístico” G. Kasparov


David Bronstein foi o mais humano dos grandes mestres, sem dúvida. Suas análises e ideias sobre o jogo vão além da busca árida por vitórias, mas pela beleza, pela alegria de explorar a vastidão das possibilidades do xadrez. Talvez tenha sido esse seu lado demasiado humano que o fez empatar o match pelo campeonato do mundo contra Botvinnik em 1951 – permanecendo, assim o título com este último. Tigran Petrossian resumiu assim a importância de Bronstein para o xadrez: “Os mais jovens podem pensar que o xadrez moderno começou com coisas como o Informador, mas os jogadores da minha geração sabem que começou com Bronstein”. A prova de que Petrossian não exagerou é que Bronstein é o autor do que talvez seja o mais influente livro sobre o jogo no século XX: Zurich International Chess Tournament, 1953.

Ludek Pachman foi um dos grandes mestres da elite mundial nos anos 50 e 60 (sendo inclusive um dos poucos a ter escore igual contra Bobby Fischer, +2 -2 = 4). Ficou conhecido para a grande maioria dos enxadristas como o autor de obras primas como Modern Chess Strategy.

A posição acima é uma das mais famosas de Bronstein e aconteceu durante o primeiro confronto entre estes dois grandes mestres. O resultado final foi tão avassalador para Pachman que ele jamais conseguiu derrotar Bronstein no restante de seus encontros ao longo dos anos (+0 -5 = 6, o último em 1994)!

Bronstein mostra didaticamente como coordenar a ação concomitante das peças em determinadas casas do tabuleiro (a1, d4 e g3 principalmente), mesmo quando aparentemente as peças estão obstruídas por peças do adversário. O ataque se desenvolve nos dois lados do tabuleiro, ao mesmo tempo, com um só objetivo: matar o Rei branco!

A partida continuou assim: 20.… T×a1! Bronstein explica: “A única esperança branca repousa em seu Bispo de a1. Para demolir os cimentos da posição branca, as negras deveriam tomar o dito bispo com sua torre.” 21.T×a1 B×d4 22.T×d4 C×b3 23.T×d6 D×f2 24.Ta2 D×g3 25.Rh1 D×c3 26.Ta3 B×h3 27.T×b3 B×g2 28.R×g2 D×c4 29.Td4 De6 30.T×b7 Ta8 31.De2 h3+ e as brancas abandonam.

Posição final, 0-1.

Um lance nada inocente

Lewitsky,S.M.  Marshall, F.J.
Breslau, 1912
Posição após 23. Tc5.
… o mais belo lance já jogado.” – Horowitz
Frank Marshall foi o melhor enxadrista dos Estados Unidos da América no início do século XX e desafiante pelo título mundial contra Emanuel Lasker em 1907. Um jogador de ataque, considerado um dos últimos do antigo estilo romântico, que na época já vinha perdendo espaço para o xadrez mais científico. O que talvez tenha ofuscado um pouco a brilhante carreira de Marshall tenha sido o fato de ser contemporâneo de Capablanca, Lasker e Rubinstein, mesmo assim, ainda foi capaz de vitórias isoladas contra todos estes três gigantes do tabuleiro. Stepan Lewitsky foi um dos mais fortes mestres russos do período pré-soviético e tem seu nome na teoria enxadrística com o Ataque Lewitsky (1. d4 d5 2. Bg5). Porém, a exemplo de Kieseritzky, é mais lembrado por ter sido derrotado nesta partida de desfecho brilhante, jogada no torneio de Breslau em 1912.

A posição acima mostra o ponto crítico da partida, quando Marshall tem sua Dama e uma de suas Torres atacadas e aparentemente deve ceder material ao adversário. Mas o mestre norte americano surpreendeu a todos com uma jogada que poucos são capazes de sequer imaginar. Um lance que já foi chamado de brilhante e paradoxal, um caso de realismo fantástico aplicado ao Xadrez!

A partir do diagrama, as negras jogaram 23. … Dg3!! (alguns analistas já atribuíram !!! para este lance). A dama não pode ser tomada pelos peões por causa de ameaças de mate, por exemplo, se 24. fxg3?? Ce2+ 25. Rh1 Txf1#, ou se 24. hxg3?? Ce2#. As brancas poderiam seguir com 24. Dxg3 Ce2+ 25. Rh1 Cxg3+ 26. Rg1 Ce2+ 27. Rh1 Tc3 mas ficariam com uma peça a menos. Em face de suas pobres opções, as brancas abandonaram sem tentar nenhuma das continuações comentadas, o que ajudou a eternizar a posição final.

Posição final (0-1)

Existe uma lenda(confirmada pelo próprio Marshall) de que alguns dos presentes no salão de jogos teriam jogado moedas de ouro sobre a mesa, tamanha a euforia causada pelo sacrifício proibido da Dama frente aos peões brancos.

Três peões na sétima vão ao paraíso

Mac Donnel, A.  De la Bourdonnais, L.
Londres, 1834
Posição após 24. c6
Talvez o final mais brilhante de que se tem notícia”, (Enciclopédia Soviética de Xadrez).
No século XIX, Inglaterra e França clamavam ter os melhores jogadores de Xadrez do mundo. Em 1834, para tirar essa dúvida, foram reunidos os dois mestres que eram considerados os melhores enxadristas desses dois países para uma série de seis matches (!) e definir qual dos dois era o melhor 
jogador da Europa, quiçá do mundo. Alexander MacDonnel, enxadrista amador, irlandês radicado em Londres, e o enxadrista profissional Louis Charles Mahé de la Bourdonnais, francês, como se nota, teriam jogado um total de 88 partidas, das quais apenas 85 se conservaram. Sabe-se, porém, que o placar final foi preservado, com contagem em favor do francês (+45 – 30 = 13)1. Após este encontro, De la Bourdonnais desfrutou da reputação de Campeão do Mundo até sua morte, em 1840.

A posição acima é da 62ª partida da série (16ª do 4º match), as pretas  têm certa desvantagem material, compensada pela posição e mobilidade de seus peões centrais. Esta posição não é a mais famosa desta partida, mas é o ponto inicial da combinação cujo desfecho permanece até hoje no imaginário enxadrístico mundial.

A partir do diagrama acima, a partida continuou assim: 24. … fxe3! (ignorando a ameaça sobre o bispo de b7, que não pode ser capturado)25.Tc2 De3+ 26.Rh1 Bc8 27.Bd7 f2 28.Tf1 d3 29.Tc3 Bxd7 30.cxd7 e4 31.Dc8 Bd8 32.Dc4 De1 33.Tc1 d2 34.Dc5 Tg8 35.Td1 e3 36.Dc3 (e agora o arremate, que leva a uma famosa posição vencedora, com três peões colados na sétima fila, e incontáveis ameaças!)… Dxd1! 37.Txd1 e2
Posição final após 37. … e2 (0-1).
Uma posição realmente fantástica, com ares de composição artística, mas alcançada numa partida real no que hoje seria considerada uma disputa pelo título mundial! Os peões negros alinhados na sétima fila2 tornam inofensivas as poderosas peças pesadas brancas, que abandonaram sem esperar pelo xeque-mate.

1 Aqui, há fontes que indicam também +45 -27 = 13 (considerando apenas as partidas que se conservaram) e +44 -30 = 14
2 Teria sido esta posição final a inspiração para o nome do filme A classe operária vai ao paraíso? 

LQI fez quatro anos de existência!

Em 2010, decidi que tinha chegado o momento de (finalmente) voltar a me dedicar ao Xadrez. Aquela decisão implicava, entre outras coisas, fazer exercícios de tática, estudar partidas comentadas em livros, relembrar e atualizar o repertório de aberturas e, claro, jogar torneios.

No decorrer dos primeiros torneios, senti a necessidade de criar um espaço para mostrar as partidas que estava jogando, para que alguns amigos pudessem vê-las e opinar sobre a qualidade dos meus lances sobre o tabuleiro. Lembro de ter tido essa ideia ao ler o excelente (e hoje inativo) blog do GM Krikor.

Assim, em 31/5/2010, nascia o blog Lances Quase Inocentes (LQI) com a despretensiosa primeira postagem: Algumas partidas recentes (que até hoje só teve 10 acessos, pois foi divulgado só para algumas pessoas). A explicação para o nome do blog pode ser vista aqui.

O entusiasmo foi crescendo quando fui conseguindo minha pontuação FIDE, o que me motivou a escrever bastante sobre o tema. Por exemplo:

 
Com o tempo, o LQI passou a dar informações sobre torneios na cidade de Natal (RN) e Fortaleza (CE), principalmente. Algumas vezes comentava sobre grandes eventos internacionais, campeonato brasileiro absoluto, informações sobre onde jogar Xadrez na cidade de Natal, compilação mensal dos ratings FIDE e CBX dos jogadores do RN etc.

Ao longo desses quatro anos, houve uma inevitável mudança de planos na esfera pessoal, e novo afastamento do Xadrez competitivo. Então, voltei a uma abordagem mais extensiva do jogo, que teve impacto no blog. Por exemplo, eu descontinuei o lado mais utilitário do LQI, pois demandava muito tempo e exigia que eu estivesse em dias com todos os torneios. Felizmente, as informações sobre o Xadrez local continuam sendo atualizadas em outros sites e blogs excelentes como: Xadrez PotiguarBlog Xadrez Potiguar (onde se publica mensalmente o ranking do RN com base nos ratings FIDE e CBX), Blog do NEMBlog Xadrez Natalense e Academia Damasceno de Xadrez.

 
Assim, o LQI ficou mais livre para exercer seu lado ‘ideias e divagações variadas’ e tratou até mesmo da Mega Sena da Virada!
 
O LQI sempre foi, também, um canal onde eu podia falar do que mais me impressiona na história do Xadrez. Em especial, a postagem sobre a lendária série de vinte vitórias consecutivas de Bobby Fischer no seu caminho até o título mundial foi uma das que mais gostei de escrever, e é até hoje a mais visualizada do LQI. Mais recentemente, está em andamento meu projeto sobre as posições mais famosas da história do nosso amado jogo.
 
Nesses quatro anos, foram 232 postagens, em sua totalidade autorais, sempre citando de onde as informações foram retiradas ou consultadas. Algumas delas eu gostaria de destacar, seja pelo prazer que tive em escrevê-las, seja pela repercussão obtida:
 

 

Como o Xadrez, o LQI já faz parte da minha vida, e, nesse ritmo “devagar se vai ao longe”, continuarei postando estes textos, assim como quem faz, na vida e no tabuleiro, uma sucessão de lances, nem sempre inocentes!
 

 

Série ‘Posições Famosas do Xadrez’

Posições publicadas até o momento. Sugira a próxima!

Alguns já devem ter percebido que, ultimamente, um certo padrão de postagens vem aparecendo aqui no LQI, sempre sob o marcador ‘Posições Famosas do Xadrez‘.

A ideia é apresentar ao jogador iniciante, ou ao mero curioso sobre o jogo, aquelas posições de importância histórica, seja pela beleza dos lances, da combinação arrematadora, da partida em que ela apareceu ter sido decisiva num campeonato mundial, por exemplo, e assim por diante. Motivos não faltam para tornar uma posição famosa. E isso gera uma dificuldade: sob que ótica julgar a fama de uma dada posição?

Até agora venho seguindo o caminho mais fácil, escolhendo algumas ‘unanimidades’, como as posições-chave da ‘Partida Imortal‘ e da ‘Sempreviva‘, ou da histórica vitória de Botvinnik sobre Capablanca em 1938. Aliás, me parece que as derrotas de Capablanca, de tão raras e tão comentadas, são candidatas naturais para este projeto e, das cinco publicadas até agora, já temos duas na qual o grande cubano Campeão do Mundo teve que inclinar seu Rei! Não vão pensar que é falta de admiração por ele, mas uma incomum oportunidade de homenagear e enaltecer mostrando, também, as derrotas!

Não existe ordem entre as posições, ainda que, inicialmente, eu tenha tentado a pesquisa com partidas mais antigas, que há mais tempo adquiriram sua fama e das quais é mais fácil encontrar referências. Não impede que uma partida recente apareça numa das próximas postagens.

E por que posições e não a partida completa? Bem, isso pode ser explicado de várias formas, a primeira é o tamanho de uma postagem, que não convém ser muito longa, pois dificilmente será lida até o final. Além disso, meu parco conhecimento do jogo não me permitiria jamais publicar partidas comentadas de mestres, tampouco vejo graça em copiar dos livros ou usar computadores. Em suma, o formato me parece ideal para o blog. Sempre deixo links para aqueles que quiserem ver a partida completa e enriquecer os conhecimentos.

Termino convidando os leitores do LQI para deixar comentários com posições que julguem interessantes para constar desta série. Obrigado!

Postagens já publicadas:

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