O mal de sempre pensar

Pouco foi falado, além das já conhecidas linhas do Gênesis, sobre a curiosa criação do homem e da desobediência primordial que nos tornou a vida tão árdua desde então.

Conta-se que o Criador, irado por ter visto sua única proibição ser ignorada por suas criaturas, lançou sobre eles (e seus sucessores) incontáveis maldições, sendo a mais famosa delas a necessidade de trabalhar de sol a sol pelo pão. Mas o próprio narrador do livro dos inícios cala ao omitir aquela que talvez tenha sido a pior das maldições oriundas do pecado original: a que obrigou homem e mulher, enquanto vida eles tiverem, a pensar sem descanso!

A vida no Éden era realmente paradisíaca. O Primeiro e a Primeira faziam o que bem queriam, comiam, dormiam e tornavam a comer, desfrutavam do convívio regular com o Criador paternal e com alguns anjos que por apareciam e com eles compartilhavam o privilégio de poder suspender a atividade mental, ainda que em plena vigília! Um conceito difícil de entender nos dias de hoje, obviamente o pensar jamais levará ao não pensar.

Porém, como o apetite dos jovens fosse implacável, e todas as frutas do paraíso terrestre já se tornassem enjoativas, a mulher começou a rodear a árvore central, aquela mesma cujos vistosos frutos eram proibidos.

A serpente, vil por natureza, estava invejosa da boa vida que levavam os preferidos do Criador (quem diria poder suspender o pensamento!?, era sua maior indignação). Somente a serpente sabia que, após comerem dos frutos proibidos, os humanos perderiam as muitas vantagens que tinham. Ao ver o olhar da mulher para a árvore, a serpente tratou de confundir‐lhe o juízo, e ela acabou por provar do fruto.

A mulher não queria pecar sozinha e logo ofereceu um pedaço ao esposo, que se sabia de qual fruto se tratava, nem o narrador do livro dos inícios soube dizer.

Sabe-se apenas que ambos envergonharam-se de estarem nus, numa época em que não havia academias de ginástica, musculação, nem treinadores personalizados, e correram atrás de folhas para se cobrir.

Naquela noite não dormiram. Não por culpa ou pela coceira que as novas vestes causavam, mas porque não conseguiam controlar a enxurrada de pensamentos que teimavam em vir sem sossego.

Na manhã seguinte, o Criador estranhou, mais do que os saiotes verdejantes, as olheiras profundas que suas criaturas humanas apresentavam, e passou a ler seus pensamentos, percebendo que não paravam nem um segundo!

– Comeste da Árvore!?

– Sim, mas foi ela quem me deu…

– Sim, mas foi a serpente que me convenceu …

O restante já sabemos, só não conseguimos parar de pensar sobre isso!

Maslow para Enxadristas (e para você)

Pirâmide de Necessidades de Maslow (wikipédia)

Em 1943 um psicólogo chamado Abraham Maslow criou uma teoria na qual elencava uma hierarquia de necessidades e desejos humanos com cinco níveis que, se alcançados, trariam realização pessoal e até mesmo felicidade. Este modelo ficou conhecido como Hierarquia (ou Pirâmide) das Necessidades de Maslow.

Nessa teoria, o primeiro nível é aquele composto de itens fundamentais à vida como alimentação, acesso à abrigo, sono etc. No nível seguinte, após o pleno acesso a todas as benesses do primeiro patamar, haveria a busca por coisas como propriedade, emprego e renda, estrutura familiar, princípios morais etc. Assim, todas as necessidades humanas são elencadas, até que no ápice da hierarquia vem a auto-realização, que seria quando o indivíduo obteve tudo o que está abaixo na pirâmide e, alem disso, sente-se no exercício pleno de todos os seus talentos, seus sonhos realizados.

A Pirâmide de Maslow pode ser adaptada para o caso do enxadrista de mais de uma maneira, uma delas é a seguinte:

Nível 1:movimenta as peças corretamente (inclusive roque e en passant); sabe quantas fases tem uma partida; aceita com alegria o epíteto de capivara; é permitido que participe dos torneios; só consegue acessar a parte mais externa de uma roda de análises.

Nível 2: não perde peças em armadilhas óbvias; entende um mínimo de estratégia (como o conceito de peões dobrados); tem afeição por uma ou duas aberturas de jogo; já vence pelo menos um outro mais capivara que ele próprio; é um rato de torneios de final de semana; é aceito no miolo de uma roda de análises.

Nível 3: já pensou em largar o xadrez pelo menos uma vez, mas passou, ama o jogo; domina a tática e tem boa noções gerais de temas estratégicos; tem um repertório de aberturas para brancas e pretas; sabe que precisa conhecer bem finais de partida; chia quando lhe chamam de capivara e já não é um adversário desejado para uma primeira rodada de torneio; é aceito no círculo interno da roda de análises, à borda da mesa, e até dá uns pitacos.

Neste momento, o xadrezista já começa a aspirar aos dois últimos níveis, “quer ser gente” como se diz. Com muita força de vontade, treinamento, sorte e prática, alguns chegam lá.

Nível 4: largou tudo pelo xadrez; tática e estratégia já são compreendidas como faces de uma mesma moeda; já não se limita a gostar de uma ou outra abertura, joga de tudo e muito bem, inclusive sem o tabuleiro; dorme com o livro de finais de peões do Maizelis; é admirado, já dizem que é um mestre; senta na mesa ao redor da qual se forma a roda de análises.

Nível 5: olha o tabuleiro e sabe, sem contar, quantas peças há sobre ele; escreve livros de tática e estratégia; vê o xadrez como uma extensão natural do pensamento; usa aberturas raras, até inferiores… e massacra; encontrou alguns erros no livro de finais do Dvoretsky; já lhe chamam grande mestre; os jogadores abrem-lhe o caminho até a mesa no centro da roda de análises, onde é convidado a sentar, ele dispensa, observa, dá sugestões benevolentes e certeiras; sabe que escolheu a variante certa para si no xadrez da vida.

Os paralelos são abundantes entre o jogo e a vida, também no que diz respeito à realização das necessidades, desejos e ideais. O sonho do enxadrista é o sonho de todo ser humano: ser um pouco feliz entre um lance e outro, se o adversário deixar!


Nostalgia*


Dois amigos conversando.

– Sabe? Eu tenho, às vezes, saudade do passado, de quando eu era mais novo. Ah, como eram fáceis as coisas!

– É mesmo, a gente quando era mais jovem tinha a felicidade na mão e não sabia.

– Aquelas tarefas da escola, tão simples, e a gente fazendo daquilo uma coisa do outro mundo.

Gargalhadas.

– É, nossa mãe fazia tudo pra gente, tínhamos comida na boca, era brinquedo novo todo dia, e ainda assim a gente reclamava.

– Todos tratavam a gente com carinho e simpatia. E nem levávamos tantas broncas. Já hoje…

Suspiros desanimados.

– E com as garotas? A gente nem pensava tanto nelas, só queríamos diversão. E hoje em dia ficamos aí, bobalhões, apaixonados e nem sempre correspondidos.

– Nem me fale, a Cris está me esnobando, as coisas com ela já não são como eram no começo…

– E a Carol? Está me deixando sem miolos. Nem liga mais pra mim…

Mais suspiros desanimados.

– Você tem razão, tudo hoje é mais difícil. Nossa infância é que era boa.

– E pensar que eu reclamava das lições de matemática daquele tempo.

– E eu das de português.

– É, você nunca soube separar bem as sílabas, né?

– E você? Passou uma semana na tabuada de 7!

– Até hoje eu me enrolo com 7×6!

– E eu tenho horror à palavra “aperfeiçoado”.

Gargalhadas.

– Bons tempos, pena que não voltam mais. Gostaria que todos os problemas que tenho hoje fossem simples como a tabuada de 7.

– Pois eu acho que separar as sílabas de “aperfeiçoado” ainda é pior que muitos problemas que enfrento atualmente!

Mais gargalhadas.

Um grito distante:

– Pedrinho, venha para casa, está na hora do almoço! E venha correndo que esta tarde chamei um professor particular para te ensinar direito MMC e MDC.

– Ih Joãozinho, é minha mãe. Tenho que ir. Vou ter que estudar essas chatices

– Também tenho que correr, senão eu vou é apanhar. Minha mãe está uma onça comigo, tirei zero em redação.

– Como é ruim estar na quarta série!

– Nem me fale Pedrinho, bom mesmo era antigamente!

– E você acha que eu não sei, Joãozinho?

– Joãozinhooo, venha almoçar – gritou outra voz ao longe.

– Ih, não falei? É a minha mãe! Até amanhã.

– Até.

E seguiram cabisbaixos. Cada um para sua casa, cuidar de seus próprios problemas.


*Originalmente publicado em 2002 no site Quase Escritores, organizado por este autor.

Compartilhe: http://bit.ly/NostalgiaAmigos

A realidade, o xadrez e a matrix

Será fácil descobrir o que é real, verdadeiro? Até no xadrez, os grandes campeões divergem em suas opiniões. Um exemplo foi Kasparov x Karpov em 1990.

– Isso não é real?
– O que é “real”? Como você define “real”? Se você está se referindo ao que você pode sentir, cheirar, provar e ver, então “real” não passa da interpretação de sinais elétricos pelo cérebro. Esse é o mundo que você conhece. O mundo como ele era no século XX. Ele agora existe apenas como uma simulação neurointerativa que nós chamamos MATRIX. Você vivia em um mundo de sonho, Neo.
(The Matrix, 1999. Diálogo entre Morpheus e Neo, tradução livre)

Vivemos todos no mesmo planeta, me parece razoável afirmar. Porém, este mundo real em que vivemos é percebido de forma diferente por cada um de nós. A realidade objetiva seria então como uma tela que contemplamos na parede de um museu, e voltamos para casa cada um com uma versão da obra, interpretada com base no que vimos e sentimos.

Mesmo em cenários mais simples que a vida, a realidade não consegue se impor de forma absoluta ao crivo dos sentidos, das crenças, do conhecimento acumulado, ou da falta dele. Um desses cenários pode ser o jogo de xadrez.

Façamos um experimento: tomemos os dois melhores jogadores de xadrez do mundo, coloquemos os dois perante um tabuleiro onde as peças já se encontram numa dada configuração, a que chamamos de posição. Neste caso, a posição faz o papel da realidade objetiva. O que eles diriam sobre ela? Eles concordariam?

Felizmente, podemos usar um caso real de uma partida do Campeonato Mundial de Xadrez de 1990, entre dois dos maiores enxadristas de todos os tempos, Garry Kasparov e Anatoly Karpov. Somos tão afortunados, que existe um documentário sobre esta disputa, no qual os dois grandes mestres explicam suas ideias em cada partida.

A vigésima partida daquele encontro foi decisiva para o desfecho do mundial. O ponto crucial é mostrado no diagrama abaixo, que mostra a posição após o vigésimo quinto lance das brancas:

Posição da partida 20 do macth Kasparov x Karpov de 1990.
Kasparov × Karpov (Lyon, 1990) m20 após 25. Cg4.

Vejamos o que eles disseram sobre a posição e sobre a jogada seguinte de Karpov (que tinha a vez e conduzia as peças pretas):

  • Kasparov (aprox. 1:24:23): “Aqui o único lance é 25. … Cd3 (…) Karpov jogou um lance natural 25. … De8, que parece ser muito bom… prega meu cavalo, protege as casas brancas… (…), mas aqui a posição exigia o melhor lance (…) agora (após 25. … De8) as brancas tem vantagem decisiva.”
  • Karpov (aprox. 1:26:20): “Aqui, eu me sentia com posição muito boa, inclusive já considerava como eu poderia até mesmo vencer, mas deveria ter sido mais cuidadoso, como foi demonstrado na partida (…) eu deveria ter jogado 25. … Cd3.”

Assim, durante a partida, os mestres divergiram sobre a natureza da posição e seu resultado provável: Kasparov via a posição como equilibrada, porém demandava cuidados por parte das pretas; Karpov já se sentia muito confortável, pensando que estava prestes a vencer.

Somente a posteriori, no dia que foram entrevistados para o documentário, ambos concordaram sobre a natureza da posição e sobre qual deveria ter sido a jogada correta das pretas. Foi como se o artista aparecesse na galeria e explicasse o que ele havia pintado: tudo ficou claro.

É impressionante como dois especialistas podem divergir tanto quanto a um aspecto objetivo de sua área de expertise. Este exemplo nos mostra que as divergências de percepção e julgamento nas situações mais complexas da vida são inevitáveis.

Vale lembrar ainda, no caso dos mestres de xadrez, que a realidade da posição pode ainda ser diferente do veredito final fornecido por ambos (um provável empate após 25. … Cd3). Um dia os computadores resolverão o jogo, e só então saberemos a resposta. A vida, felizmente, é mais complexa que o xadrez, mesmo (e especialmente) para os computadores.

A MATRIX não pode te dizer quem você é. (The Matrix, 1999. De Trinity para Neo, tradução livre)

Para nós resta compreender o pouco que nos é dado a desvendar da realidade e saber conviver com (e em certos casos, sobreviver a) a versão dos outros que participam conosco deste grande jogo da vida.

***

Comente e compartilhe: http://bit.ly/XadrezMatrix

O Jogo da Criação


Algumas vezes, nas Esferas Celestes, havia tanta, mas tanta paz, que Deus se sentia entediado. Os anjos tentavam de tudo: canto, exibições de circo, balé, etc, mas era difícil remover o Criador de seu tédio.


Foi, então, que surgiram os jogos, invenção dos anjos, para tentar dar alguma distração ao seu Mestre.

A princípio, Deus gostou da novidade e experimentou todos os jogos que apareceram, tendo por adversários os próprios querubins. Primeiro foi um jogo de palitinhos, cujo objetivo era adivinhar quantos deles havia na mão de cada jogador. Ora, sendo Deus tão mais esperto que seus anjos, e ainda onisciente, esse jogo rapidamente perdeu a graça.

Tentaram jogos com dados, explicando ao Criador que eram instrumentos capazes de incluir incerteza nos resultados, o que era bastante útil quando se tratava de jogar contra a própria onisciência. Acontece que Deus, ao contrário da crença comum, jogava dados muito bem e conseguia sempre tirar os números que desejasse. Portanto, nada de incerto havia para ele, apenas para seus menos hábeis adversários angelicais. O mesmo aconteceu quando passaram ao carteado, apesar de que neste caso, o Criador precisou usar das artimanhas do blefe para vencer algumas partidas em que se distraiu no trato com as cartas.

Essa miríade de jogos fatalmente chegou a um jogo de tabuleiro, com peças redondas, chamado de jogo de Damas. Excelente matemático que é, Deus logo percebeu que era um jogo com muitas possibilidades, mas, para Ele, não era grande coisa: apenas meio sextilhão de posições possíveis. Ainda assim, por vezes, o jogo foi capaz de distraí-lo. O problema é que, por natureza, os anjos não sentiam vontade alguma de vencer seu Criador. Isso, além da infinita capacidade divina, tornava impossível para Deus ser derrotado. E ganhar sempre, até para o Onipotente, enjoa.

Foi quando chegou o Anjo Caído, com um tabuleiro como o de Damas, porém as figuras que se moviam sobre ele eram bastante diversas, assim como os movimentos de cada uma. Rapidamente, Deus calculou que se tratava de um jogo com mais possibilidades que átomos no universo, e talvez trouxesse algum desafio. Além disso, por ser um dissidente, Deus sabia que aquele antigo anjo seria muito mais combativo. Tratava-se do Jogo das Seis Aflições, depois conhecido como Xadrez.

Jogaram a primeira partida. Deus tinha as peças brancas, e começou com o peão do rei. O Anjo da Discórdia tentou respostas simétricas, sem saber que, a cada lance, a vantagem continuava com o Criador. Por fim, uma combinação fatal de sete movimentos surgiu: seis sacrifícios seguidos de peças e um mate com o cavalo, a única peça que restava para o condutor das figuras brancas.

Insatisfeito, o ex-anjo solicitou revanche, com troca de cores, e começou a segunda partida com o peão da dama. As peças moviam-se tão rapidamente que apenas os dois jogadores conseguiam entender o que se passava. A plateia angelical mantinha silêncio e, mal eles tentavam entender uma jogada, já outra era feita no tabuleiro. Quando restavam apenas poucas peças, Deus tinha um peão de vantagem, Lúcifer jogou seu cavalo na quinta casa do bispo do rei, xeque! Os anjos empalideceram, o rei do Rei estava em perigo, mas uma defesa hábil anulou as ameaças, e a vitória veio logo depois, quando o peão a mais chegou aos confins do tabuleiro e se tornou uma dama.

O anjo caído não podia mais disfarçar sua ira, duas derrotas seguidas era algo que nunca lhe acontecera. Como Deus recusasse uma nova partida, uma ideia macabra começou a formar-se na mente do Grande Tentador.

— Senhor, fui tolo em achar que seria páreo para tua infinita sabedoria. E sou indigno de uma nova tentativa, na qual certamente eu sairia derrotado mais uma vez.
Deus ouviu o falso bajulador com indiferença, mas apenas até as palavras seguintes, que Lhe causaram um estranho interesse.

— É claro, Grandioso Criador, que seria diferente se não fosses Tu o meu adversário direto, se Tu fosses apenas um Ser inspirador, mas que não fossem tuas as decisões das jogadas sobre o tabuleiro.

— O que estás a insinuar, Lúcifer?

— Apenas deixa que eu jogue contra peças vivas, de próprio e livre arbítrio, que apenas sejam inspiradas por tua Vontade, mas que seja delas a decisão final.

— Somente os anjos são parte viva de minha Criação, e mesmo um deles conseguiu me descontentar. Por que Eu daria vida a outros seres, meras peças num jogo tolo?

— Será que duvidas, ó Grandioso, que tua simples inspiração sobre as figuras não é suficiente para me vencer nesse jogo?

Vis palavras, porém certeiras.

Como muito tempo depois viria a repetir-se, num episódio envolvendo um certo Jó, o desafio do malfeitor foi aceito. Deus soprou sobre o tabuleiro, que num grande novo mundo se tornou. As figuras, tomaram vida, e logo perceberam que eram donas do supremo dom da vontade. O primeiro movimento foi do grande tentador, e teve algo a ver com um fruto proibido.

Assim, à guisa de entretenimento divino, começou a história dos homens. Condenados a viver num jogo entre as forças do mal e do bem. Numa disputa que parece infinita.

Porém, como séculos para os homens são apenas segundos para o Criador, é bem capaz que a partida já se tenha encerrado lá nos hiperplanos celestiais. Mas, para nós, meros peões animados, o resultado permanecerá um mistério até o final.


Compartilhe: http://bit.ly/JogoCriacao