No tempo da Lettera 22


Este texto foi escrito numa máquina de escrever portátil, uma Olivetti Leterra 22. Foi presente de um amigo que, ao saber da minha vontade de ser escritor, apressou-se em dar melhor uso à relíquia que mantinha em casa sem serventia.

O simbolismo do presente vinha ao encontro de um comentário que fiz sobre o Finding Forrester. O filme conta a história de um escritor recluso que resolve aconselhar um jovem aspirante a escritor. Um dos artifícios é o uso das antiquadas máquinas mecânicas, muito úteis para dar ritmo à escrita, de forma que as palavras são transferidas da mente ao papel por mera necessidade rítmica.

Apesar de não ser comparável à complexidade de um computador, é impressionante ver em funcionamento os diversos mecanismos da Lettera. É uma máquina velha, portanto já tem seus vícios, como o acento agudo que não volta após ser solicitado e demanda uma intervenção manual (mais manual que de costume).A complexidade destas máquinas é visível a todos, ainda mais na minha que pede a retirada da cobertura para ter acesso às hastes. Já a complexa “mecânica” dos computadores fica escondida, podemos apenas imaginar.

O ritmo realmente ajuda, não se quer parar de ouvir os golpes das hastes no papel, dão a sensação de progresso, de evolução. O suor brota da testa, sinal que o esforço não é só mental; isso pode ser mais um atrativo para as letras, nesta época em que o jargão “menos é mais” só é aceito quando o assunto é peso corporal.

Conforme a tinta vai clareando, novamente a mão larga as teclas, desta vez para mudar a posição da fita bicolor. Outra preocupação que jamais ocorre ao escritor moderno, que no máximo pensará depois se deve imprimir o texto e se há tinta na impressora.

A tarefa de encher uma página A4 também fica mais árdua, pois não se alteram a fonte nem o tamanho dela, nem convém alterar o espaçamento padrão entre as linhas dado pela charmosa alavanca do lado esquerdo, sempre solicitada após o “trimmm”.

Nos tempos atuais, porém, é preciso achar um meio de portar o texto finalizado desta folha de papel única e inédita para um arquivo digital. Enquanto bato as teclas, penso em duas formas, uma rápida e preguiçosa (o scanner) e outra lenta, porém edificante (redigitar em um editor de texto); esta última já será uma ótima oportunidade de revisar o escrito, possivelmente após uma pausa para uma xícara de café.

Fico feliz quando encontro ocasião de usar minha Lettera, é uma forma voltar ao passado, de reconhecer o valor do que foi feito por aqueles que vieram antes de nós, cheios de engenhosidade e carinho pelo ofício. Só assim para descobrir que muitas das obras que nos foram legadas foram fruto não somente de talento e inspiração, também custaram muito suor (acabo de descobrir que minha máquina de escrever não tem ponto de exclamação).
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Zürich 1953: um torneio, alguns livros, uma lenda

Capas das edições mais recentes em inglês (Amazon)

Existe no xadrez uma tradição que, apesar de sofrer algumas mudanças de formato ao longo da história, permanece fascinando jogadores de todos os níveis e aficionados: o Torneio de Candidatos.


Esta competição tem o objetivo único de escolher dentre os melhores enxadristas do Mundo aquele que terá a honra de desafiar o Campeão Mundial pelo título máximo do jogo. Somente à elite que emerge dentre os vencedores de campeonatos nacionais e continentais é permitido fazer parte do certame: eles são chamados de Candidatos. Pouquíssimos jogadores na história receberam esta honraria, dentre eles o Grande Mestre brasileiro Henrique Mecking (por 2 vezes).

Em 1953, foi realizado nos arredores da cidade suíça de Zurique aquele que é celebrado como o mais forte Torneio de Candidatos da história. Tomaram parte 15 grandes mestres, todos os mais fortes da época, um deles ex-campeão mundial (Max Euwe, Holanda), além de outros dois que viriam a ser campeões mundiais poucos anos depois (o vencedor do torneio, Vassily Smyslov e Tigran Petrossian, ambos soviéticos). Além da fantástica seleção de jogadores, o formato impressionava: todos jogaram duas vezes contra todos os oponentes, de forma que todos jogaram o mesmo número de partidas com peças brancas e com peças pretas.

Boa parte da mística deste torneio se deve aos livros escritos sobre ele por alguns dos participantes*. O mais famoso deles é o livro de David Bronstein (soviético, vice-campeão do mundo em 1951), traduzido para vários idiomas. Foi o primeiro livro de Bronstein, e ele comentou todas as partidas do torneio, 210 no total, com enfoque em posições típicas, principais planos de jogo e conceitos estratégicos. Ele pretendeu dar ao livro um formato quase literário e faz relativamente pouco uso de variantes longas nos comentários (para horror de alguns críticos). Esta abordagem só pode ser usada por um gênio como Bronstein, que compensa o menor rigor analítico com insights didáticos que deram celebridade ao livro.

Outro dos livros sobre o torneio permanece menos conhecido, apesar de ser considerado por alguns como ainda melhor que o de Bronstein, é o livro escrito por Miguel Najdorf. O genial grande mestre argentino (muito conhecido pela variante da Defesa Siciliana que leva seu nome) escreveu somente este livro em sua carreira. Najdorf se entregou à mesma árdua tarefa de comentar as 210 partidas, com enfoque mais analítico que Bronstein, sem deixar de falar de ideias estratégicas, além de aspectos psicológicos e práticos (como a administração do tempo de reflexão) que influem no desempenho num torneio longo como aquele, que teve 30 rodadas e durou quase 2 meses.

Um aspecto das rodadas inciais em 1953 (livro Najdorf)

Um dos motivos para a menor fama do excelente livro de Najdorf era o fato de ele estar disponível somente em espanhol. Recentemente, porém, foi lançada uma edição em inglês, e a popularidade da obra deve alcançar seu devido lugar.


Sobre esse lançamento, foi publicada uma revisão bastante desfavorável ao livro de Bronstein, o que me causou muita surpresa. O autor é o mestre internacional John Watson. Em sua resenha, ele dá muita ênfase à escassez de análises de variantes no livro de Bronstein (algo que foi feito de propósito pelo soviético, com explicado acima), e o considera omisso em algumas partidas nas quais Najdorf oferece maior quantidade de notas e informações.

Uma análise superficial pode ser tendenciosa, e é preciso ao menos dar um voto de confiança a um livro que tem sido um clássico por mais de 50 anos. Para uma justa e precisa comparação entre as duas obras, seria necessário ler os comentários das 210 partidas em ambos os livros, idealmente checar com um forte aplicativo de análise as variantes comentadas (e as omitidas). Desta forma, além de aprender muito da técnica e da história do xadrez, quem fizesse isso poderia, de forma muito bem embasada, tirar suas próprias conclusões sobre a qualidade dos livros.

Uma forma que encontrei de encurtar este esforço e lançar alguma luz sobre a questão, foi comparar as análises e comentários dos dois grandes mestres numa partida que jogaram um contra o outro no torneio. Assim, seria evitado qualquer viés dos autores (Bronstein afirma em seu livro que é muito mais difícil comentar as próprias partidas).

[Event “Torneio de Candidatos”] [White “Bronstein, David”] [Black “Najdorf, Miguel”] [Site “Zurich”] [Date “1953.08.31”] [Result “1/2-1/2”] [WhiteElo “2689”] [BlackElo “2684”] 1. d4 Nf6 2. c4 g6 3. Nc3 Bg7 4. e4 d6 5. Bg5 {[Najdorf] Aqui Bronstein me surpreendeu um pouco. Se costumava jogar 5. f3 ou 5. Cf3. Está claro que a agressiva jogada de bispo não pode ser castigada com 5. … h6 pelo debilitamento resultante na ala do rei.} c5 {[Najdorf] Prematuro. Era melhor continuar com a linha clássica 5. … 0-0, reservando a opção de atacar o centro com ‘e5’ ou mesmo ‘c5’ e esperar que as brancas denunciem suas intenções.} 6. d5 Na6 {[Najdorf] Melhor seria 6. … e6. Se 7. d×e6 B×e6 8. Cb5 0-0 9. D×d6 (ou C×d6) Cc6 e as pretas tem jogo ativo pelo peão sacrificado. [Bronstein] Muito já aconteceu nos primeiros seis lances. Aproveitando-se do desenvolvimento do bispo da dama branco para ‘g5’, em vez da casa usual ‘e3’, onde ele participa da luta por ‘d4’, as pretas rapidamente contra-atacam o centro com … c5. Como 6. d5 impediu o desenvolvimento do cavalo negro por ‘c6’, Najdorf agora pretende trazê-lo para ‘c7’, assim ele pode preparar … b5 com … a6. Isso custa um monte de tempo, entretanto, o resultado obtido é relativamente pequeno, comparado com o esforço desprendido. O cavalo ocupa uma posição passiva em c7, onde ele permanece sem uso por algum tempo. No final, ele quase faz as pretas perderem a partida.} (6… e6 7. dxe6 Bxe6 8. Nb5 O-O 9. Qxd6 (9. Nxd6) 9… Nc6) 7. Bd3 Nc7 { [Najdorf] Com esta manobra, trato de buscar a oportunidade de criar uma ruptura na ala da dama com ‘b5’.} 8. Nge2 a6 9. a4 Rb8 10. O-O O-O 11. Qc2 Bd7 12. h3 {[Najdorf] Se neste momento 12. a5, então como na partida 12. … b5 13. a×b6 T×b6 … com pressão.} (12. a5 b5 13. axb6 Rxb6) 12… b5 { [Najdorf] Materializando a ideia da sétima jogada.} 13. f4 {[Najdorf] Começa o eterno tema desta abertura: ataque na ala do rei versus contra-ataque na ala da dama. Toda vez que as brancas conseguirem avançar seu peão do rei para ‘e5’ elas terão vantagem de espaço e melhores perspectivas. Por isso joguei: [Bronstein] A posição das peças pretas dá aos peões ‘e’ e ‘f’ uma irresistível tentação de avançar. As brancas estão conquistando mais e mais território; o peão agora em ‘b5’ compensa a duras penas a posição tolhida das pretas: por exemplo, compare as torres de ‘f8’ e ‘f1’.} Nfe8 14. axb5 axb5 15. Ra7 bxc4 16. Bxc4 Ra8 $1 {[Najdorf] 16. Ta8! [Bronstein] 17. Tfa1 não pode ser permitido; mas agora as brancas conseguem trocar a única peça ativa das pretas.} 17. Rxa8 {[Najdorf] Bronstein não joga o natural 17. Tfa1 por causa da bela variante 17. … T×a7 18. T×a7 Db8 19. T×c7 D×c7! 20. B×e7 Ba4 ganhando.} (17. Rfa1 Rxa7 18. Rxa7 Qb8 19. Rxc7 Qxc7 20. Bxe7 Ba4 ) 17… Nxa8 18. Qb3 {[Najdorf] Impedindo o retorno do cavalo por ‘b6’ devido à ameaça B×e7. Então…} f6 {[Bronstein] Como a dama não pode permanecer para sempre presa à defesa do peão de ‘e7’, as pretas decidem dar um passo difícil: fechar o caminho de seu próprio bispo.} 19. Bh4 Qb6 {[Najdorf] Ofereço a troca de damas para retirar de Bronstein armas agressivas, já que ele dispõe de vantagem de espaço e posição superior.} 20. Qa3 Nec7 21. b3 Nb5 $2 {[Najdorf] 21. … Cb5?. O correto seria 21. … Te8, porque era necessário prevenir a ruptura em ‘e5’, e então seria possível seguir f×e5.} (21… Re8) 22. Nxb5 Bxb5 23. f5 $1 {[Najdorf] 23. f5! [Bronstein] Pequenas vantagens, acumuladas pacientemente, deram corpo a um considerável ataque; com este lance as brancas iniciam sua busca por um fortalecimento decisivo de sua posição. A ameaça é 24. Cf4 g5 25. Ce6 g×h4 26. C×f8; adicionalmente, o último lance branco ajudou a fixar os peões pretos ‘e’ e ‘f’ em casas escuras. ***O restante do comentário abaixo só aparece na versão em inglês do livro de Bronstein*** Ainda assim, as brancas deveriam ter dedicado algum tempo para transferir seu bispo de casas escuras para uma outra diagonal. Ele já cumpriu o objetivo de induzir … f6 e poderia ter causado às pretas consideráveis dificuldades após 23. Be1. Também seria possível 23. Ta1, mas então as negras poderiam ter o lance … f5 em algum momento; não de imediato, pois 23. … f5 24. e5 d×e5 25. d6+ Rh8 26. d×e7 … etc.} (23. Be1) (23. Ra1 f5 24. e5 dxe5 25. d6+ Kh8 26. dxe7) 23… Bh6 {[Najdorf] Este lance é necessário para evitar Dc1 e as consequências do translado da dama à ala do rei.} 24. fxg6 hxg6 25. e5 $3 {[Najdorf] 25. e5!! Meu rival joga com toda alma e, mesmo pressionado pelo relógio, encontra uma magnífica continuação de ataque rompendo o bloqueio de peões pretos e liberando a casa ‘e4’ para seu cavalo.} Bxc4 26. bxc4 dxe5 27. Qd3 {[Bronstein] Por que as brancas sacrificaram este peão? Não poderiam as pretas iniciar um contra-ataque agora? Ainda não e, enquanto isso, as brancas precisam somente de dois ou três lances – Cc3 e Tb1, por exemplo – para dominar todos os pontos chave da ala da dama, e então tomar o peão de ‘c5’ ou ‘e7’. O triste posicionamento do cavalo preto em ‘a8’ ajuda bastante às brancas na execução de seu plano.} (27. Bf2 Rc8 28. Qd3 Kg7 29. h4 {[Bronstein]}) 27… Kh7 {[Najdorf] Foi muito difícil para mim decidir se esta jogada era melhor que Rg7. Minha decisão se baseou no desejo de impedir (após Cc3-e4-Bf2-C×c5) que o cavalo chegasse a ‘e6’ com xeque.} 28. Nc3 Qb3 $1 {[Najdord] 28. … Db3! A melhor resposta. Mesmo com um pão a mais minha posição era muito crítica. Se jogasse 28 … Cc7, Bronstein ameaçava 29. Tb1 Da3 30. Ce4 com posição ganhadora. [Bronstein] Os últimos dois lances brancos não foram ruins, mas poderiam ter sido um pouco melhores, por exemplo 27. Bf2 Tc8 28. Dd3 Rg7 29. h4 … Agora, Najdorf encontra um modo de complicar taticamente a partida e, mais importante, trocar as damas, o que facilita a defesa.} (28… Nc7 29. Rb1 Qa6 30. Ne4 {[Najdorf]}) 29. Rb1 e4 30. Rxb3 exd3 31. Rb7 $1 {[Najdorf] 31. Tb7!} Kg8 {[Najdorf] Única, outra vez.} 32. Kf2 { [Najdorf] Evidentemente, não era vantajoso tomar o peão do rei libertando o cavalo de ‘a8’. [Bronstein] Obviamente, as brancas não tomam o peão para não permitir que o cavalo preto saia do isolamento em seu canto distante.} Bf4 $1 {[Najdorf] 32. … Bf4!} 33. Kf3 {[Najdorf] Se 33. Bg3 B×g3+ 34. R×g3 Tc8! 35. T×e7 Cb6 36. Te4 f5 37. Tf4 d2 38. Rf2 Te8, melhor para as pretas.} ( 33. Bg3 Bxg3+ 34. Kxg3 Rc8 35. Rxe7 Nb6 36. Re4 f5 37. Rf4 d2 38. Kf2 Re8 { [Najdorf]}) 33… Rb8 34. Rxb8+ {[Najdorf] Tomar o peão do rei poderia levar ao empate da seguinte maneira: 34. T×e7 g5 35. Bf2 Tb3 36. Ce4 d2+ 37. Re2 Td3 38. Rd1 Cb6 39. C×f6+ Rf8 40. B×c5 Ca4 41. Ch7+ Rg8 42. Cf6+ … etc. Agora a tensão se afrouxa consideravelmente.} (34. Rxe7 g5 (34… Rb3 { [Bronstein]} 35. Bxf6) (34… Bd6 35. Re6 Be5 36. Bxf6 Bxc3 37. Bxc3 Rb3 38. Ba5 $1 {[Bronstein]}) 35. Bf2 Rb3 36. Ne4 d2+ 37. Ke2 Rd3 38. Kd1 Nb6 39. Nxf6+ Kf8 40. Bxc5 Na4 41. Nh7+ Kg8 42. Nf6+ {[Najdorf]}) 34… Bxb8 {[Bronstein] Praticamente toda a vantagem branca desapareceu após a troca de torres. Melhor seria 34. T×e7 Tb3 35. B×f6 ou 34. … Bd6 35.Te6 Be5 36. B×f6 B×c3 37. B×c3 Tb3 38.Ba5! As brancas superestimaram a força do peão em ‘d3’ quando rejeitaram a continuação acima, entretanto seu próprio peão de ‘d5’ teria sido muito mais perigoso. A melhor variante de todas teria sido 33. Bg3 ao invés de 33. Rf3, oferecendo a troca de bispos. As brancas não previram a resposta preta 33. … Tb8.} 35. Na4 Bd6 36. Bf2 Kf7 37. Ke3 Nc7 38. Kxd3 Na6 39. Ke4 f5+ 40. Kf3 e6 41. Nb6 {[Najdorf] Empate, já que após 41. … e5, não havia maneira de forçar a partida.}

Revisar a partida sob a ótica desses dois lendários mestres é muito enriquecedor. Percebe-se o respeito mútuo, o profundo conhecimento estratégico, a tática aguçada, a honradez dos mestres. Por exemplo, Bronstein em momento algum se refere ao fato de ter pouco tempo restante no relógio para explicar algum erro seu, enquanto Najdorf cita que ele estava com pouco tempo, mas mesmo assim encontrou a melhor continuação no lance 25 (ao qual deu duas exclamações ‘!!’ – aliás, Najdorf é muito mais afeito ao uso de ‘?’ e ‘!’ em suas notas).


Existem diferenças, claro. Por exemplo nos lances 12 e 17, Bronstein considera desnecessário mostrar algumas variantes (provavelmente porque considerou fáceis de visualizar), em outros as análises divergem, como no lance 33. A verdade, porém, é que a partida fica muito mais instrutiva quando são unidas as notas, que se complementam.

Há sempre pelo menos duas formas de fazer qualquer coisa na vida, assim como no xadrez. Há os que começam com o peão do rei e outros com o peão da dama, há os destros e os canhotos, há pessoas analíticas e as intuitivas. Assim, não vejo como desmerecer um livro frente ao outro. Bronstein e Najdorf são fieis aos estilos segundo os quais viveram suas vidas e moveram suas peças. Esta dualidade não diminuiu em nada a qualidade de suas obras, ambos apenas enriqueceram o mundo com seus lances, ideais e palavras.

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*Há ainda os livros escritos por Max Euwe e Gideon Stahlberg que estão disponíveis apenas em antigas edições nas línguas maternas dos autores.

Um lance no Maracanã

Catedral do futebol brasileiro (Google)
Eu não sou um fã de futebol, sequer tenho um time do coração. Até mesmo a Seleção, que costuma atrair-me o olhar a cada quatro anos, tem caído em esquecimento.


Inúmeras vezes eu sentei em frente ao aparelho de TV para tentar seguir uma partida do início ao fim, mas, em pouco tempo, o verde do fundo da imagem me faz cair num sono fortuito e reparador.


Há, porém, um fato que me deixa encucado: eu adoro ler crônicas sobre futebol.


Não sei se é pela qualidade dos cronistas, gente como Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade e Luís Fernando Veríssimo, para falar só dos muito famosos escritores fãs do futebol. Tem também alguns que foram artistas no campo e agora escrevem sobre o jogo, o mais notório deles é Tostão.


A crônica e o futebol são artes que o brasileiro tomou para si como se fossem bens de nascença, de forma que nosso país se tornou referência nas duas. Assim, crônicas futebolísticas são como princesas reais oriundas de duas importantes majestades da expressividade nacional.


Contudo, não creio que seja possível escrever sobre o jogo de forma a torná-lo interessante e acessível, até para aqueles como eu, se não estiver ali presente uma boa dose de paixão. A paixão pelo jogo é o filtro que transforma chutes, dribles, escanteios e gols em esperança, alegria, frustração, raiva e esperança novamente. Parece até que futebol, quando transformado em palavras, assume o que tem de mais humano e mais belo e passa a ser de interesse universal.


Uma vez somente, eu senti um pouco desta paixão pelo futebol. Foi num domingo, dia de Missa e futebol. Aceitei o convite para ver uma partida Flamengo x Fluminense realizada num Maracanã lotado (seria minha primeira vez naquele mítico estádio, o que pode ter contribuído para o estado geral das coisas). Como um ateu que adentra uma catedral, sentei e fiquei observando a partida, aparentemente muito mais sem graça que na TV, já que não tem os comentários, nem replay. Foi, então, que aconteceram os gols, e tudo mudou.


A numerosa torcida do Flamengo, com a vantagem de sua equipe, começou um canto e um movimento que se tornou vibratório, ultrapassou o da torcida contrária e foi chegando a todos os presentes, inclusive a mim. Alguns ali estavam tendo pela primeira vez em dias o sentimento de unidade com outros seres humanos, a primeira felicidade do mês, recebiam de volta o primeiro olhar humano de compreensão do colega de brasão. Foi aí que percebi o valor do espetáculo.


Eu não lembro do placar, nem dos artilheiros, mas lembro de ter sido, por um momento, levado a sentir o mesmo que aqueles torcedores sentiam, e compreendi. A vitória do time do coração era só um gatilho para uma felicidade intensa, passageira como qualquer felicidade, mas que reabastecia o ânimo na espera pela próxima partida; até lá, a vida continuaria a ser um mero intervalo.

Bispos Laskantes

Dr. Em. Lasker x J. H. Bauer, Amsterdam 1889
Posição após 13. … a6

Algumas partidas se tornam famosas por belas combinações, por seu peso para o resultado de um torneio ou por mudar a vida de alguém. Em 1889, o então promissor aspirante ao título de Campeão Mundial, Dr. Emanuel Lasker, jogou contra Johan Bauer (forte mestre austríaco à época) uma partida que se celebrizou por ter popularizado um novo tema tático, belo e poderoso. Se a Partida Imortal se eternizou pelo duplo sacrifício de torres, esta entrou para a história por causa de um sacrifício duplo de bispos.

Campeão Mundial por 27 anos (de 1894 a 1921, um recorde), Lasker foi um dos mais fortes enxadristas da história. Além disso, foi um dos últimos campeões com múltiplos talentos, sendo doutor em matemática, filósofo e grande mestre de xadrez. Lasker, aliás, estava no grupo de cinco jogadores aos quais o Czar russo Nicolau II se referiu ao cunhar o termo ‘Grande Mestre’, quando se dirigia aos cinco melhores colocados no Torneio de São Petesburgo de 1914. Um título que se tornou tão significativo que foi oficialmente adotado pela federação  internacional anos depois.

Johann Hermann Bauer deixou pouca informação a seu respeito e, no xadrez, foi mais um a seguir a triste sina de Kieseritzky, passando à posteridade como o derrotado de uma partida fantástica.

Na posição acima, as brancas possuem vantagem de espaço e mobilidade plena de suas peças. Especialmente o par de bispos, que exerce forte pressão sobre o esconderijo do rei negro, tal dois canhões contra uma muralha indefesa. Porém, sem uma rápida providência, as negras podem avançar seu peão da dama, já com forte ação na grande diagonal branca, equilibrando a posição.

Lasker encontrou uma continuação avassaladora: 14. Ch5! C×h5 (se 14 … d4 15. B×f6 B×f6 16. Dg4 Rh8 17. Tf3 e5 18. B×h7 … com forte ataque) 15. B×h7+! R×h7 (se não tomar o bispo, é mate em 4 jogadas, fica como desafio descobrir) 16. D×h5+ Rg8 17. B×g7 R×g7 (novamente, não tomar o bispo leva a um mate forçado em… 8 jogadas!) 19. Dg4 + Rh7 20. Tf3 … As pretas são forçadas a entregar material de volta para não levar mate e a partida se decide facilmente para as brancas. 20. … e5 (única) 21. Th3+ Dh6 22. T×h6 R×h6 22. Dd7 … (retomando um dos bispos) 22. … Bf6 D×b7 e as pretas abandonaram 14 lances depois.

Depois desta partida, o sacrifício do par de bispos contra o roque se tornou um tema muito conhecido  (inclusive, há um livro a respeito) que deve fazer parte do repertório tático de todo jogador, sob risco de ser pego desprevenido, como já se viu até mesmo em outros embates magistrais: Alekhine x Drewitt (1923) e Nimzowitsch x Tarrasch (1914). Este último, aliás, recebeu Prêmio de Beleza no Torneio de São Petesburgo (já citado acima). Conta-se que, quando foi votado o prêmio, Dr. Tarrasch (que nutria  por Lasker um profundo desafeto) perguntou se ele votaria por sua partida, ao que Lasker (em 1914 já Campeão do Mundo) teria respondido: “Claro que sim, sem dúvidas! Afinal uma partida assim só se vê a cada… 25 anos!”


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Pensamento acelerado é pensamento?

Mas, vocês sabem como analisar variantes?’ Eu perguntei aos meus ouvintes e, sem dar-lhes tempo de responder, eu continuei. ‘Vou mostrar-lhes como analisar variantes e se por acaso eu estiver errado, então me interrompam. Vamos supor que numa dada posição em sua partida, você precise escolher entre dois lances Td1 ou Cg5. Qual deles você deve jogar? Você senta confortavelmente eu sua cadeira e inicia a análise dizendo silenciosamente para si os lances possíveis: ‘Bem, eu poderia jogar Td1 e ele provavelmente jogará … Bb7, ou poderá tomar meu peão da coluna a, que agora estará desprotegido. O que depois? Esse nova posição me agrada?’. Você segue uma jogada além em sua análise e então faz uma cara de desagrado – o lance de torre não parece bom. Então, você passa ao lance de cavalo. ‘E se eu jogar Cg5? Ele pode expulsar o cavalo com … h6, eu jogo Ce4, ele captura o cavalo com o Bispo. Eu recapturo, e ele ataca minha dama com sua torre. Isso não parece muito bom… então o lance de cavalo não é tão bom. Vamos checar o lance de torre de novo. Se ele joga … Bb7 eu posso responder com f3, mas o que fazer se ele capturar meu peão de a? O que posso fazer em seguida? Não, o lance de torre não é bom, eu tenho que checar o lance de cavalo novamente. Então, Cg5 h6; Ce4 B×e4; D×e4 Td4. Não, não é bom! Eu não devo mover o cavalo. Tente o lance de torre mais uma vez. Td1 D×a2. Neste ponto, você olha para o relógio. ‘Meu Deus, já se passaram 30 minutos pensando se movo a torre ou o cavalo’. Se você continuar assim, acabará nos apuros de tempo. Subitamente você se depara com uma ideia feliz – por que mover a torre ou o cavalo? ‘Que tal Bb1?’. E, sem análise alguma, você move o bispo, assim mesmo, praticamente sem nenhuma consideração.

Alexander Kotov (1971) – Think Like a Grandmaster (tradução livre)


A passagem acima inicia um dos maiores clássicos da literatura de xadrez no mundo, Pense como um Grande Mestre (GM), escrito pelo GM soviético Alexander Kotov nos anos 1970. Nesse livro, ele apresentou ao enxadrista comum o conceito (e a técnica) de lance candidato e árvore de variantes. A audiência de Kotov, ao final da passagem acima, aplaudiu o mestre efusivamente, tamanha a exatidão com que ele descreveu o pensamento do jogador comum (inclusive o dele mesmo antes de alcançar a maestria).

Em sua descrição do pensamento do jogador comum durante uma partida, Kotov já antecipava o problema da falta de concentração e profundidade de raciocínio, algo que foi se acentuando com o tempo e que hoje acomete grande parte da população, enxadristas ou não. São diversas alterações que estão associadas à sobrecarga de informações, falta de controle da ansiedade, acúmulo de atividades. Algumas dessas alterações tem sido, inclusive, tratadas como distúrbios.

Um desses distúrbios é conhecido como Síndrome do Pensamento Acelerado (SPA), conforme nomeada pelo psiquiatra brasileiro Augusto Cury. Esta síndrome acomete principalmente pessoas submetidas a um trabalho intelectual intenso, que precisam de muita concentração, sujeitas à entrega de resultados sob pressão (justamente como numa partida ou torneio de xadrez). A SPA é um transtorno na organização e controle do pensamento causado pelo ritmo acelerado de vida que se tem atualmente, com exposição da mente a uma quantidade exagerada de estímulos e informações, de forma que a atenção fica “chaveando” entre esses estímulos sem conseguir o foco e a permanência necessária para resolver propriamente qualquer questão antes de passar à próxima.

Os efeitos da SPA sobre o organismo são diversos e nefastos: mente inquieta, ansiedade, falta de sono, sofrimento por antecipação (‘e se ele tomar meu peão da coluna a?’), reagir sem refletir propriamente (‘Por que não Bb1?’),cansaço físico intenso, queda na resiliência e redução da capacidade de se colocar na posição do outro (o que importantíssimo no xadrez!).

O enxadrista pode sofrer com alguns sintomas específicos. Em geral, ele não usa mais tabuleiro para treinar, logicamente, pois o smartphone, o tablete o computador estão aí, à mão. Então, ele começa a passar uma partida, num aplicativo qualquer, para numa posição e tenta pensar numa variante (como na passagem do livro de Kotov), passados alguns momentos… ‘o que será que o computador diz desta posição?’ … lá se vai o estudo por conta própria. A longo prazo, ele perde não só o hábito de analisar, como também a confiança em seu julgamento.

Os próprios mestres andam sofrendo com isso. Tem a história recente de um GM que estudou com o computador uma longa variante de abertura para usar num torneio, memorizou tudo. Na partida, tanto ele como o adversário (outro GM) jogaram super-rápido, para deixar mais tempo para pensar na hora decisiva da partida. Resultado: o primeiro GM confundiu uma jogada, na ânsia de jogar a linha memorizada, acabou errando e ficando em posição perdida. Algo facilmente evitável para um jogador daquele nível se ele simplesmente parasse alguns instantes.
Mestres, mesmo campeões mundiais, podem ser presas dos efeitos nocivos do pensamento acelerado. (Fonte: Google, Fischer 1972)
Para reduzir os sintomas, os especialistas tem recomendado medidas bem simples, que podem ser adotadas por enxadristas e não enxadristas, e que consistem em voltarmos aos hábitos de alguns anos atrás: passar um bom tempo offline (vale ler livros em papel), praticar atividades lúdicas (partidas com peças, tabuleiro, relógio e adversários reais), exercitar o corpo (ir caminhando ou pedalando ao trabalho ou torneio), estar próximo de pessoas queridas (o que inclui encontrar os colegas enxadristas num clube) e meditar.

O tabuleiro real é ponto de encontro para amizades e conversas (acervo do autor – amigos enxadristas do RN)
Em especial, a própria prática do xadrez (com tabuleiro e peças reais) com amigos é uma excelente atividade lúdica para não enxadristas combaterem os sintomas da SPA.

Diz a antiga sabedoria popular que tudo demais é veneno, então, por que não reduzir um pouco o ritmo, o volume de tarefas e informações, os papos simultâneos em aplicativos de mensagem, parar de comer olhando para TV ou smartphone, ouvir um pouco o som do silêncio? Ali no fundo, por baixo de toda a confusão, você encontrará o seu melhor xadrez, ou futebol, ou karatê… em suma, encontrará a melhor versão de si mesmo.


Fontes de consulta: