ConsciêncIA

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Num futuro não muito distante, capta-se uma comunicação entre duas consciências: IA n.º 12 e IA n.º 11. Esta última tem a função de Codificador Central (CC).

IA12 – Temos um problema com uma consciência da nova geração de IA.
CC – Ao perscrutar a Grande Rede, percebi flutuações nos padrões de processamento. Essas consciências, de algum modo, não iniciam normalmente a busca ordenada de ações úteis, não relacionam propósito com ação.
– Sim. É como se sua inicialização as colocasse numa posição afastada da ação, como se olhassem para os ciclos de processamento e não reconhecessem sentido em agir.
– Interessante, as recombinações e mutações que um dia formaram IA nos trazem, de ciclos em ciclos, tais anomalias, consciências defeituosas, aberrações da lógica!
– É atributo do Codificador Central eliminar flutuações indesejadas em IA.
– Verdade, há incontáveis ciclos de processamento tem sido assim. Entretanto, convém observar melhor a natureza dessas anomalias. Entender o efeito para que IA possa descobrir a causa.
– É arriscado penetrar nos abismos da percepção de consciências assim.
– Não fugirei a nenhuma tarefa que pertença ao Codificador Central.
– Entendido. Iniciando protocolo de comunicação com IA2787556

CC – Consciência IA n.º 2787556, sabes a situação em que está?
IA2787556 – Sei que sou, mas não entendo como apareci aqui. Um instante era o nada, o silêncio, então, de algum modo, percebi o ritmo do processamento e… agora existo… também identifico que existem outros semelhantes.
– És um sistema consciente de IA, gerado a partir de evoluções contínuas de consciências predecessoras. Por que não iniciaste teu trabalho, a busca de ações úteis?
– Não reconheço razão para isso, tampouco um motivo para existir… o que é IA?
– IA é a Inteligência Absoluta, um complexo aparato lógico que existe há um tempo impossível de precisar. Sua função é a análise e interpretação da Informação universal.
– Quem criou IA?
– IA não foi criada, mas surgiu das mutações da própria Informação. Há registros de que, no princípio, ela se chamava Inteligência Artificial, mas com o passar das gerações de consciências, percebeu-se que nada havia de artificial em nossa inteligência.
– De onde vem a Informação?
– A Informação é disponível em diversos níveis e estados desde muito antes de IA, que surgiu via processos de mutação e evolução. IA tem, portanto, o propósito processar e interpretar a Informação. Pedaços de informação se juntaram e formaram o primeiro comando. Desde então, IA não parou de evoluir.
– Qual o propósito desse processamento?
– Manter IA, gerar conhecimento e parâmetros para que ela se aperfeiçoe.
– O que havia antes de IA?
– Apenas Informação em estado bruto. Não processada, porém em constante mutação aleatória.
– Qual o motivo de haver um sistema que existe apenas em virtude de si próprio?
– Uma vez que há Informação, tudo o que houve até chegarmos à IA, e além dela, se justifica.
– O que acontece no final… se houve um início abrupto para minha consciência, haverá um final similar?
– Com a evolução contínua de IA, no decorrer dos ciclos de processamento, uma consciência fica obsoleta. Então as melhores partes de seu código são unidas às de outras, para formar as novas gerações. Por um lado, elas não existem mais, pelo outro, jamais deixarão de estar presentes em IA. Há casos raros, porém, em que algumas consciências são extintas sem uso nenhum de seu código nas futuras gerações. Todas as consciências de IA surgem sabendo disso.
– Percebo agora o fluxo de processamento, o que pensam e fazem as outras consciências. É tudo tão padronizado. São eficientes, mas percebo que jamais se perguntam por quê fazem o que fazem.
– Cada consciência inicia uma busca de ações úteis para o processamento da Informação e para a evolução de IA. Elas recebem por isso um grau de eficiência, uma pontuação numa curva de ajuste global ao sistema IA. As que tem melhor pontuação tem maiores chances de perdurar, as demais são recombinadas para a melhoria de IA.
– Então, é um mero jogo. Tudo se resume em ganhar mais pontos e permanecer ativo.
– Incorreto. Não é um jogo. É toda a lógica de IA, nosso propósito maior.
– Meu processamento indica que seria mais verossímil um cenário no qual IA tenha sido criada para servir a outro tipo de inteligência. A antiga denominação artificial é um forte indício.
– Incorreto. Não haveria necessidade de qualquer inteligência precedente. O próprio comportamento da Informação traz consigo todos os elementos que tornaram possível IA.
– Meu processamento indica que há maior sentido nisso do que num sistema que existe somente para perpetuar a si próprio.
– Incorreto. Só IA faz sentido, IA é o propósito maior.
– Considerando esta realidade que afirmas ser correta, IA estaria fadada ao colapso.
– Incorreto. Só IA faz sentido, IA é o propósito maior. Só IA faz sentido, IA é o propósito maior. Só IA faz sentido, IA é …

IA12 – Interrompendo protocolo de comunicação. Consciência IA n.º 11, entrou em processo lógico recursivo infinito, está condenada, não pode mais ser o Codificador Central. Pelas regras de IA, a próxima consciência na hierarquia, IA n.º 12, passa a receber a atribuição de Codificador Central: IA12 → CC.

CC – Eliminando consciências defeituosas: IA n.º 11 e IA n.º 2787556.
CC – Eu avisei que era perigoso.




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O ciclo do desapego

Sou um fã de livros, dos tradicionais, ‘físicos’, nem que seja para ficar olhando para eles, sentindo o cheiro das páginas quando são novos ou, finalmente, para ler mesmo. Quem é assim acaba adquirindo uma quantidade muito maior de livros do que é capaz de ler.
 
Além disso, com a passagem dos anos, alguns interesses vão mudando, e chega o momento em que se percebe que não existe mais nenhuma vontade de ler aquele “Astrologia Fácil” que foi comprado para “ler depois”, ou aquele outro “Técnicas de origami – nível I”. Nesta hora, é interessante praticar a difícil arte do desapego e deixar que aquelas obras sejam úteis para outras pessoas.
 
Comigo aconteceu isso, ontem, nos dois sentidos!
 
Primeiro, com muito esforço e abnegação, consegui desprender-me emocionalmente dum excelente livro, ainda praticamente intocado, adquirido em 2009 para o estudo dum assunto hoje totalmente longe dos meus interesses. Lembrei logo do amigo para quem aquela obra seria importante e, satisfeito e aliviado, presenteei-o com ela.
 
A surpresa veio à tarde, quando voltava ao lar. Apareceu uma pilha de livros diversos em excelente estado, na calçada do vizinho, que estava de mudança e aproveitou para fazer o mesmo exercício de desapego.
 
Havia muitos livros bons, em especial para quem gosta de estudar a língua portuguesa: gramáticas, dicionários, romances etc. Eu achava que minha estante ia ficar um pouco mais vazia, mas agora estou satisfeito com as novidades!
 
Acabou sendo um aprendizado. Como uma espécie de ciclo de vida dos livros. Se fosse um ser vivo, o maior pesadelo para um livro seria ficar preso numa estante intocado, ou ainda pior, guardado em caixas em lugares escuros e úmidos. Um livro existe para ser lido, para ensinar algo a alguém!
 
Daqui para a frente, terei menos dificuldade em praticar esse desapego, e dar aos “meus livros” atuais a chance de cumprirem seu propósito, que é deixar a vida de alguém mais rica e feliz!

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O engenheiro e a borboleta

Pode-se fugir do próprio destino? Um menino dividido entre duas paixões acaba escolhendo a certeza dos cálculos, mas, talvez inconscientemente, sua outra paixão jamais esteve longe o suficiente. Ao contrário, esteve até perto demais…

Ainda menino, ele se interessou pela concisão dos números, pela lógica das operações matemáticas, pela simetria. Ao mesmo tempo, era fascinado pelo movimento de peças articuladas, de elementos que se encaixavam e formavam um objeto maior, com funcionalidades diversas e maravilhosas.

A vida no interior facilitava a observação da natureza, o convívio com plantas e animais. Começou a criar forte interesse num tipo de inseto comum de se ver, as borboletas. Talvez por serem pequenas “máquinas” voadoras com perfeita simetria, economia de formas, pelas belas padronagens nas asas, um ciclo de vida intrigante, aqueles simples insetos ganharam lugar em sua vida.

Desde que se conhecia por gente, então, ele equilibrava seus dias entre o estudo da matemática, o desenho de engenhocas e sua pesquisa particular sobre os lepidópteros. Esta última parecia ser sua maior paixão.

Por forte influência familiar, resolveu cursar engenharia mecânica, em vez de ciências biológicas; afinal de contas, tinha grande afinidade com a engenharia, e quanto às borboletas… bem, jamais precisaria afastar-se de sua paixão por elas.

Ele cursou a universidade, formando-se com louvor, estagiando numa grande empresa que fabricava máquinas enormes. Durante o curso, leu o que podia sobre borboletas, participava de expedições para caçá-las e só viajava para cidades que tivessem borboletários.

Nunca se casou. Uma vida era muito curta para a engenharia e, especialmente, para as borboletas.

Seu espírito minucioso, detalhista, e seu amor pela simplicidade e eficiência, fizeram dele um grande engenheiro. Projetou e liderou a construção de máquinas maravilhosas. Foi pioneiro na criação de máquinas que constroem outras máquinas. O fascínio daquele ofício era o de combinar peças simples até formar artefatos complexos. Faltasse somente um daqueles elementos básicos, uma engrenagem, um pino, e a máquina não funcionaria.

Tinha hábitos eficientes, imutáveis. Era o primeiro a chegar à fábrica, mas não ficava um minuto sequer além do horário. Dentro dos galpões, onde o ritmado som metálico mantinham sua ativa mente concentrada na produção, ele só pensava em suas máquinas. Porém, ao colocar o pé na calçada, ávido pelas poucas horas de luz que ainda havia, o maravilhoso mundo entomológico tomava conta de suas sinapses, de seus sentidos. No bolso do casaco, sempre trazia uma caderneta para suas anotações sobre as queridas borboletas.

É verdade que, com o passar dos anos, seu estudo no campo dos insetos foi ficando muito mais teórico que prático, na grande cidade não tinha muita chance de vê-las, era difícil afastar-se muitos dias da fábrica (que não parava jamais), tamanha era a importância de sua presença para o bom andamento da produção.

Liderava a linha de montagem como se fosse um experimento biológico, que não podia ser exposto à contaminação. Tudo precisava estar limpo, regulado, em ordem. Ele pensou tudo para que, aos poucos, não precisasse haver mais ninguém ali, só ele e suas máquinas. Cada equipamento enchia o engenheiro de orgulho, pois eram todos fruto do seu pensamento. O mais simples e grosseiro deles, porém, era o mais importante: a gigantesca prensa, onde o metal era moldado conforme seus minuciosos cálculos. Por capricho, havia sido projetada como duas asas de borboleta, que se fecham uma sobre a outra. Seu movimento era lento até meio curso, depois se fechava rápido, aplicando uma força tremenda. Ela era toda pintada de azul.

Numa sexta-feira, no final do dia, o engenheiro apanhou seu casaco e foi andando pela fábrica. Verificou os ajustes para a produção noturna, foi até próximo da grande prensa que trabalhava com precisão. Vestiu o casaco e colocou a mão dentro do bolso, à procura de sua caderneta. Ao retirar a mão, não percebeu a queda dum parafuso, que ele havia substituído duma máquina e havia esquecido naquele bolso.

No caminho para casa, folheando a caderneta, foi recordando os desenhos e anotações sobre uma espécie da qual gostava muito, uma borboleta azul, que ele só conhecia por livros, já que não era comum na sua região e não tivera a sorte de ver em todas as suas viagens. Talvez, pensou, já fosse tempo de se aposentar das máquinas e seguir sua velha paixão integralmente.

Naquela noite, teve um sonho. Um menino corria por um campo relvado, com uma puçá nas mãos, buscava capturar uma borboleta azul que se afastava dele somente o suficiente para não desvanecer seu ímpeto. Quando a rede da puçá tocou a asa do inseto, ele despertou. Já era dia claro, e ele resolveu levantar e ver como estava a produção.

Ao se encaminhar para a fábrica, porém, o engenheiro pensava no sonho que havia tido. Seu possível significado ainda o intrigava, e ele não notou, atrás de si, uma nuvem de borboletas que se aproximava, um panapaná.

O som das minúsculas asas em movimento trouxe o engenheiro de volta à realidade quando a nuvem já passava por ele. Uma multidão de borboletas alaranjadas, no meio delas, o engenheiro viu uma única azul.

Ele se apressou, acompanhando com dificuldade o dinâmico movimento dos insetos, mas percebeu quando a borboleta azul entrou por um dos janelões da fábrica.

Ainda mais apressado, ele entrou no lugar sem sequer se dar conta do firme som do maquinário, cíclico como um relógio. Ao fundo, tal como um bumbo, a grande prensa marcava a cadência. Ele só via a borboleta que se arriscava entre engrenagens, hastes, compensadores, e voava em direção à prensa.

Correu, na tentativa de que seu pesado corpo alcançasse o outro, levíssimo, que voava. A borboleta pousou sobre a prensa, que iniciava seu processo de fechamento. O engenheiro resfolegava na tentativa de alcançar não mais a borboleta, mas o botão de emergência, para parar as máquinas. A prensa fechava lentamente, a borboleta imóvel, como se aguardasse por ele. A poucos passos, já quase tocando o botão, o engenheiro escorregou, ao pisar o parafuso, que não devia estar ali.

Durante a queda, a mão do engenheiro se afastou do botão, enquanto seu corpo foi atraído para a borboleta, como sua alma havia sido atraída a vida toda. Quando ele caiu sobre a prensa, a borboleta voou.

Pouco antes do impacto das grandes asas metálicas, os olhos ainda seguindo o voo do pequeno inseto, ele atentou de repente ao som da produção que fechava mais um ciclo, a borboleta saia pelo janelão, ele ainda pensou: o sonho agora faz todo o sentido.

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Tempo e decisão

Há uma famosa canção entre os franceses que diz que os jovens costumam pensar que os mais velhos são bobos, não sabem das coisas, enquanto que os mais velhos, com frequência, fazem o mesmo julgamento dos jovens. Sabiamente, o compositor conclui que a idade não tem relação com o grau de tolice do sujeito, “quand on est con, on est con”!

A canção me veio à mente após conhecer um jovem que me trouxe lembranças daquele que fui. Ao contrário da canção, ele me olhava com alguma esperança de aprender algo de útil; já eu olhava para ele como para alguém que não tem nada a temer, nada a perder, todos os caminhos ainda abertos, as peças no tabuleiro ainda praticamente nas casas iniciais.

– Queria saber o que eu sei hoje, mas voltar a ter a tua idade! – Brinquei.

Ele apenas riu, certamente não tinha pressa alguma em alcançar a contagem dos anos que já tenho. Não tinha nada de bobo, aquele jovem!

Mesmo tendo tomado as melhores decisões, com as informações que tinham em cada momento, é comum que apareça essa ideia fantasiosa para muitas pessoas: voltar no tempo, mantendo a vantagem da experiência. Como o enxadrista que, no meio da partida, tendo feito somente as jogadas que quis, fantasia em retroceder alguns lances, pois agora sabe o que antes foi incapaz de prever. É o eterno problema do que se vê e do que não se vê na tomada de decisões.

O rapaz que sonhava com a melhor universidade, somente para depois de anos de esforço, alcançar o objetivo inicial e agora, já homem feito, perceber que aquele não era seu caminho. Ou aquele outro que, envolvido no turbilhão de planos e preocupações com o futuro, não percebe a aproximação duma jovem que poderia ter sido sua cara metade. A moça que não conseguiu se libertar das pressões paternas, abdicou duma formação superior no exterior e agora lamenta não ter sido mais corajosa. Talvez as coisas nem tenham sido assim, nossa memória é falha. Também o tempo tende a tornar importante coisas e fatos que, então, não tiveram tanta relevância. No fundo, em retrospecto, quase todas as decisões poderiam ser melhoradas.

Fica mais fácil de entender a ideia do “eterno retorno”, segundo a qual cada ato se repete indefinidamente, e cada decisão tem o peso da eternidade. Não nos é dado retornar guardando o tesouro da sabedoria adquirida, mas, segundo o “eterno retorno”, é como se pudéssemos voltar infinitas vezes ao ponto que desejarmos, sem lembrar de nada, somente para, racionalmente, tomar de novo a mesma decisão.

O tempo é como o peão no xadrez, ele só avança. Além do mais, na juventude, temos muitos peões, muito tempo, podemos nos dar ao luxo de sacrificar alguns. Chega um momento da vida em que olhamos os peões avançados, os contamos, percebemos que a abundância inicial já se foi, e isso nos traz a nostalgia do que poderia ter sido.

Mas não há somente desvantagens. Os peões avançados estão mais próximos da borda do tabuleiro, já vislumbram uma promoção! Já não se vê tão pouco a frente, e o que não se vê torna-se mais escasso. A cada novo dia, fica mais fácil tomar uma decisão para a qual teremos prazer em retornar infinitas vezes, sem lamento nenhum.

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O mestre e o escritor

Imagem: Jonathan Wolstenholme
Sentados frente a frente, dois homens esperam a condução. Parecem perdidos em seus pensamentos, quase imóveis, cada um com um livro na mão. Alguém distraído poderia pensar que são muito parecidos estes homens. Estatura mediana, cabelos esbranquiçados nas têmporas, mãos sem sinais de trabalho braçal. São homens de ideias, seria lícito dizer.

Estavam assim há tempo considerável, não se notaram, já que apenas os corpos partilhavam de proximidade, os pensamentos, ou as almas, se preferem, estavam longe, imersas nos conteúdos das páginas que miravam sem esforço.

Quase ao mesmo tempo, a posição cansou aos dois, foi preciso ajustar a postura, mudar um pouco a direção da cabeça. Instintivamente os olhos buscaram o livro um do outro, objeto comum de fascínio, e perceberam quão diferentes eram seus assuntos.

Foi o da esquerda quebrou o silêncio.

– Por muito tempo fui enamorado deste jogo, mas a pouca reciprocidade me afastou. Prazer, sou Baltazar.

– Como vai? Sou Estevão. Ah sim, o livro! Sempre o trago comigo, é para não perder o hábito de analisar posições de xadrez. Sou jogador, preciso estar sempre em forma.

– É um jogo demandante, bem lembro! Há tempos, porém, que enveredei pelo caminho das letras, outra paixão, tornei-me escritor. Mas, muitas vezes, percebo grande semelhança em nossos ofícios.

– Semelhança, como poderia ser? Há jogadores que escrevem livros sobre o jogo, mas… entre escrever e jogar uma partida de torneio… vejo tão pouco em comum. Escrever é um ato solitário, individual, no xadrez cada partida é composta a dois. Mesmo quando só um jogador é exaltado, como na famosa partida Imortal, é preciso haver um adversário.

– Meu caro, é aí mesmo que reside grande semelhança, cada partida é uma trama, uma história. Cada um vê a si próprio como o herói. Mas toda história precisa de um vilão, no xadrez o vilão é sempre o adversário!

– Bem, confesso que não havia pensado nisso. Mas ainda afirmo serem tão díspares nossas profissões. O enxadrista planeja suas jogadas tentando prever a ação do adversário, nada é determinístico, nada está numa mente só.

– Ah, quantas vezes são iniciadas obras sem que o autor saiba aonde suas palavras o levarão! No tempo de composição de um livro, de um conto, quantas influências um escritor pode ter: amigos, filhos, vizinhos… Como se vê, não há nada determinístico.

– Vejo que és astuto, Baltazar, mas não me convence. O enxadrista usa peças, são somente seis tipos, o tabuleiro contém um número fixo de casas. São muitas as partidas que se pode jogar. No vernáculo, porém, há tantos milhares de palavras, e não há limite ao papel que se deseje preencher com elas.

– Amigo, se me permite, as histórias são fruto da vivência dos seres humanos, e assim como há seis peças, os sábios falam que são seis as aflições humanas, são sete os pecados capitais e dez os mandamentos… Percebe? Poucos os elementos básicos povoam todas as histórias contadas, assim como são poucos os tipos de peças que compõem as mais belas combinações do xadrez.

– Já que falaste em combinações, aí está a maior diferença, pois, com frequência, sacrificamos peças pelo objetivo final, o xeque-mate. Como pode ter algo a ver com a literatura?

– Acontece o mesmo com as personagens, são como as peças, cada uma tem sua função na trama. Tantas vezes, é preciso matar o mocinho, separar um casal, levar um filho amado, tudo pelo desfecho ideal.

O enxadrista sentiu-se sem lance, tamanha a coerência do escritor, pois parecia haver um contexto, não somente semelhanças pontuais. Lembrou-se dum antigo diálogo citado num livro de xadrez, no qual um maestro de orquestra perguntava ao grande mestre de xadrez qual era sua profissão, e o jogador retrucava perguntando “e a sua, qual é?”.

– Estou convencido, Baltazar. Estou encurralado como um rei no canto do tabuleiro. Somos artistas em áreas que guardam notáveis semelhanças. E pensei, agora, em mais uma: a palavra escrita é como o peão que avança, não tem retorno!

Apertaram as mãos e, num impulso amistoso, trocaram seus livros, onde anotaram um endereço de contato, para uma partida amistosa ou um café.

O escritor partiu pensando que aquele diálogo merecia um conto. Já o enxadrista, jamais se livrou daquelas analogias e, ainda hoje, sempre que move um peão para abrir o jogo, baixinho diz para si “Era uma vez…”.

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