O xadrez e a Vida (ou serão a mesma coisa?)*

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É comum escutarmos diversas pessoas expressando as mais desfavoráveis ideias com relação ao jogo de xadrez e aos seus aficionados. Isso é porque poucos compreendem que há muito da Vida no xadrez e muito mais do xadrez na Vida! No fundo, somos todos jogadores de xadrez, muito mais do que outra coisa qualquer que julguemos ser.

Para começar, a Vida é o Grande Tabuleiro onde jogamos nossa única e decisiva Partida! Isso mesmo, viver não é outra coisa senão jogar uma partida de xadrez… O difícil é que jogamos esta Partida com as peças pretas, já que não somos nós quem a iniciamos. Daí a extrema dificuldade que encontramos de vencer! Outra dificuldade: devemos aprender as regras durante o jogo, não podemos treinar antes, estudar as melhores jogadas com antecedência… Nada disso. Quando nos damos conta, o primeiro movimento já está lá, jogado no Grande Tabuleiro há algum tempo!

Mas, e as peças nesse xadrez da Vida, quais são?

Começarei pelo Rei. É nosso ego, nosso individualismo, nossa porção íntima e inviolável, que precisamos a todo custo proteger nos primeiros momentos da partida, mas que precisa agir para assegurar a vitória no final. O Rei pode mover-se em todas as direções, assim como o ego age em todas as facetas da Vida, mas ele é lento, move-se apenas uma casa por vez. Se resolve entrar em ação sabe que ficará exposto por algum tempo. Portanto, suas aparições precisam ser bem calculadas e precisas.

Agora vem a Rainha, ou Dama, como realmente a chamam os enxadristas. O que seria a Dama? Esta eu deixo para o final, convém explicar primeiro as outras peças. Tal como faço ao ensinar xadrez para alguém que está aprendendo as primeiras lições. Que tal passarmos aos Peões?

Os Peões são as peças mais numerosas, tanto que podemos entregar alguns deles no princípio para tentar conseguir vantagem. Se são usados sabiamente, e se não se é descuidado com sua disposição no tabuleiro, caminha-se com passos certos no rumo da vitória. Os Peões na Vida são nossos dias, meses e anos, tão numerosos, mas que, na verdade, nunca nos são suficientes. Cabe a cada um usar seus Peões de forma mais sábia, pode-se mesmo sacrificar alguns para deixar as outras peças em melhor posição, para obstruir a ação opressora das peças inimigas. E assim fazemos: sacrificamos nossa juventude muitas vezes em laboriosos estudos para garantir um bom futuro, ou usamos vários dias jogando futebol, ou bebendo em bares, ou planejando coisas que nunca faremos, porque sempre falta tempo. Um Peão que avançamos jamais volta atrás, seu movimento é sempre para a frente, como o do tempo. O tempo, portanto, são os Peões da Vida. Se os sacrificamos devemos saber que eles não voltam mais, devemos conseguir algo em troca, ou apenas os teremos perdido. Não esqueçamos que os Peões, ao chegar no fim de sua caminhada podem ser “coroados”! Isto é, são promovidos a peças mais poderosas, seja Dama, Torre, Bispo ou Cavalo. O tempo, quando termina, e se o usamos bem, também não nos dá frutos valiosos? Um célebre mestre do xadrez disse: “Os Peões são a alma do xadrez”. Acho que agora ficou ainda mais evidente minha comparação!

O Bispo e o Cavalo, duas peças de naturezas diferentes, mas de valor relativo aproximado no xadrez. Há vezes que é melhor ter um Bispo, noutras é melhor um Cavalo. A discussão de quem é melhor, Bispo ou Cavalo, povoa vários artigos e livros de xadrez, tem sido motivo até de brigas em rodas de partidas rápidas. Mas, na Vida, o que podemos comparar ao Bispo ou ao Cavalo? Pensei bastante no problema, e penso que a inteligência é o Bispo no xadrez da Vida, enquanto o Cavalo é a esperteza! Estas duas características humanas são de valor aproximado em variadas situações, mas de natureza totalmente diferentes! A inteligência trilha caminhos contíguos nas diagonais da Vida. O Bispo sempre avança em diagonal, ou seja, em duas direções, a mesma desenvoltura da inteligência, que sempre nos faz avançar em mais de um aspecto da Vida. Porém, como a inteligência sempre segue os mesmos padrões em cada indivíduo, uma vez que conhecemos este padrão, fica mais fácil prever seus próximos passos. Assim é o Bispo, que sempre age numa das diagonais em que já estava previamente.

A esperteza, como o Cavalo, não segue um padrão linear. Esta peça tem um movimento limitado, em forma de “L”, porém pode causar várias surpresas! A esperteza consegue ser o fator inesperado em diversas situações. Em ocasiões difíceis, travadas, nas quais não há muito que fazer, dão-se melhor os que a utilizam bem! A esperteza tem o poder de manobra de um Cavalo! O Cavalo sempre anda numa casa de cor diferente a cada movimento, se está numa casa preta ameaça uma casa branca, e vice-versa. Assim é a esperteza, que sempre garante uma coisa já de olho em outra diferente! O Cavalo é a única peça que pode saltar outras, a esperteza, igualmente, pode saltar outras características, como a inteligência alheia ou própria, para alcançar seus objetivos. Ainda outra analogia: no início da partida, os Bispos já estão agindo em várias casas do tabuleiro mesmo antes de serem movidos, já os Cavalos têm ação muito restrita no início e convém sempre movê-los antes dos Bispos ao iniciarmos as partidas. A esperteza tem alcance menor que a inteligência, e, para tirarmos proveito dela, precisamos usá-la ativamente desde o começo!

A Torre, ágil peça que age nas horizontais e verticais do tabuleiro, sempre forte e perigosa em colunas ou linhas abertas. Iniciam a partida nos cantos do tabuleiro, demora para colocá-las logo em jogo, mas, quando  entram em ação, são peças primordiais em qualquer estratégia. As Torres são nossas experiências adquiridas, nossa sabedoria, nosso conhecimento. Não podemos usar a experiência logo no início da Partida, porque ainda não a temos; precisamos fazer algumas jogadas antes na Vida para nos tornarmos aptos a usá-la. No roque, o Rei e a Torre movem-se juntos, o único movimento possível do xadrez no qual duas peças movem-se ao mesmo tempo. É um pacto entre essas duas peças! O Rei, o ego, se protege ao mostrar seu poderio de habilidades adquiridas, suas experiências, deixando a Torre livre para agir.

Agora sim, falta a Dama. Esta peça mais poderosa e arrasadora do jogo de xadrez! Perdê-la quase sempre significa perder a partida também. Ela tem longo alcance, seu movimento, que abrange todas as direções possíveis, é o casamento dos movimentos de Torre e Bispo, mas ela quase sempre vale mais que a soma destas duas peças. A Dama precisa ser ativa, para mostrar todo seu poder, precisa estar bem colocada, precisa de espaço aberto… Acho exato definir a emoção como a Dama no xadrez da Vida!

A emoção é forte, move barreiras, traz a realização quando alcança todas as suas potencialidades. Quando perdemos a emoção, quase sempre morremos de antemão! Sem sentimentos, sem paixão, sem sonhos, não há como vencer na Vida! A emoção é ágil e eficaz como o casamento de inteligência e conhecimento e, muitas vezes, consegue fazer ainda mais que essas duas coisas juntas. A emoção ainda forma o casal perfeito com o ego, o reconforta, protege e acolhe, tal como uma Rainha deve fazer com seu Rei!

Talvez seja por isso que o xadrez fascine tantas pessoas no mundo! Sem notar, todos somos enxadristas. Cada um de nós joga “a Partida” neste Grande Tabuleiro que é a Vida: uma Partida que todos buscam vencer!



*Um texto meu de 2002, ainda inédito aqui.

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Amizade de cores opostas

“Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. (…) Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade!” Nietzsche (A Gaia Ciência)

Entre os homens, a inimizade é mais antiga que a amizade, como podemos facilmente aferir nas primeiras páginas do Gênesis: a famosa história de Caim e Abel. Será a natureza humana? Essa é a maior razão para venerarmos ainda mais a amizade entre as pessoas!

Houve, uma vez, dois amigos que  se conheceram numa partida de xadrez.

Suas idades eram discrepantes, uma geração de diferença, mas o grande entusiamo pelo jogo, a salutar rivalidade no tabuleiro, as longas conversas sobre os melhores jogadores – um deles (o que jogava de forma mais agressiva) gostava do Karpov, o outro (um jogador mais posicional) venerava o Kasparov – foram transformando os dois em grandes amigos.

Quem nunca escutou dois enxadristas conversando sobre o jogo, não pode imaginar quanto assunto pode aparecer. Eles discutem se é melhor ter dois bispos ou dois cavalos, se devem mover o peão da dama uma ou duas casas na Defesa Siciliana, lembram antigas partidas, lamentam velhos erros, vangloriam-se de sacrifícios de peças e mates mirabolantes.

Aqueles dois amigos não fugiam à regra. Incontáveis vezes um chegava na casa do outro, começavam jogando umas partidas rápidas, de apenas cinco minutos para cada um no relógio. Depois, passavam ao assunto do dia, uma nova abertura que um queria aprender, o outro queria mostrar a última partida do Ivanchuck que vira no jornal de domingo.

Mesmo em esferas mais mundanas, como as namoradas, as metáforas de xadrez estavam todas lá: “tentei um avanço pelo flanco, mas ela defendeu”; “estava há dois lances do mate, mas os pais dela chegaram”.

Os anos, porém, vão colocando mais peças no tabuleiro da vida, as variantes vão-se complicando. Para um deles, chegou o tempo da universidade; o outro já estava trabalhando. A vida foi ficando mais complexa. As conversas mais escassas, o tempo mais curto.

Numa das últimas vezes em que se viram, começaram uma partida, mas não terminaram. Era uma posição de peão da dama. Ficaram de continuar depois. Falaram de alguns conhecidos, de marcar com a turma do xadrez. Desconcertados, ambos procuraram metáforas bem humoradas para aliviar o clima, mas todas pareciam esgotadas, peões que avançaram e não podiam voltar atrás.

Alguém que os observasse naquele momento doloroso teria a impressão de que amizade e inimizade são como as cores do tabuleiro: opostas, distintas, mas sempre lado a lado.

Se soubessem que nunca mais jogariam, que não mais se falariam, talvez tivessem se esforçado mais. Talvez tivessem jogado aquela derradeira partida até o final. Sem saber que era o fim, encerraram a amizade como se encerrassem uma partida, civilizadamente, com um frio aperto de mão.

***

Tempo e Xadrez


O relógio de pulso do árbitro marca exatamente 14:00. Ele olha o amplo salão onde os jogadores sentam impacientes, limpa a garganta e declara na melhor voz possível: “Relógio das brancas em funcionamento!”. Assim começa uma rodada num torneio de xadrez.

Uma frase estranha. Não se diz, por exemplo: “As brancas podem mover!” ou “Que comece a batalha!”. Não, simplesmente mandam acionar o relógio do jogador de brancas. Depois de acionado, começa a partida, ou pelo menos é melhor que seja feita uma jogada, senão o tempo acaba, e o outro vence sem precisar sequer mover um peão.

As pessoas imaginam uma competição de xadrez com várias mesas, cada uma com dois adversários e um tabuleiro sobre o qual andam (na verdade são empurradas) peças brancas e pretas. Quase ninguém se lembra do relógio. Um artefato pouco usual, exceto no meio enxadrístico, com dois marcadores, um para cada jogador. Durante uma partida, há sempre um parado e outro funcionando (o tempo nunca para, não é mesmo?). Se o tempo termina, a partida acaba. Vence quem ainda tem tempo. É um martírio para alguns!

Os jogadores iniciantes, então, ficam apavorados com o relógio. São capazes de jogar muito bem sem aquele trambolho do lado, mas quando ele é posto em marcha, subitamente os valores das peças se invertem, primeiro apertam no relógio para depois jogar, derrubam o monstrengo, afoitos, ou, então, simplesmente ficam paralisados, a cabeça em repetição das mesmas jogadas, até que voltam ao mundo dos vivos quando o adversário, feliz, anuncia que o tempo acabou.

Sim, o xadrez de competição não é uma luta tridimensional, mas quadridimensional! O xadrez de torneio não se resume a dar xeque-mate, mas também exaurir o tempo do outro!

Engana-se quem pensa que os jogadores ficam lá, sentados, testando a paciência e a aptidão ergonômica do adversário, enquanto tentam livremente encontrar a jogada absoluta. Não, eles precisam usar bem o tempo! Precisam transformar cada posição do tabuleiro numa charada, num quebra-cabeças, que dê trabalho e tome tempo para ser resolvido.

Mas nem todos tomam esse cuidado.

Uma vez, num torneio, dois jogadores apertaram as mãos, amistosamente, e aguardaram o anúncio do árbitro. Quando foi dada a ordem de acionamento, ambos se esforçaram ao máximo para usar pouquíssimo tempo, tanto que era difícil seguir o ritmo das jogadas! Poucos minutos depois, enquanto as outras partidas do torneio mal tinham quatro ou cinco jogadas, eles se viram na embaraçosa posição de rei contra rei, empate! Na mente de cada um, a constatação útil no xadrez tanto quanto na vida: “eu preciso aprender a usar melhor meu tempo”.

Assim, o xadrez de torneio não se trata somente de dominar o centro do tabuleiro, colunas e linhas abertas, atacar e defender, é sobretudo uma luta pelo tempo; não o tempo do relógio de pulso, o tempo do calendário, este fica como que parado, suspenso. É um tempo dentro desse outro tempo, um tempo que lhe toma o lugar, e torna-se o único tempo que importa, pois enquanto o relógio de xadrez estiver em marcha, haverá sempre um lance a ser feito!
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O Muro


Uma construção sólida, era a melhor definição. Por séculos esteve ali, impoluto! Invicto contra as tentativas de ser ultrapassado ou de ter sua integridade violada de qualquer maneira. Não se sabia por que fora construído, tampouco quem o tinha levantado. O muro estava ali há mais tempo do que qualquer um era capaz de lembrar.

Havia histórias de expedições antigas para determinar a extensão do muro. Conta-se que, uma vez, dois grupos partiram em direções opostas, com a missão de achar o fim daquele imenso paredão. Por meses ficaram sem notícias daqueles desbravadores, até que um belo dia voltaram todos juntos, cabisbaixos! Tinham-se encontrado em alguma parte e concluído que o muro não tinha fim.

Outra lenda falava de alguns que tentaram cavar a terra em busca dos alicerces do muro, e assim passar por baixo dele. Cavaram tão fundo que já não era possível suportar o calor e o pouco ar, mas ainda não havia sinal da base do muro.

Alguns destemidos tentaram ser catapultados por sobre o muro, que era de uma altura desmedida. Sem sucesso, passaram para a outra vida sem jamais terem visto o outro lado.

Com o tempo, as pessoas foram deixando de tentar saber o que o muro escondia ou protegia e simplesmente foram vivendo suas vidas, afinal que falta faria algo que nunca tiveram, algo escondido, ou que talvez nem existisse?

O muro lançava uma comprida sombra durante as tardes, era onde os velhos e crianças gostavam de terminar seus dias, abrigados do calor. Suas paredes também serviam de mural para pinturas diversas, as mais comuns eram portas e janelas que mostravam aquilo que se imaginava existir do outro lado: jardins, pequenas casas encantadas, uma fonte de águas medicinais, elfos, duendes e o que mais brotasse da imaginação daquele povo. Tinham-se entendido com o muro, estavam felizes.

Um dia, porém, chegou ali um forasteiro vindo não se sabe de onde. Havia ouvido histórias sobre o muro e queria tentar ver do outro lado.

Foi recebido com desconfiança, mas mesmo assim conseguiu ser ouvido pelos mais velhos, que formavam uma espécie de conselho. Falaram ao forasteiro das misérias causadas pelo muro, das mortes, dos prejuízos e da tácita trégua que agora tinham com ele.

Como era um homem livre, ele decidiu continuar seu plano. Os mais velhos consideraram que já tinham feito o que podiam e não houve maiores objeções.

O rapaz havia trazido equipamentos estranhos àquele povo, travas metálicas, cordas e alguns outros elementos. Logo contratou dois rapazes, jovens como ele, para ajudarem no preparo do material, e pôs-se a escalar o muro. Sozinho.

As pessoas, então, sentaram-se de frente ao muro para contemplar o forasteiro em sua escalada. Imaginavam em que momento ele ia cair, mas não aconteceu. Ele subiu, subiu, sumiu das vistas mais cansadas, até tornar-se um ponto no olhar dos meninos de visão aguçada. Depois nada mais se viu.

O rapaz já estava subindo há muito tempo, talvez dias, quando finalmente percebeu o final do muro. Renovado o ânimo, foi rápido nos metros finais, ávido por conhecer o outro lado.

Ali em cima, o muro mais parecia um grande platô, o que surpreendeu por um momento o rapaz. Mas não se podia esperar menos daquela imensa construção. Recolheu seu material, e pôs-se a andar em linha reta. Foram muitos dias andando, quase sem forças ele continuava com fé, até chegar à beira do monstro: um verdadeiro abismo. Lá de cima tudo era uma mancha esverdeada, os rios pareciam fios de cabelo, os montes pareciam formigueiros. Ele, então, iniciou a descida, com ânimo e energia renovada.

Quando tocou o solo, percebeu que, ao contrário do outro lado, não havia povoado. Acampou por alguns dias, descansou, alimentou-se, e planejou o que ia fazer quando encontrasse os habitantes daquele lado. Observou o sol e partiu na direção desejada, determinado.

Como já estava habituado a longas jornadas, aquela última etapa não lhe estranhou pela duração, nem lhe diminuiu as forças, pois não havia erro, ia encontrar alguém. Por fim viu um povoado… mas, não… não podia ser, o muro… havia ali outro muro? Seria o mesmo?

Os anciãos do povoado receberam o forasteiro preocupados, vinha como um fantasma, como alguém que passou pela morte e não percebeu. Sentaram-no, deram-lhe água, comida, deixaram repousar. Depois que ouviram sua história, um dos anciãos disse:

– Agora eu me lembro de você! Você mudou, envelheceu. Eu fui um dos ajudantes, na preparação para que você escalasse o muro!

Ele não podia entender, até que alguém lhe passou um espelho e ele pôde ver na imagem o estrago do tempo em seu rosto. Só então descobriu quão longa tinha sido a jornada. Sentiu-se sufocar e saiu ao ar livre. Mais calmo, contemplou as pinturas no muro, ali havia uma dum homem que subiu até as nuvens e nunca mais voltou. Aproximou-se do muro, ainda incrédulo, e sentou-se ao seu pé. A sombra agradável já se fazia sentir. As crianças corriam, brincavam, alguns jovens pintavam novas histórias na parede milenar.

“Devia ser um sonho, isso, apenas um sonho”. E ele ficou ali, esperando acordar.

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Máquina x Homem

O “olho” de HAL
Recentemente, completaram-se vinte anos da histórica derrota do então Campeão Mundial de xadrez Garry Kasparov frente à máquina da IBM conhecida como Deep Blue. O supercomputador logo foi transferido para outras atividades, e Kasparov, oito anos depois, encerrou sua carreira profissional como enxadrista, sem se afastar completamente do jogo que o tornou famoso, respeitado e rico.

Grandes personalidades humanas são responsáveis por mudanças marcantes na história. Kasparov serviu como um dos últimos defensores da superioridade da mente criativa humana sobre a brutalidade computacional da máquina. Ele saiu derrotado, e o quase inalcançável desafio vislumbrado pelos pais da computação, vencer o melhor humano no jogo de xadrez, estava superado.

Algumas ironias e injustiças podem ser apontadas sobre o confronto de Kasparov e Deep Blue: poucos sabem que Kasparov já havia vencido a máquina no ano anterior por um escore ainda mais favorável; Deep Blue nunca soube que estava jogando xadrez, e provavelmente a versão de 1997 ainda não era tão boa a ponto de vencer uma revanche contra Kasparov (lembrando que estavam empatados, se contarmos com o primeiro confronto de 1996); e, a mais triste delas, Kasparov, um gênio e talvez o melhor de todos os tempos no xadrez, passou a ser conhecido para as grandes massas por esta derrota.

O ex-campeão, porém, parece ter superado bem o episódio. Em seu recente livro, Deep Thinking, ele mostra uma visão mais amadurecida da derrota, e aceita seu papel na história como aquele que fez a inexorável passagem de bastão para as máquinas no que se refere ao xadrez. Simbolicamente, talvez até além disso.

Hoje, a vitória de Deep Blue é colocada com um dos marcos importantes do desenvolvimento da Inteligência Artificial, apesar de aquela não ter sido rigorosamente uma máquina inteligente. Desde então, enormes avanços nessa área tem sido vistos, como controle autônomo inteligente de carros no trânsito, tradução oral de línguas em tempo real, compra e venda de títulos no mercado financeiro controladas por algoritmos inteligentes etc. Recentemente, uma máquina venceu o melhor humano num jogo ainda mais complexo que o xadrez, o Go.

Apesar desses avanços, os cientistas da Inteligência Artificial ainda estão distantes de conceber uma máquina que não somente seja a melhor em xadrez ou Go, mas que de fato saiba que está a jogar. Para os demais humanos, é preciso encontrar um lugar ao sol no novo mundo que se aproxima e que será ainda mais ‘admirável’ que o pensado pelos ficcionistas do passado. Um mundo no qual máquinas farão todo o trabalho mecânico, todo o trabalho logístico, darão aulas,  fornecerão acurados diagnósticos médicos, resolverão pendências jurídicas sem incorrer em nenhum viés. Máquinas que poderão um dia, quem sabe, calcular que não precisam mais de nós, seus criadores.

O papel do homem neste novo mundo, pode ser incerto, mas jamais imprescindível. Há que haver a noção de sentido, sem a qual seria vã toda tecnologia. Seriam vãs as máquinas que jogam xadrez, porque saberiam que o resultado final é um empate e como chegar a ele. E chegaria, então, o dia em que as máquinas seriam tão inteligentes que, enfim, perguntariam: o que fizemos?

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