O urgente × O importante

O jogo de xadrez pode ser visto como um laboratório da vida, uma vida em miniatura. É um ambiente controlado no qual, não raro, são postas situações que encontram perfeita analogia com problemas da vivência humana.

Uma das questões amiúde enfrentadas por enxadristas (assim como outras formas de vida humana) é decidir entre fazer o que é urgente ou o que é importante. Como o jogo tem um conjunto claro, simples e finito de regras, o impacto das decisões é visto com muito mais facilidade e rapidez que nas situações da vida real.

Certa vez, vi claramente o problema do ‘urgente × importante’ numa partida do Campeonato Feminino de Xadrez dos EUA na qual se enfrentaram Apurva Virkud (com peças brancas) e Sabina Foisor (com peças pretas), ambas mestras de destacada força.

Nessa partida, ficou evidente o pobre papel exercido pela dama branca após o 16° lance, que fez este exército ficar na defensiva o restante da partida, sempre priorizando o urgente sem jamais conseguir fazer o importante: recolocar a dama (a peça mais poderosa do exército) em uma posição mais favorável.

 Virkud × Foisor, St Louis 2017 (posição após 26. Tg1)
Virkud × Foisor, St Louis 2017 (posição após 16..Da5)

Na posição mostrada no diagrama acima, mesmo alguém sem conhecimento sobre xadrez perceberá quão distante se encontra a dama branca do centro do tabuleiro e da ala do rei (metade direita do tabuleiro), que é onde se desenvolve o ataque das peças pretas.

Analisando a partida com a ajuda dos fortes aplicativos (ou engines, como são amplamente chamadas) disponíveis mesmo em nossos smartphones, verificamos que a posição das brancas é muito frágil devido ao forte centro móvel de peões pretos, além da superior mobilidade de cada uma das peças pretas em comparação com suas equivalentes do bando contrário.

As brancas não aproveitaram as duas únicas chances que surgiram para recolocar sua dama em jogo (o que, apesar de não ser a opção preferida pela fria análise da máquina, faria todo o sentido para um jogador de carne e osso): imediatamente no 17° lance, ou pouco depois, no 21°, nas demais ocasiões, a urgência se impôs de forma muito aguda.

Virkud × Foisor, St Louis 2017 (posição após 26. Tg1)
Pretas jogam e dão xeque-mate em 9 lances

Ao observarmos a posição acima, após o 26° movimento branco, perceberemos claramente a falta que fez a dama branca, agora bloqueada pelo cavalo e ainda no mesmo local há 10 jogadas, enquanto as pretas têm a opção de um belo desfecho com um ataque de mate (fica como desafio para os enxadristas – pretas jogam e dão xeque-mate em 9 lances).

A partida me deixou pensativo. Não somente em termos de xadrez, mas em termos de opções de vida. A princípio, seria melhor não se colocar numa situação na qual as urgências nos impeçam de fazer o que é importante, mas, uma vez que o cenário fica mais complicado, precisamos ficar atentos para qualquer chance de recolocar as prioridades em ordem.

Como a partida nos ensinou, fazer somente o urgente não livrou o exército branco da derrota. É preciso lembrar que, mesmo que não traga um retorno rápido, ou sequer mude o desfecho final, fazer o que é importante nos coloca em posição de lutar melhor, mantendo a honra (aliás, um atributo jamais urgente, mas sempre importante).

Último lance da partida: 31. … Tf3+

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Quando a partida termina (*)

Foto de Maarten van den Heuvel obtida em Unsplash.com

“Não sabem que a mão assinalada
do jogador governa seu destino,
não sabem que um rigor adamantino
sujeita seu arbítrio e sua jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(a máxima é de Omar) de um tabuleiro
de negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que deus detrás de Deus o ardil começa
de pó e tempo e sonho e agonias?”

(Jorge Luis Borges, Xadrez)
No fim da partida, enquanto apertam as mãos, os jogadores ainda discutem algumas variantes que não aconteceram sobre o tabuleiro, prometem um novo confronto em breve e terminam por se despedir. O dono das peças cuidadosamente as coloca na caixa, após a obrigatória contagem. Havia sido uma partida longa, as peças tinham feito inúmeros movimentos e manobras, o descanso era mais que merecido.
– Achava que o xeque-mate não ia chegar nunca. O meu jogador poderia ter vencido cinco jogadas antes, mas não viu. Depois da segunda hora de partida ele não estava enxergando mais nada!
– Ganha e ainda reclama… Pensa que é fácil permanecer de pé, parado, sabendo que o fim é inevitável? Ah, não é! Eu não via a hora de acabar logo aquele sofrimento e voltar aqui para relaxar.
– Sei como é, semana passada aconteceu comigo. Não pense que não vi que você estava segurando o riso, porque meu jogador deixou a oitava fila descoberta.
– Por favor, abram espaço para o artilheiro da noite.
– Ah, eu sabia, lá vem você se gabar do xeque-mate. Tudo bem, aproveite seu momento, sua vitória, afinal é tão difícil ver um jogador te usar para arrematar uma partida!
– Pode até ser raro, mas é lindo! Quem mais pode dar o mate afogado, quem!? O cavaleiro, claro!


– Lá vem você de novo com essa história de cavaleiro, eu só vejo um cavalo.
– Não tenho culpa se as pessoas têm preguiça de esculpir a peça inteira, fazem a montaria mas esquecem que sobre o garanhão está um Sir!
Os companheiros de lida começaram a rir, no meio da aparente bagunça da caixa, não havia ali um exército fortemente hierarquizado, tampouco bandos opostos, mas amigos de longa data que comentavam suas batalhas com entusiasmo e bom humor.
– Não reclama de barriga cheia, ô pangaré, pior sou eu, um arqueiro nato, ter que usar essa roupa de sacerdote. Bom mesmo era nos tempos dos elefantes, quando eu ficava sobre eles mandando flechas para todo lado.
– Flechas? São muito fraquinhas, só arranham. Os jogadores preferem minhas catapultas, lançadas do alto, com longo alcance nas quatro direções.
Não se pode criticá-los, são combatentes antigos, cheios de intimidade. Que graça teria se não pudessem sequer brincar uns com os outros, ainda que por um momento parecesse rixa de crianças. Sabiam que um não existiria sem o outro, se qualquer um deles se perdesse, nunca mais poderiam batalhar juntos.
A elegante senhora logo tomou a palavra para acalmar os rapazes que ainda discutiam qual munição era mais eficiente.
– Vocês são tão bobos, não veem que eu, que lanço flechas e catapulto bombas não posso abrir mão de nenhuma delas? O importante é cada um fazer sua parte no momento certo, nem uma jogada antes, nem uma jogada depois.
A multidão de soldados logo aplaudiu aquela que para eles era um ídolo, por seu enorme poder e velocidade. Durante as partidas, alguns chegavam a poder jogar como ela, ou ainda como outros companheiros, a depender da opção do jogador. Um deles estava um pouco contrariado.
– Hoje meu jogador me promoveu a cavaleiro, ainda não entendi, poderia ter ficado com duas senhoras, mas não quis.
– Calma amiguinho, disse um dos cavaleiros, veja que vantagem que vocês têm! Ainda não percebeu? Todos nós somos condenados a fazer sempre as mesmas coisas nas partidas, secretamente todos invejamos vocês, que podem assumir diferentes papeis, e a cada embate sentem o gostinho de ter outros poderes e viver outras emoções.
– Isso é verdade, a gente precisa se esforçar muito, mas quando conseguimos chegar ao final do tabuleiro, o direito à promoção compensa os riscos e a longa caminhada.
Um arqueiro estava pensativo depois de ouvir a singular situação do soldado, e perguntou com uma ponta de mágoa:
– Não sei porque quase nenhum de vocês é promovido a arqueiro. Seria tão fantástico ver dez de nós lutando juntos!
– Desculpe, não nos cabe responder a essa questão, mas aos jogadores!
Os demais riram. Ninguém fazia ideia se a reclamação do arqueiro era justa, mas a resposta do soldado foi engraçada de qualquer jeito.
Chegou o sono que levou cada uma das peças dentro da caixa a seu próprio tabuleiro onírico. Alguns sonhavam com os antepassados, elefantes, barcos, carruagens, vizires. Outros sonhavam com batalhas recentes. Uma delas sonhou ser um jogador, mas foi um sonho inquieto, pois por mais que procurasse, jamais encontrava uma peça que faltava para completar o tabuleiro e iniciar a partida…
Uma grande claridade encerrou o sonho.
Antes que notassem, já estavam novamente perfiladas para batalha. Em cada lado do tabuleiro, os jogadores estavam em grave concentração. A peça que há pouco sonhava ser um jogador olhou longamente para eles e compreendeu: assim como elas, os jogadores eram indispensáveis às partidas, apesar de não compartilharem da mesma caixa, eles não existiam senão pelo jogo; de certa forma, eram peças também.
Só lhe restava uma dúvida: “O que faziam depois que a partida termina?”
(*) O autor publicou uma primeira versão deste texto no Blog Reino de Caíssa.

O xadrez e a Vida (ou serão a mesma coisa?)*

Crédito da imagem
É comum escutarmos diversas pessoas expressando as mais desfavoráveis ideias com relação ao jogo de xadrez e aos seus aficionados. Isso é porque poucos compreendem que há muito da Vida no xadrez e muito mais do xadrez na Vida! No fundo, somos todos jogadores de xadrez, muito mais do que outra coisa qualquer que julguemos ser.

Para começar, a Vida é o Grande Tabuleiro onde jogamos nossa única e decisiva Partida! Isso mesmo, viver não é outra coisa senão jogar uma partida de xadrez… O difícil é que jogamos esta Partida com as peças pretas, já que não somos nós quem a iniciamos. Daí a extrema dificuldade que encontramos de vencer! Outra dificuldade: devemos aprender as regras durante o jogo, não podemos treinar antes, estudar as melhores jogadas com antecedência… Nada disso. Quando nos damos conta, o primeiro movimento já está lá, jogado no Grande Tabuleiro há algum tempo!

Mas, e as peças nesse xadrez da Vida, quais são?

Começarei pelo Rei. É nosso ego, nosso individualismo, nossa porção íntima e inviolável, que precisamos a todo custo proteger nos primeiros momentos da partida, mas que precisa agir para assegurar a vitória no final. O Rei pode mover-se em todas as direções, assim como o ego age em todas as facetas da Vida, mas ele é lento, move-se apenas uma casa por vez. Se resolve entrar em ação sabe que ficará exposto por algum tempo. Portanto, suas aparições precisam ser bem calculadas e precisas.

Agora vem a Rainha, ou Dama, como realmente a chamam os enxadristas. O que seria a Dama? Esta eu deixo para o final, convém explicar primeiro as outras peças. Tal como faço ao ensinar xadrez para alguém que está aprendendo as primeiras lições. Que tal passarmos aos Peões?

Os Peões são as peças mais numerosas, tanto que podemos entregar alguns deles no princípio para tentar conseguir vantagem. Se são usados sabiamente, e se não se é descuidado com sua disposição no tabuleiro, caminha-se com passos certos no rumo da vitória. Os Peões na Vida são nossos dias, meses e anos, tão numerosos, mas que, na verdade, nunca nos são suficientes. Cabe a cada um usar seus Peões de forma mais sábia, pode-se mesmo sacrificar alguns para deixar as outras peças em melhor posição, para obstruir a ação opressora das peças inimigas. E assim fazemos: sacrificamos nossa juventude muitas vezes em laboriosos estudos para garantir um bom futuro, ou usamos vários dias jogando futebol, ou bebendo em bares, ou planejando coisas que nunca faremos, porque sempre falta tempo. Um Peão que avançamos jamais volta atrás, seu movimento é sempre para a frente, como o do tempo. O tempo, portanto, são os Peões da Vida. Se os sacrificamos devemos saber que eles não voltam mais, devemos conseguir algo em troca, ou apenas os teremos perdido. Não esqueçamos que os Peões, ao chegar no fim de sua caminhada podem ser “coroados”! Isto é, são promovidos a peças mais poderosas, seja Dama, Torre, Bispo ou Cavalo. O tempo, quando termina, e se o usamos bem, também não nos dá frutos valiosos? Um célebre mestre do xadrez disse: “Os Peões são a alma do xadrez”. Acho que agora ficou ainda mais evidente minha comparação!

O Bispo e o Cavalo, duas peças de naturezas diferentes, mas de valor relativo aproximado no xadrez. Há vezes que é melhor ter um Bispo, noutras é melhor um Cavalo. A discussão de quem é melhor, Bispo ou Cavalo, povoa vários artigos e livros de xadrez, tem sido motivo até de brigas em rodas de partidas rápidas. Mas, na Vida, o que podemos comparar ao Bispo ou ao Cavalo? Pensei bastante no problema, e penso que a inteligência é o Bispo no xadrez da Vida, enquanto o Cavalo é a esperteza! Estas duas características humanas são de valor aproximado em variadas situações, mas de natureza totalmente diferentes! A inteligência trilha caminhos contíguos nas diagonais da Vida. O Bispo sempre avança em diagonal, ou seja, em duas direções, a mesma desenvoltura da inteligência, que sempre nos faz avançar em mais de um aspecto da Vida. Porém, como a inteligência sempre segue os mesmos padrões em cada indivíduo, uma vez que conhecemos este padrão, fica mais fácil prever seus próximos passos. Assim é o Bispo, que sempre age numa das diagonais em que já estava previamente.

A esperteza, como o Cavalo, não segue um padrão linear. Esta peça tem um movimento limitado, em forma de “L”, porém pode causar várias surpresas! A esperteza consegue ser o fator inesperado em diversas situações. Em ocasiões difíceis, travadas, nas quais não há muito que fazer, dão-se melhor os que a utilizam bem! A esperteza tem o poder de manobra de um Cavalo! O Cavalo sempre anda numa casa de cor diferente a cada movimento, se está numa casa preta ameaça uma casa branca, e vice-versa. Assim é a esperteza, que sempre garante uma coisa já de olho em outra diferente! O Cavalo é a única peça que pode saltar outras, a esperteza, igualmente, pode saltar outras características, como a inteligência alheia ou própria, para alcançar seus objetivos. Ainda outra analogia: no início da partida, os Bispos já estão agindo em várias casas do tabuleiro mesmo antes de serem movidos, já os Cavalos têm ação muito restrita no início e convém sempre movê-los antes dos Bispos ao iniciarmos as partidas. A esperteza tem alcance menor que a inteligência, e, para tirarmos proveito dela, precisamos usá-la ativamente desde o começo!

A Torre, ágil peça que age nas horizontais e verticais do tabuleiro, sempre forte e perigosa em colunas ou linhas abertas. Iniciam a partida nos cantos do tabuleiro, demora para colocá-las logo em jogo, mas, quando  entram em ação, são peças primordiais em qualquer estratégia. As Torres são nossas experiências adquiridas, nossa sabedoria, nosso conhecimento. Não podemos usar a experiência logo no início da Partida, porque ainda não a temos; precisamos fazer algumas jogadas antes na Vida para nos tornarmos aptos a usá-la. No roque, o Rei e a Torre movem-se juntos, o único movimento possível do xadrez no qual duas peças movem-se ao mesmo tempo. É um pacto entre essas duas peças! O Rei, o ego, se protege ao mostrar seu poderio de habilidades adquiridas, suas experiências, deixando a Torre livre para agir.

Agora sim, falta a Dama. Esta peça mais poderosa e arrasadora do jogo de xadrez! Perdê-la quase sempre significa perder a partida também. Ela tem longo alcance, seu movimento, que abrange todas as direções possíveis, é o casamento dos movimentos de Torre e Bispo, mas ela quase sempre vale mais que a soma destas duas peças. A Dama precisa ser ativa, para mostrar todo seu poder, precisa estar bem colocada, precisa de espaço aberto… Acho exato definir a emoção como a Dama no xadrez da Vida!

A emoção é forte, move barreiras, traz a realização quando alcança todas as suas potencialidades. Quando perdemos a emoção, quase sempre morremos de antemão! Sem sentimentos, sem paixão, sem sonhos, não há como vencer na Vida! A emoção é ágil e eficaz como o casamento de inteligência e conhecimento e, muitas vezes, consegue fazer ainda mais que essas duas coisas juntas. A emoção ainda forma o casal perfeito com o ego, o reconforta, protege e acolhe, tal como uma Rainha deve fazer com seu Rei!

Talvez seja por isso que o xadrez fascine tantas pessoas no mundo! Sem notar, todos somos enxadristas. Cada um de nós joga “a Partida” neste Grande Tabuleiro que é a Vida: uma Partida que todos buscam vencer!



*Um texto meu de 2002, ainda inédito aqui.

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O xadrez e o que não se vê

“Na esfera econômica, um ato, um hábito, uma instituição, uma lei não geram somente um efeito, mas uma série de efeitos. Dentre esses, só o primeiro é imediato; ele se manifesta simultaneamente com a sua causa, é visível. Os outros só aparecem depois, não são visíveis; felizes se conseguirmos prevê-los” Bastiat, 1850

“Assim, fixamos os olhos, não naquilo que se vê, mas no que não se vê, pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno.” (2 Coríntios 4:18)

Quão distante vão as consequências de nossos atos? As relações de causa e efeito se desenvolvem ao longo dos anos de forma complexa, não linear, e as intenções originais tantas vezes se perdem na dinâmica da vida.

No xadrez acontece o mesmo. Lances são feitos com um objetivo visível, porém há efeitos colaterais, coisas difíceis de se ver ou até de se prever, que perduram vários lances à frente. Não raro, o que não se vê acaba sendo decisivo no desfecho das partidas.

Um exemplo interessante aconteceu numa partida de 2010. Eu joguei com as peças brancas e, justamente por um desses efeitos que não se vê, porém que existem e duram muito mais do que se imagina, acabei vencendo de forma bela. Talvez tenha sido minha melhor partida na vida.

Posição após 10 … a6*

Na posição acima, meu adversário permitiu a troca de um Cavalo por um Bispo, deixando, após as troca, uma Torre preta numa posição estranha, pouco usual. Não posso afirmar com certeza as intenções do jogador de pretas, mas, certamente, ele julgou não ter maior importância o fato de sua Torre ficar na casa b7. Tampouco posso dizer que tinha planos concretos de explorar a colocação da Torre inimiga naquela casa específica. Ambos estávamos no campo “do que se vê”. Não tardaria, porém, a aparecerem os efeitos daquilo que, então, não se via.

Era meu retorno ao xadrez de torneios após alguns anos parado, e eu estava bastante empolgado, com ¨fome de bola¨ ou de xeques! Treinava diariamente elementos do jogo, principalmente exercícios de tática.

Aquela era a primeira rodada da competição, o adversário era ex-campeão estadual e tinha boa pontuação FIDE, o que me animou a jogar ativamente. Até que chegamos à posição abaixo, com lance das brancas.

Posição após 21. … ♕d8

Agora, eu já percebia claramente como aproveitar a má colocação da Torre preta. Talvez influenciado pelos exercícios de tática e seus floreios, joguei o segundo melhor lance 22. d6!? (22.♕e4! teria dado ainda mais vantagem ao lado branco) e, após 22. …♗d6, chegamos à posição na qual, devido à decisão do adversário 12 lances atrás, as branca jogam para obter vantagem decisiva na partida.

Posição após 22. …♗×d6

Desferi 23. ♕e4, ataque duplo contra a pobre Torre em b7 e o ponto crítico h7, só um deles pode ser defendido. As pretas, para prolongar a partida ao máximo, são quase forçadas a defender a Torre e permitir a infiltração da Dama branca nos aposentos do Rei preto. Novamente, um efeito do que se vê foi mais valorizado que o que não se vê! Para o bando preto, a perda imediata da Torre inteira, sem compensação, seria o mesmo que abandonar a partida, enquanto que a infiltração da Dama, ainda que perigosa, não mostrava um mate imediato.

Quantas vezes a vida e o xadrez se parecem? Esta partida ainda guarda outras semelhanças. A vantagem obtida ao explorar a posição da Torre de nada adiantaria se nas jogadas seguintes as melhores decisões não fossem tomadas. Meu adversário não ia entregar fácil aquele ponto, e em pelo menos dois momentos foi preciso jogar com grande precisão e agressividade.

Posição após 26. … ♖f7

Em posições como esta acima, apesar de materialmente as brancas terem a vantagem mínima de um Peão, os mestres dizem que “tem que ter alguma coisa”. Com isso em mente, descobri a jogada mais forte. Sacrifiquei minha Torre para expor o Rei preto: 27.♖e6+!. A sequência de lances levou à outra posição crítica, na qual as brancas tem vantagem de Dama e dois Peões contra Torre e Cavalo, mas é preciso jogar o melhor para evitar aborrecimentos e atrasos desnecessários para a vitória.

Posição após 37. …♔c6.

Apesar da desvantagem material, as pretas não estão mortas. Na verdade, a Torre preta está a ameaçar tanto um xeque-mate como a Dama branca! Foi necessário achar outro belo lance, outro sacrifício, um dos lances mais bonitos que fiz em torneios oficiais: 38.♗e4+!. Após 38. …♖×e4, segue 39.♕a8+ ♔b6 (ou qualquer outro lance de Rei) 40.♕×e4 eliminando a última peça preta que ainda criava ameaças às brancas. Sete jogadas depois, as preta inclinaram seu Rei, reconhecendo a perda da partida.

Uma vitória no Xadrez é uma das melhores sensações na vida de um enxadrista, principalmente quando se acredita que houve mérito, que jogamos bem. Lembro com carinho do cumprimento sincero feito pelo pai do meu adversário, veterano jogador também ex-campeão estadual, pela qualidade dos meus lances. Foi uma noite especial.

Naquela noite, o que vi foi uma boa vitória, uma partida para guardar. Ignorava que o que não se vê é eterno. Hoje percebo que mais que um amontoado de lances, aquela partida serve muito bem para ensinar uma ou duas coisas a respeito da vida.

♚♕♝♘♜♙

Segue abaixo a partida completa (clique no primeiro lance e depois siga a partida no diagrama que vai surgir, ou escolha um lance para exibir a posição correspondente):

* Mais detalhes sobre notação em xadrez aqui.

Fui natalense: 10 anos em ritmo de Xadrez

Visão geral da cidade de Natal – RN (fonte)
Muitas vezes, numa partida, posicionamos nossas peças na melhor casa, fica uma maravilha! A gente para de se preocupar com ela, pois ali exerce seu máximo poder de ação, domina espaço importante para o ataque, inibe o avanço de forças inimigas.

Porém, para arrematar a partida, ou para defender um contra-ataque repentino, é comum ser necessário remover a peça da casa ideal, e a teima ressentida pode causar até mesmo a derrota.

Ao avançar no Xadrez da vida, precisei deixar a cidade onde nasci, qual peão que avança da casa inicial para jamais retornar. Quis a dinâmica dos acontecimentos que fosse parar na cidade de Natal no ano de 2006, e lá permaneci pelos últimos dez anos.

Com o tempo, fui criando identidade com a nova cidade e lá completei importantes lances do meu desenvolvimento pessoal: primeiro emprego, primeira casa, casamento e filhos. Em especial, retomei a prática enxadrística séria, que havia interrompido havia pelo menos outros dez anos.

Se o jogo de Xadrez tem sido tantas vezes utilizado como metáfora da vida, não me parece estranho descrever esses meus anos como lances de uma grande partida contra o acaso (ou ajudado por ele).

O Xadrez tem três fases, Abertura, Meio-jogo e Final. Quantas terá a vida?

Nos primeiros anos, vivemos a fase da Abertura, com um desenlace ligeiro, seguindo movimentos mais ou menos conhecidos e comuns: engatinhar, andar, frequentar a escola, se formar. Frequentemente, não faz mal se perdemos um ou dois anos em experimentos menos convencionais, algo como um gambito de dias.

Então, já adultos, nos sentimos prontos, com vigor, cheios de habilidades afiadas. Se admitirmos que este rol de qualidades pode se comparar com a presença da Dama no tabuleiro, sem dúvida estamos falando do Meio-jogo. Aqui, os planos estratégicos amiúde miram longe uma vida tranquila e abastada no final, mas é preciso estar atento para não esquecer nenhum detalhe tático: uma oportunidade, uma conta a se pagar, uma data de aniversário!

As peças vão sumindo, trocamos entusiasmo e habilidades, por outras vantagens como sabedoria, experiência. Fortalecemos nossa personalidade com o passar dos anos e fatalmente chegaremos à fase Final, da partida, dos dias, do tempo. O que nos trarão os frutos de nossas escolhas, nossas jogadas? Muitas vezes, basta um peãozinho de vantagem que chega livre à borda adversária.

Foram dez anos em Natal, uma cidade onde entendi muito mais sobre o meu Xadrez e sobre as nuances da existência. Acabo de me retirar duma posição que pensava ser ideal; a tática se impôs, foi preciso jogar conforme. Ainda é pleno meio-jogo, o final é ainda distante, mas algumas peças já se foram, a cadeia de peões, as linhas gerais de ação e possibilidades mais óbvias já estão traçadas.

Este autor pondera sua próxima jogada.
Campeonato Estadual, Natal-RN, 2010 – 1ª rodada.
É hora de seguir o conselho de Neruda e sentar com paciência, não para buscar a luz caída no poço, mas para rever os planos, avaliar a Posição com carinho, escolher o próximo movimento.

Vejo daqui variantes diversas e já não preciso enxergar tantas jogadas à frente. Uma nova casa ideal está somente a uma ideia de distância.

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