O Gambito da Rainha: xadrez em nova série da NETFLIX

Com “O Gambito da Rainha”, o xadrez volta a ser tema principal numa série NETFLIX. Escrevo aqui minhas impressões após o primeiro episódio.

Os grupos de xadrez aguardavam há meses a liberação da série “O Gambito da Rainha” (The Queen’s Gambit) da NETFLIX. A expectativa era grande, alguns temendo o enfoque que seria adotado sobre o jogo (e sobre os jogadores).

Como acontece com diversas obras cinematográficas, a série é baseada no livro homônimo lançado em 1983 pelo escritor Walter Tevis.

A história se inicia em 1967, quando a protagonista, Elizabeth (Beth) Harmon (interpretada na infância por Isla Johnston e na fase adolescente/adulta por Anya Taylor-Joy), perde a mãe (aparentemente uma doutora em matemática com problemas pessoais) e é acolhida num orfanato. A tragédia é o caminho que leva Beth até um jogo ainda desconhecido para ela: o xadrez.

Imagem: Netflix (Isla Johnston como a pequena Beth Harmon)

Enxadristas costumamos ser bastante exigentes com histórias que trazem nosso amado jogo como destaque, mas acredito que não há o que temer, pois atuaram como consultores de xadrez nesta série nada menos que Garry Kasparov (dispensa apresentações) e Bruce Pandolfini (famoso técnico norte-americano que também atuou nesta função no clássico “Lances Inocentes”).

Assim como no recente filme que também tratou de xadrez, “The coldest game”, certamente alguns outros estereótipos nem tão positivos sobre jogadores de xadrez voltarão a ser explorados (como aliás, acontece em filmes sobre outros esportes também). Não vejo isso necessariamente como algo negativo, a ficção tende a exagerar certas coisas, vejo isso como o preço a se pagar para que nosso jogo esteja presente em obras relevantes de grande alcance popular.

O primeiro episódio busca nos situar na história de Beth Hermon e como o xadrez entrou em sua vida. Há elementos do que conhecemos das histórias sobre a forma como Capablanca aprendeu xadrez, ainda muito jovem, apenas vendo outras pessoas jogando.

As clássicas menções a exibições de simultâneas e ao jogo às cegas também estão presentes, a meu ver com bastante sucesso, sem exageros.

Trazer uma menina como prodígio de xadrez é algo muito bem vindo, certamente uma inovação do livro que deu origem à série, escrito antes do sucesso das irmãs Polgar. Beth vence os estereótipos da época (infelizmente ainda presentes nos dias de hoje), quando desafia a frase dita por um adversário: “mulheres não jogam xadrez”. Lance de mestre, merece duas exclamações!

Sem dúvidas (...) será um grande incentivo ao xadrez, e não somente ao xadrez feminino.. Click To Tweet

Sem dúvidas, a penetração da série em muitas casas brasileiras (e mundo afora) será um grande incentivo ao xadrez, e não somente ao xadrez feminino. Não vejo a hora de assistir ao segundo episódio!

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Xadrez no NETFLIX: The Coldest Game

Xadrez, cinema e Guerra Fria estão novamente juntos no lançamento do NETFLIX: The Coldest Game (2019). Uma produção polonesa estrelada por Bill Pullman. As referências a fatos históricos do xadrez são abundantes.

Xadrez e matemática costumam ser paixões correlatas para muitos. Um recente lançamento da NETFLIX uniu esses dois assuntos ao perene e interessante tema da Guerra Fria: The Coldest Game (Partida Fria, na versão não tão adequada do título em português).

Usando elementos da atmosfera do match Spassky × Fischer pelo título mundial, o Match do Século, que realmente aconteceu em 1972, o diretor polonês Lukasz Kosmicki traz o xadrez como peça central na famosa questão dos mísseis soviéticos em Cuba no ano de 1962 (portanto quase uma década antes de Spassky × Fischer), talvez o ponto mais alto da chamada Guerra Fria entre EUA e URSS.

A trama de Kosmicki e Marcel Sawicki (roteirista) utiliza-se de um match entre dois mestres de xadrez como meio de obter informações cruciais sobre as ameaças dos mísseis soviéticos em Cuba.

A disputa seria entre o campeão soviético Grande Mestre Alexander Gavrylov e o campeão norte-americano Grande Mestre John Konigsberg, morto misteriosamente há dias do confronto. É escolhido então o último jogador norte-americano a ter vencido Konigsberg em torneios: um obscuro e ex-professor de matemática em Princeton Joshua Mansky (interpretado por Bill Pullman) , que anos antes fora um genial enxadrista e colaborador do projeto Manhattan, mas ultimamente dedicava-se somente às cartas e ao álcool.

O match se desenrola em Varsóvia, local ideal para que um militar dissidente soviético que fazia parte das forças do Pacto de Varsóvia encontrasse oportunidade para entregar aos americanos informações que poderiam antecipar ou adiar uma guerra nuclear.

Para o fã de xadrez, apesar de alguns erros técnicos (como o match ser composto de um número ímpar de partidas, ou a pressa dos jogadores em mover as peças em momentos chave), o filme traz bastantes cenas empolgantes, como o belo salão onde são disputadas as partidas, closes no tabuleiro sem os habituais erros cometidos em outros filmes, o que permitiu analisar boa parte das partidas do match!

A primeira partida é decidida a favor do americano, felizmente foi possível capturar a exata posição:

Mansky × Gavrylov (ficção, The Coldest Game)

O desfecho deve ser conhecido para alguns enxadristas mais estudiosos, e demonstra o bom trabalho feito pelo Mestre Internacional polonês Andrzej Filipowicz, que foi consultor técnico neste filme no que diz respeito ao xadrez. Ele escolheu um desfecho brilhante que ocorreu numa partida real entre dois poloneses, Tylkowsky × Wojciechowski, disputada em 1931.

Tylkowsky × Wojciechowski (Poznan, 1931)
Posição após 29 … Td2.

A partir do diagrama acima, a partida Mansky × Gavrylov segue com 30.Ca4? (segundo as engines melhor seria 30.f5) … T×b2!! 31.C×b2 c3! 32.T×b6 (único) … c4! 33.Tb4? (seria melhor 33.C×c4, mas a vitória das pretas viria após 33 … c2!!) … a5!!, e Gravrylov deixa a mesa indignado, abandonando a partida. No caso real, Tylkowski ainda resistiu até o 40º lance.

Uma curiosidade é que esse desfecho ocorreu de forma quase idêntica 2 anos depois em Madrid, numa partida entre Esteban Ortueta e Aguado Sanz :

Ortueta × Sanz (Madri, 1933)
Posição após 30 … Td2.

A ocorrência de um tema tão complexo e belo em duas partidas realizadas em anos e países diferentes (quando não havia internet nem Google) torna esse desfecho ainda mais espetacular, talvez por isso tenha sido escolhido para o filme (além de ser um dos pontos altos do xadrez polonês, certamente).

Na segunda partida, é a vez de o soviético levar a vantagem, aproveitando-se de um hipnotizador na plateia que atrapalha Mansky (mais uma vez é pescado algo da história real do jogo, mas que só ocorreu no match de 1978 pelo título mundial entre Anatoly Karpov e Viktor Korchnoi). A posição principal jamais é mostrada inteiramente, o que dificulta sua identificação, mas passa a sensação de que o norte-americano caiu numa cilada de abertura.

A terceira partida sequer é mostrada: empate.

A quarta partida, por sua vez, recebe diversos enfoques diretos, o que permite definir o desenlace no tabuleiro. Na posição abaixo, Mansky, de brancas, propõe empate, mas o soviético diz algo como “A posição do tabuleiro está clara. Não!”. Uma fala estranha, a julgar pelo que se vê no tabuleiro, no qual há igualdade material e ligeira vantagem branca devido à exposição maior do rei preto:

Mansky × Gavrylov (varsóvia,1962)
Partida 4

Mansky segue, então, com uma sequência de lances rápidos, com respostas igualmente rápidas de seu oponente: 1.Db3+ Rh8 2.Tad1 Bd7 3.Bb6 De8 4.Da3 Cfg8 5.Cd5 Bg4 6.Cc7 Dc6 7.Td6 Dc2 8.C×a8 T×a8 9.Bd4 Cf5 10.B×g7+, após o qual Mansky novamente propõe empate.

Desta vez, ao ver que o empate lhe favorecia , Gavrylov levanta-se, cumprimenta seu oponente aceitando a oferta e, em seguida, aplaude o adversário. A referência para este aplauso é o gesto idêntico que fez Spassky ao final da 6ª partida do Match do Século em 1972, quando aplaudiu Fischer por sua brilhante vitória (que dava ao americano a dianteira pela primeira vez naquele match). No filme, a situação do match agora é de igualdade em 2 pontos após 4 partidas.

Gavrylov aplaude seu adversário ao final da 4ª partida

A partir deste momento, no match e na trama central da história, não seria possível qualquer análise sem revelar fatos importantes, razão pela qual deixo o restante para quem se interessar em ver o filme. Garanto que haverá surpresas, como num xeque duplo a descoberto!

Partida Fria vai agradar um amplo público, desde os exigentes enxadristas (que vão avaliar meticulosamente todos os pormenores técnicos) e matemáticos (que vão gostar das diversas referências, como o problema lógico de decidir qual caminho seguir numa encruzilhada por meio de um única pergunta feita a um de dois irmãos, um que sempre mente e outro que sempre fala a verdade, sendo que não se sabe qual é qual), até o público em geral, que sempre recebe muito bem tramas baseados em fatos reais, com guerra, intrigas e espionagem.

É sempre bem vindo um filme que trate o xadrez com decência técnica sem perder a chance de emprestar seu charme e simbolismo às duras batalhas da vida fora dos tabuleiros.

Rubinstein, um lance, duas vitórias

A série sobre posições famosas demanda muitas pesquisas em livros, revistas antigas, fóruns de discussão, que trazem muitas descobertas interessantes, além das diversas sugestões de colegas enxadristas. Tais curiosidades, que talvez não estejam exatamente dentro da proposta da série, com frequência dão origem a uma postagem só para elas.

Num antigo livro com 50 partidas seletas, duas me impressionaram em especial. Em ambas, jogava de brancas o grande mestre Akiba Rubinstein e seus adversários eram (ou seriam) campeões mundiais: Lasker e Capablanca, respectivamente. Rubinstein ganhou dos dois usando uma mesma jogada, embora as posições sejam distintas! Seria um método secreto para vencer campeões do mundo?
Rubinstein nasceu na Polônia (então parte do Império Russo) e foi contemporâneo de Lasker, Capablanca, Alekhine, Tarrasch e Marshall, para falar apenas dos famosos cinco grandes mestres originais. A forte concorrência no período em que esteve no auge de sua força enxadrística pode ajudar a entender porque Rubinstein jamais foi campeão mundial. Outros fatores foram sua condição financeira desfavorecida e a eclosão da I Guerra Mundial, quando Rubinstein estava no ápice de sua forma.

Um match com Lasker estava pré-firmado para 1914, quando começou a guerra, e, depois dela, a penível condição econômica europeia impediu que Rubinstein conseguisse levantar os valores pedidos por Lasker como bolsa mínima para a disputa do título (o mesmo aconteceria depois, quando o campeão já era Capablanca).

Segundo os ratings históricos, Rubinstein esteve pelo menos o entre os quatro melhores do mundo no período entre 1905 e 1915 e foi provavelmente o mais forte enxadrista do mundo entre 1912 e 1914. Justamente neste período áureo foram jogadas as partidas contra Lasker e Capablanca, nas quais Rubinstein usa o mesmo lance para obter a vantagem.

Nas posições acima, as partidas se encontram em seu momento crítico. Contra Lasker, era primeiro confronto entre eles, e Rubinstein precisa encontrar uma forma de retomar a torre sem cair num final desfavorável. Contra Capablanca, também o primeiro confronto entre os dois, o grande mestre polonês preparou uma linha aguda de abertura e precisava achar o único lance que não só evitaria ficar mal de imediato, mas deixa as brancas com posição superior!

Na primeira posição, Rubinstein jogou 18. Dc1!, exatamente o mesmo lance (com outras ideias) que fez na segunda, 17. Dc1!!, obtendo em ambas as partidas vantagens de longo prazo que conseguiu converter em vitória algumas jogadas depois.

O xadrez está cheio de coincidências, mas, como vimos, nem todas as coincidências na vida de Rubinstein foram tão felizes como o ‘Dc1‘. O mestre sempre teve uma saude mental frágil e passou boa parte de seus últimos anos em instituições psiquiátricas, especialmente após a morte da esposa em 1954.

Esses traços da personalidade de Rubinstein chamaram a atenção do escritor russo Vladimir Nabokov, que se inspirou nele (como em outros jogadores do início do século XX) para moldar seu personagem principal no livro A Defesa Luzhin, que depois deu origem a um excelente filme homônimo.

Rubinstein pode não ter passado para a história como um campeão mundial, mas suas combinações terão sempre um lugar cativo nos tabuleiros e no imaginário de gerações e gerações de enxadristas. Na próxima vez que puder fazer o lance ‘Dc1‘, lembrarei do mestre e pensarei com cuidado, pode ser uma arma poderosa, principalmente se meu adversário for um Campeão do Mundo!

No tempo da Lettera 22


Este texto foi escrito numa máquina de escrever portátil, uma Olivetti Leterra 22. Foi presente de um amigo que, ao saber da minha vontade de ser escritor, apressou-se em dar melhor uso à relíquia que mantinha em casa sem serventia.

O simbolismo do presente vinha ao encontro de um comentário que fiz sobre o Finding Forrester. O filme conta a história de um escritor recluso que resolve aconselhar um jovem aspirante a escritor. Um dos artifícios é o uso das antiquadas máquinas mecânicas, muito úteis para dar ritmo à escrita, de forma que as palavras são transferidas da mente ao papel por mera necessidade rítmica.

Apesar de não ser comparável à complexidade de um computador, é impressionante ver em funcionamento os diversos mecanismos da Lettera. É uma máquina velha, portanto já tem seus vícios, como o acento agudo que não volta após ser solicitado e demanda uma intervenção manual (mais manual que de costume).A complexidade destas máquinas é visível a todos, ainda mais na minha que pede a retirada da cobertura para ter acesso às hastes. Já a complexa “mecânica” dos computadores fica escondida, podemos apenas imaginar.

O ritmo realmente ajuda, não se quer parar de ouvir os golpes das hastes no papel, dão a sensação de progresso, de evolução. O suor brota da testa, sinal que o esforço não é só mental; isso pode ser mais um atrativo para as letras, nesta época em que o jargão “menos é mais” só é aceito quando o assunto é peso corporal.

Conforme a tinta vai clareando, novamente a mão larga as teclas, desta vez para mudar a posição da fita bicolor. Outra preocupação que jamais ocorre ao escritor moderno, que no máximo pensará depois se deve imprimir o texto e se há tinta na impressora.

A tarefa de encher uma página A4 também fica mais árdua, pois não se alteram a fonte nem o tamanho dela, nem convém alterar o espaçamento padrão entre as linhas dado pela charmosa alavanca do lado esquerdo, sempre solicitada após o “trimmm”.

Nos tempos atuais, porém, é preciso achar um meio de portar o texto finalizado desta folha de papel única e inédita para um arquivo digital. Enquanto bato as teclas, penso em duas formas, uma rápida e preguiçosa (o scanner) e outra lenta, porém edificante (redigitar em um editor de texto); esta última já será uma ótima oportunidade de revisar o escrito, possivelmente após uma pausa para uma xícara de café.

Fico feliz quando encontro ocasião de usar minha Lettera, é uma forma voltar ao passado, de reconhecer o valor do que foi feito por aqueles que vieram antes de nós, cheios de engenhosidade e carinho pelo ofício. Só assim para descobrir que muitas das obras que nos foram legadas foram fruto não somente de talento e inspiração, também custaram muito suor (acabo de descobrir que minha máquina de escrever não tem ponto de exclamação).
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A realidade, o xadrez e a matrix

Será fácil descobrir o que é real, verdadeiro? Até no xadrez, os grandes campeões divergem em suas opiniões. Um exemplo foi Kasparov x Karpov em 1990.

– Isso não é real?
– O que é “real”? Como você define “real”? Se você está se referindo ao que você pode sentir, cheirar, provar e ver, então “real” não passa da interpretação de sinais elétricos pelo cérebro. Esse é o mundo que você conhece. O mundo como ele era no século XX. Ele agora existe apenas como uma simulação neurointerativa que nós chamamos MATRIX. Você vivia em um mundo de sonho, Neo.
(The Matrix, 1999. Diálogo entre Morpheus e Neo, tradução livre)

Vivemos todos no mesmo planeta, me parece razoável afirmar. Porém, este mundo real em que vivemos é percebido de forma diferente por cada um de nós. A realidade objetiva seria então como uma tela que contemplamos na parede de um museu, e voltamos para casa cada um com uma versão da obra, interpretada com base no que vimos e sentimos.

Mesmo em cenários mais simples que a vida, a realidade não consegue se impor de forma absoluta ao crivo dos sentidos, das crenças, do conhecimento acumulado, ou da falta dele. Um desses cenários pode ser o jogo de xadrez.

Façamos um experimento: tomemos os dois melhores jogadores de xadrez do mundo, coloquemos os dois perante um tabuleiro onde as peças já se encontram numa dada configuração, a que chamamos de posição. Neste caso, a posição faz o papel da realidade objetiva. O que eles diriam sobre ela? Eles concordariam?

Felizmente, podemos usar um caso real de uma partida do Campeonato Mundial de Xadrez de 1990, entre dois dos maiores enxadristas de todos os tempos, Garry Kasparov e Anatoly Karpov. Somos tão afortunados, que existe um documentário sobre esta disputa, no qual os dois grandes mestres explicam suas ideias em cada partida.

A vigésima partida daquele encontro foi decisiva para o desfecho do mundial. O ponto crucial é mostrado no diagrama abaixo, que mostra a posição após o vigésimo quinto lance das brancas:

Kasparov × Karpov (Lyon, 1990) m20 após 25. Cg4.

Vejamos o que eles disseram sobre a posição e sobre a jogada seguinte de Karpov (que tinha a vez e conduzia as peças pretas):

  • Kasparov (aprox. 1:24:23): “Aqui o único lance é 25. … Cd3 (…) Karpov jogou um lance natural 25. … De8, que parece ser muito bom… prega meu cavalo, protege as casas brancas… (…), mas aqui a posição exigia o melhor lance (…) agora (após 25. … De8) as brancas tem vantagem decisiva.”
  • Karpov (aprox. 1:26:20): “Aqui, eu me sentia com posição muito boa, inclusive já considerava como eu poderia até mesmo vencer, mas deveria ter sido mais cuidadoso, como foi demonstrado na partida (…) eu deveria ter jogado 25. … Cd3.”

Assim, durante a partida, os mestres divergiram sobre a natureza da posição e seu resultado provável: Kasparov via a posição como equilibrada, porém demandava cuidados por parte das pretas; Karpov já se sentia muito confortável, pensando que estava prestes a vencer.

Somente a posteriori, no dia que foram entrevistados para o documentário, ambos concordaram sobre a natureza da posição e sobre qual deveria ter sido a jogada correta das pretas. Foi como se o artista aparecesse na galeria e explicasse o que ele havia pintado: tudo ficou claro.

É impressionante como dois especialistas podem divergir tanto quanto a um aspecto objetivo de sua área de expertise. Este exemplo nos mostra que as divergências de percepção e julgamento nas situações mais complexas da vida são inevitáveis.

Vale lembrar ainda, no caso dos mestres de xadrez, que a realidade da posição pode ainda ser diferente do veredito final fornecido por ambos (um provável empate após 25. … Cd3). Um dia os computadores resolverão o jogo, e só então saberemos a resposta. A vida, felizmente, é mais complexa que o xadrez, mesmo (e especialmente) para os computadores.

A MATRIX não pode te dizer quem você é. (The Matrix, 1999. De Trinity para Neo, tradução livre)

Para nós resta compreender o pouco que nos é dado a desvendar da realidade e saber conviver com (e em certos casos, sobreviver a) a versão dos outros que participam conosco deste grande jogo da vida.

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