O mestre grisalho ainda sonha

Sentado, perante o tabuleiro quadriculado, o mestre grisalho segura entre as mãos a criativa cabeça, como se o peso das ideias fosse demais para os músculos do pescoço.

Ele joga uma partida de xadrez.

As peças no tabuleiro não passam de mnemônicos, a posição estática é como mera estação onde o trem da partida para rapidamente e logo volta a seu curso. Na mente do mestre, as peças estão em outra posição, na verdade dançam, voltam ao mesmo ponto e tornam a mover em outras direções; para cada lance feito, dezenas de partidas são imaginadas pelo mestre. Lance após lance, partida após partida.

Por vezes, mira o teto com o olhar perdido, as peças passam ligeiras em sua imaginação.

Há um peça na sétima fila, um peão do adversário. Uma peça curiosa esse peão, vale tão pouco no início do jogo, mas a cada passo que dá, sempre em frente, seu valor aumenta. Um peão nunca olha para trás: só lhe interessa o presente, mas mira o futuro.

Mais um passo e aquele peão passará a ser outra peça. Que peça o adversário colocará no lugar do peão? O mestre pensa nas possibilidades; são quatro opções, ele precisa pensar em todas. Para cada uma, são tantas partidas possíveis. É preciso avaliar cada uma delas. Após assegurar-se que não há risco, ele faz sua jogada, aciona o relógio, anota o lance na súmula e levanta para uma rápida caminhada pelo salão de jogos.

Há quase trinta anos, o mestre repete o ritual quase que diariamente. É um jogador da elite do planeta desde muito jovem; elite que se alterou quase que completamente ao longo dos anos, mas ele permanece em forma, sedento. Já viu passar tantos campeões do mundo, venceu a todos mais de uma vez, mas ele próprio jamais alcançou o título máximo de seu amado jogo. Chegar tão perto e falhar não o desencoraja. Ainda deseja melhorar a cada partida!

O adversário moveu seu peão uma casa, trocando-o por uma dama, e permaneceu sentado, profundamente concentrado. O mestre retorna e senta apressado. Anota ansioso a resposta que vê sobre o tabuleiro. A posição, aquela nova estação que agora aparecia no tabuleiro, tinha passado em sua mente momentos antes, numa das possibilidades que previra. O fim está próximo, ele pode intuir.

São seis movimentos à frente, numa sequência que deixa poucas escolhas ao adversário, por isso as centenas de possibilidades caem para algumas dezenas, mas em cada uma delas ele vê o rei adversário sem saída. Não há mais mistérios, esta tudo claro. Faz seu movimento com firmeza e aguarda a réplica. O adversário desiste, é inútil lutar mais.

Uma alegria juvenil toma seu peito. É assim a cada vitória, um elixir da juventude.

O adversário o cumprimenta reverente (apesar de ser também um virtuoso no jogo, é ainda um rapazote) e sai desgostoso. O mestre segue pelo lado oposto, seus olhos ainda passeiam distantes, verificando lances que não vieram à luz; um dia quem sabe, numa outra partida. Sempre haverá uma outra partida.


A menina e o Ogro

Ilustração de Omar Rayyan
Naquela noite ela mal dormiu, ansiosa com o importante acontecimento do dia seguinte: pela primeira vez enfrentaria o campeão mundial num torneio!

Crescera numa casa repleta de peças, tabuleiros e livros de xadrez, todos em casa jogavam, e ela era a caçula da família. Suas irmãs também aprenderam desde novinhas, e ela não se lembra exatamente em que momento aquilo se tornou sério para ela; quando se percebeu como gente já estava derrotando garotos e garotas bem mais velhos que não escondiam o espanto com as jogadas afiadas na menina.

Apesar de ser a menor em casa, logo ultrapassou as irmãs, não somente pelo talento, mas pelo aperfeiçoamento do método desenvolvido pelo seu pai, que desejava demonstrar que um gênio pode ser criado, sem depender de dádivas inatas.

Ela se acostumou a ser a única menina no meio de homens de todas as idades, desde juvenis a veteranos. Com o tempo, eles passaram a olhar para ela não como uma mulher, uma menina, mas simplesmente um jogador como eles, só que terrivelmente forte. Tinha somente quinze anos de idade quando conquistou o título de Grande Mestre Internacional. Agora, aos dezessete anos, perseguia a meta que o pai incutira em sua mente: alcançar o degrau mais alto, ser campeã mundial geral, entre homens e mulheres!

Tudo aquilo passou como um raio em sua mente no momento em que cumprimentou o campeão no início da partida.

Ele era o mais temido profissional do jogo, toda a energia de seu corpo era concentrada para o melhor desempenho de suas peças sobre o tabuleiro. Muitas vezes, a mera presença dele perto de si era suficiente para desestabilizar os melhores jogadores. Uma de suas armas, além dos fortes lances, era o olhar que lançava sobre os adversários em momentos específicos do jogo, como a degustar o efeito de suas jogadas sobre a mente deles. Também era dado a caretas, razão pela qual, entre os jogadores, ele ser conhecido como ‘O Ogro’.

Ela conhecia bem o campeão, na verdade ela era sua fã, estudara todos os seus jogos, sabia de suas idiossincrasias no tabuleiro e fora dele, por isso os olhares e caretas não a perturbavam. Ela estava preocupada apenas em compreender e refutar as jogadas que ele fazia. Tinha as peças brancas e iniciou a partida avançado seu peão do rei duas casas, sua abertura favorita.

O campeão também empregou sua defesa preferida, e a partida seguiu equilibrada. Após pouco mais de vinte jogadas, a menina sentia a dificuldade de enfrentar o campeão do mundo, não somente pelos olhares e caretas, mas por suas ideias que eram mais profundas que as ideias dos outros grandes mestres, a vantagem de jogar com as brancas havia sido dissipada e agora o adversário é que tinha vantagem.

No trigésimo sexto lance, ambos já com poucos minutos de tempo no relógio, o campeão pega seu cavalo, desloca-o em direção à quarta casa do bispo da dama, e a menina gela: aquilo seria um erro! Ele pousa o cavalo sobre a casa escolhida, segurando as laterais da peça com o indicador e o polegar direitos, libera a pressão dos dedos lentamente até que o cavalo fica livre sobre o tabuleiro, então, subitamente, ele volta a pressionar a peça entre os dedos, retorna-a para a casa de origem e volta a pensar!

“O que ele está fazendo? A peça foi solta no tabuleiro, não foi?”. A menina olha a seu redor, o árbitro não estava próximo da mesa, não havia mais ninguém atento à partida naquele exato instante. Sequer sua mãe ou sua irmã, que estavam na plateia, pareciam ter notado nada de anormal. O que fazer? Ela teria mesmo visto aquilo? Se reclamasse ao árbitro sem provas, ela seria penalizada e poderia perder a partida.

Nesse meio tempo, o campeão voltou a tocar no mesmo cavalo e moveu a peça para a primeira casa do bispo do rei, como se não houvesse nada fora do ordinário nesta ação.

Além da difícil situação no tabuleiro e do tempo se esgotando no relógio, a segurança do campeão aumentou a confusão mental da menina, e ela simplesmente fez sua jogada, anulando qualquer chance de protestar pela falta do adversário.

A partida continuou por mais dez lances, até que a menina abandonou, sem esperanças de salvar seu rei do mate.

Houve um frio e constrangido cumprimento de mãos, e a menina foi se afastando da mesa de jogo. Alguns passos depois, uma ideia tardia lhe trouxe a certeza que faltara na hora decisiva: após a trigésima sexta jogada, o campeão não voltou a encarar a menina sequer uma vez…

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Falsos cognatos

Rainha ‘h6’ na cabeça!
No estudo de línguas estrangeiras, precisamos estar atentos para não cair nas armadilhas dos falsos cognatos, palavras de grafia parecida, às vezes de mesma origem, mas na língua materna tem um significado e na língua estrangeira tem outro muito diferente.
Há muitos exemplos famosos de falsos cognatos entre os idiomas português e espanhol, diversos comerciais de TV exploram com bom humor possíveis confusões.
No xadrez pode acontecer um fenômeno parecido, quando alguém confunde padrões táticos. Por exemplo, há posições com uma configuração muito semelhante de peças chave, porém com pequenos detalhes que fazem toda a diferença. Não raramente, o jogador é enganado pela semelhança, uma vez que os circuitos neurais para reconhecimento de padrões são muito mais rápidos que os circuitos de análise convencional de jogadas e, nem bem começa a pensar, já está com a mão na peça, movendo no puro instinto, pela semelhança com um padrão tático conhecido.

Aconteceu esses dias com Isaias, numa partida rápida. Ele havia acompanhado o desfecho do match pelo campeonato mundial Carlsern × Karjakin e estava maravilhado com o lance final do campeão:
Carlsen x Karjakin WCC2016 m16. Posição após 49. … Rh7.

Carlsen jogou 50. Dh6!, com xeque mate na próxima jogada, não importa a resposta de Karjakin, que abandonou.
Terminar um campeonato mundial com sacrifício de Dama foi um incentivo e tanto para os aficionados do mundo inteiro, inclusive para Isaias que estava há um tempo parado e resolveu jogar umas partidas rápidas no clube.
Ele estava com fome de xadrez, lembrando os velhos reflexos, sobretudo inspirado pelos lances do campeonato mundial. Numa das partidas, apareceu a posição abaixo, Isaias, com as peças brancas, tinha a vez de jogar, pode dar mate em duas jogadas!
Brancas jogam e dão mate em 2. Se pretas jogam, dão mate em 2.
Isaias arregalou os olhos e, num rápido disparo neural, percebeu semelhança absoluta com a posição final do campeonato do mundo (Torre na oitava, peão branco em h5, Rei preto indefeso em h7, Dama mirando h6), e jogou sem nem sentir: 1. D×h6?? ao qual o adversário, feliz, respondeu com 1. … g×h6. Isaias, contrariado, ainda tentou 2. Cg6, mas foi surpreendido com o fatal contra-ataque preto 2. … Th3+! 3. B×h3 Dh2#.
A audiência começou logo a brincadeira, dizendo que Dh6 não é pra qualquer um! Mas pior foi quando ele descobriu que tinha mate simplesmente com 1. Dg6+! f×g6 2. h×g6#. Fora enganado pelo falso cognato tático!
No caminho de casa, Isaias pensou: “Agora eu sei como Karjakin se sentiu quando não viu 20. … C×f2 na 10ª partida…”. E acabou por se consolar: “Até grandes mestres têm seu dia de capivara“!
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