O Xadrez e a dissonância cognitiva

Passamos por um momento difícil no Brasil. Existem grupos com ideologias díspares que exageram suas diferenças de forma a incitar uma divisão na população, o tal do ‘nós x eles’. Cada lado feliz em conferir ao outro o título de ‘Idiota’ (com I maiúsculo mesmo).
 
Pensava nisso após escutar o episódio Dissonância Cognitiva, do podcast Café Brasil, de autoria do escritor Luciano Pires. Neste episódio ele nos fala, entre outros pontos, da importância de se manter atento e não correr o risco de ficar petrificado numa posição ao evitar, até mesmo, ler certos autores ou se permitir escutar opiniões divergentes da sua própria.
 
O Xadrez é um campo de atuação humana onde a convivência com a dissonância cognitiva faz parte da rotina.
 
O enxadrista não pode bater o pé e dizer: agora só jogo com as brancas, ou só com as pretas. Ele pode até fazer birra e nunca jogar nenhuma abertura do Peão do Rei, ou nunca usar a Defesa Siciliana, mas essa atitude jamais fará dele um grande mestre, sequer um mero candidato a mestre.
 
Por que não? Estranharão alguns. Porque na riqueza e diversidade de posições possíveis, na experiência em combater cada uma delas, ora de brancas, ora de pretas, ora atacando, ora defendendo, é que o enxadrista tem a oportunidade de criar sua própria cultura sobre o jogo. É isso que lhe permite aguçar seu estilo ao buscar nos elementos diversos do jogo aqueles que mais se adaptam ao seu temperamento.
 
Se observamos esta característica do Xadrez, que é a mesma da vida, quando gira o tabuleiro, troca-se de lado, muda-se a perspectiva, é preciso jogar com as peças que pouco antes eram nossas adversárias, defender posições nas quais há instantes liderávamos um ataque. O Xadrez é a luta para provar a cada lance que o idiota é o outro, apenas para, na outra partida, mudar de lado, e quiçá admitir que o idiota é você mesmo.
 
Há casos famosos de jogadores que deliberadamente não usam determinadas linhas de abertura de partida por questões, digamos, ideológicas. Um caso interessante era o recentemente falecido GM Viktor Korchnoi.
 
Korchnoi teve uma vida difícil, órfão na União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, depois dissidente do regime e desertor soviético. Em sua trajetória acumulou algumas inimizades famosas no ciclo enxadrístico, uma das mais notórias foi com o GM e ex-campeão do mundo Tigran Petrosian.
 
Petrosian, Korchnoi e Vasyukov (1961) – só o Xadrez os unia
O cisma entre eles merece uma postagem exclusiva, mas o que faz a ligação com o assunto em questão é que Korchnoi jamais jogava lances teóricos introduzidos na prática magistral por Petrosian. Lembro duma ocasião em que li uma partida comentada por Korchnoi que, de negras, enfrentava o então promissor GM espanhol Pablo San Segundo. Era uma Defesa Índia da Dama (DID) e, na quarta jogada, a branca escolheu seguir com 4. a3: “Este lance introduz o Sistema Petrosian da DID. Eu jamais joguei esta posição de brancas, pois seu propositor foi um inimigo de minha vida”.
 
Acredito que, tecnicamente, o grande Korchnoi percebia o valor da contribuição teórica de seu antagônico confrade, porém, por uma forte razão pessoal, conscientemente boicotava o rival. A raiva era tanta que o pobre San Segundo (25 anos de idade na época) transformou-se, momentaneamente, no antigo desafeto de Korchnoi (então com 64 anos de idade) e foi exemplarmente punido no tabuleiro.
 
Apesar de sua carreira tremendamente vitoriosa, talvez por esse tipo de licença técnica é que Korchnoi jamais tenha sido Campeão do Mundo.
Há de se ter cuidado com a dissonância cognitiva. A armadilha de simplesmente negar o lado dissonante pode nos tornar o ‘Idiota’ da história, e quem sabe até seja o que nos atrapalhe a enxergar e chegar mais longe.