Quem disse que rei não ataca?

Short, N . × Timman, J. (Tilburg, 1991)
Posição pós 30. … h5

Para quem só conhece Nigel Short (Inglaterra, 1965 – ) por suas frases polêmicas ou por ter sido um garoto prodígio, vai se surpreender, talvez, em saber que ele produziu, a partir do diagrama acima, uma obra-prima da história do xadrez, contra o conceituadíssimo Grande Mestre holandês Jan Timman.

Short estava na melhor fase de sua carreira, uma fase que seria coroada com a vitória na final do Torneio de Candidatos em 1993 contra o mesmo Timman (na semi-final, Short batera Karpov, que nunca havia sido derrotado por outra pessoa além de Kasparov em matches). Em 1993, Short disputou contra Kasparov o primeiro match pelo título mundial fora da alçada da FIDE desde ‘Euwe × Alekhine ‘ (1937), perdendo para o russo por ampla margem (+1 -6 =13).

Na posição acima, o talentoso inglês percebeu que todas as peças brancas estavam em boa posição; as peças pretas, presas na defesa de pontos importantes, limitavam-se a repetir jogadas. Foi quando ele pensou: “só tenho uma peça que ainda não está fazendo muita coisa nesta partida!” e seguiu com 31.Rh2 Tc8 32.Rg3 Tce8 (é triste a situação das pretas) 33.Rf4 Bc8 34.Rg5 e as pretas abandonam, pois não há como escapar. Caso 34. … Rh7, seguiria 35. D×g6 Rh8 com mate em 4 jogadas que fica como exercício.

Apesar de a manobra ser marcante, talvez não seja tão original assim… Short pode ter buscado inspiração para sua ideia num pouco conhecido mestre do passado…

Teichmann, R . × Aliados (Glasgow, 1902)
Posição pós 27. … h6

A posição acima aparece no diagrama 78 (página 91, o mesmo ano da partida de Short… coincidência?) da rara versão em português do livro Estratégia Moderna do Xadrez, de Ludek Pachman, publicado por aqui em 1967 pela extinta editora BESTSELLER. Consta no diagrama 78 aquele livro os nomes “Teichmann × Beratende”, ou seja, consta de pretas um jogador que jamais existiu! O editor brasileiro apenas reproduziu o que fez o tradutor inglês (que usou uma fonte alemã), que não atentou que a palavra alemã beratende significa ‘consultantes‘ em português, ou seja, um conjunto jogadores que enfrentaram Teichman, consultando-se mutuamente sobre os lances (um outro termo comum para essa situação é ‘aliados’).

Richard Teichmann (Alemanha, 1868 – 1925) foi um mestre alemão da época pré-FIDE, cujo maior triunfo da carreira foi a vitória no Torneio de Karlsbad de 1911, à frente de Rubinstein e Schlechter, ambos derrotados duramente por ele em suas partidas individuais. Tinha um problema num dos olhos que algumas vezes obrigou-o a abandonar competições. Um fato importante sobre Teichmann é que ele tinha escore positivo contra o temido Alekhine (+3 -2 =2), e empatou contra ele um match em 1921.

A posição dos aliados não era tão penosa quanto a de Timman no primeiro diagrama, porém o mestre alemão usou o mesmo método, com sucesso, apesar de que as modernas engines indicam outras opções para as pretas que teriam sido mais sólidas: 28.Rh2 b5 29.Rg3 a5? (29. … Dd6+ teria igualado, segundo o Stockfish) 30.Rh4 g6?? (teria sido melhor 30. … h5, mas a situação já está crítica e as pretas tentaram uma última armadilha! Se 31.f×g6?? Dg5#) 31.Te3 D×g2 32.Tg3 Df2 (agora o Stockfish aponta mate em 10 lances!) 33.f×g6 Df4+ 34.Tg4 Df2+ (acelera o fim em um lance, seria melhor 34. … Dg5+) 35.Rh5 e as pretas abandonam, pois o mate está próximo (faltam 6 lances).

Richard Teichmann (Wikipédia)

***

Bronstein, o mais humano dos grandes mestres

L. Pachman x D. Bronstein
Praga, 1946
Posição após 20. Td2.

“Uma partida que abriu uma nova página no desenvolvimento do pensamento enxadrístico” G. Kasparov


David Bronstein foi o mais humano dos grandes mestres, sem dúvida. Suas análises e ideias sobre o jogo vão além da busca árida por vitórias, mas pela beleza, pela alegria de explorar a vastidão das possibilidades do xadrez. Talvez tenha sido esse seu lado demasiado humano que o fez empatar o match pelo campeonato do mundo contra Botvinnik em 1951 – permanecendo, assim o título com este último. Tigran Petrossian resumiu assim a importância de Bronstein para o xadrez: “Os mais jovens podem pensar que o xadrez moderno começou com coisas como o Informador, mas os jogadores da minha geração sabem que começou com Bronstein”. A prova de que Petrossian não exagerou é que Bronstein é o autor do que talvez seja o mais influente livro sobre o jogo no século XX: Zurich International Chess Tournament, 1953.

Ludek Pachman foi um dos grandes mestres da elite mundial nos anos 50 e 60 (sendo inclusive um dos poucos a ter escore igual contra Bobby Fischer, +2 -2 = 4). Ficou conhecido para a grande maioria dos enxadristas como o autor de obras primas como Modern Chess Strategy.

A posição acima é uma das mais famosas de Bronstein e aconteceu durante o primeiro confronto entre estes dois grandes mestres. O resultado final foi tão avassalador para Pachman que ele jamais conseguiu derrotar Bronstein no restante de seus encontros ao longo dos anos (+0 -5 = 6, o último em 1994)!

Bronstein mostra didaticamente como coordenar a ação concomitante das peças em determinadas casas do tabuleiro (a1, d4 e g3 principalmente), mesmo quando aparentemente as peças estão obstruídas por peças do adversário. O ataque se desenvolve nos dois lados do tabuleiro, ao mesmo tempo, com um só objetivo: matar o Rei branco!

A partida continuou assim: 20.… T×a1! Bronstein explica: “A única esperança branca repousa em seu Bispo de a1. Para demolir os cimentos da posição branca, as negras deveriam tomar o dito bispo com sua torre.” 21.T×a1 B×d4 22.T×d4 C×b3 23.T×d6 D×f2 24.Ta2 D×g3 25.Rh1 D×c3 26.Ta3 B×h3 27.T×b3 B×g2 28.R×g2 D×c4 29.Td4 De6 30.T×b7 Ta8 31.De2 h3+ e as brancas abandonam.

Posição final, 0-1.
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