Sempre vou lembrar da história do Isaías.
Ele era um jogador esforçado, mas pouco hábil, que mantinha a persistência tão somente pelo enorme amor pelo jogo, além de ter no convívio com os outros jogadores a ilusão de uma vida social.
Jogadores são tipos cruéis, brincam com a inabilidade alheia, nunca com a própria. Isaías apenas olhava, à margem, as discussões principais, as rodinhas nas mesas onde os melhores jogadores explicavam os porquês de suas jogadas.
Engraçado perceber como aqueles que se julgavam melhores que os demais se comportavam na mesa de jogo, ao explicar suas ideias: tinham um ar orgulhoso e firme para disfarçar o puro blefe e se empenhavam em ignorar as perguntas pertinentes, mas inoportunas, daqueles aos quais escapavam seus brilhantismos postiços. Capivaras, era como eles chamavam aqueles menos hábeis com as peças, talvez em analogia à simplória mansidão do grande mamífero nacional.
Acontece que todo capivara tem um dia de mestre, seja por inspiração, descuido ou prepotência do adversário, pura sorte ou mandinga. Há dias em que, ao alinhar os Peões na segunda fileira, alinham-se também os astros na conformação exata, com o sol na Casa da Fortuna do jogador menos laureado. Isaías não foi exceção, e seu caso é lembrado até hoje, nas rodas de conversas, em torno das mesas onde se jogam partidas rápidas.
Era a primeira rodada do torneio, que é normalmente quando acontecem os confrontos mais discrepantes, e os capivaras têm sua chance de enfrentar os favoritos. Isaías saiu do trabalho direto para o local dos jogos. No ônibus, ele deu uma espiada numa revista que mostrava a mais recente novidade da defesa Siciliana, sua predileta. Como diria um campeão local, se capivara tivesse estilo, Isaías seria um jogador de ataque!
Ao chegar no salão, correu até o quadro onde já estava pregada uma folha com o emparceiramento do dia, fora pareado justamente contra o atual campeão estadual, um adversário difícil no tabuleiro e fora dele, pela forma pândega de tratar os derrotados após as partidas. Para completar, Isaías jogaria com as peças pretas.
Na hora marcada, dezenove horas, Isaías apertou seu relógio e aguardou a chegada do adversário, que chegou cinco minutos depois e não disfarçou o meio sorriso de satisfação ao saber contra quem jogaria.
Entraram na mesma linha de jogo que Isaías vira na revista e, como quem não tem nada a perder, ele fez a jogada nova sem ter ao menos revisado as principais continuações possíveis. Seu adversário, que mal jogava já se levantava para passear pelo salão e olhar outros tabuleiros, voltou ao ver que lhe tocava jogar. Ignorou qualquer mudança considerável ao que estava acostumado, jogou o óbvio roque, pressionou o relógio, anotou a jogada na súmula e levantou novamente.
Isaías ficou olhando para o tabuleiro, o coração acelerou, a revista dizia que aquela jogada era um erro, mas ele não lembrava o porquê. Ficou se maldizendo mentalmente enquanto se esforçava para encontrar o furo. O tic-tac do relógio analógico parou de ser ouvido, e Isaías entrou num raro estado de concentração, imaginando peças se movendo, eram muitas as variantes possíveis… Já se passavam quinze minutos, seu adversário vez por outra passava pela mesa para checar se já era sua vez. Na rua passou um carro de som tocando aquela música do Chico Buarque, Mulheres de Atenas, daí veio à mente a Guerra de Tróia, Cavalo de Tróia… uma oferta de um Cavalo para se infiltrar na posição inimiga… De repente, ele lembrou do que dizia a revista: “com este elegante sacrifício de Cavalo, as pretas expõem o Rei inimigo de forma irrevogável”. Pegou seu Cavalo e comeu o Peão imediatamente à frente do Rei inimigo.
O adversário voltou e arregalou os olhos ao ver seu Rei sendo peitado por um Cavalo preto. Desta vez sentou com semblante mais sério, olhou para Isaías, que ainda escrevia sua jogada na súmula da partida, e pôs-se a pensar pela primeira vez naquele jogo.
A partir daí, acabou-se o sossego de Isaías; é uma dificuldade vencer as partidas ganhas, porque se tem a impressão que o adversário vai ver tudo, vai se defender da melhor forma e, cada vez que se tem a vez, é difícil afastar a sensação de que não se vê a melhor jogada.
As outras partidas do torneio foram acabando, e os outros jogadores foram se amontoando em torno da mesa de Isaías, o que aumentava seu nervosismo. Mas a audiência seguia o ancestral hábito de torcer pelo mais fraco e se contorcia ao ver alguns erros de Isaías, que podia arrematar de vez a questão e não o fazia!
No Xadrez, como na vida, uma grande vantagem permite margem a jogadas menos exatas, que vão reduzindo as opções vencedoras, vai ficando mais raro o direito ao lance menos forte, até que chega um momento em que só existe uma jogada para ganhar, as outras todas perdem. Um desses casos estava ali posto diante da audiência e dos dois jogadores. Isaías suava frio e pensava, tinha menos de cinco minutos para acabar seu tempo, escolheu uma jogada de Bispo, não era a correta. A mão foi se dirigindo ao Bispo e a audiência, já que sempre é mais fácil ganhar as partidas dos outros, se retorceu a ver que ele ia mover a peça errada. No meio do caminho, porém, pela pressa, a mão de Isaías roçou uma Torre, que estava mais afastada do foco do ataque, e parecia menos ameaçadora.
– Peça tocada é peça jogada! – Gritou o oponente, sabendo que aquilo certamente abalaria Isaías.
Isaías olhou em volta e viu o árbitro assentindo com a cabeça, ele teria que mover a Torre.
O ânimo acabou, viu-se perdido, quase sem tempo, precisando pensar do zero uma jogada de Torre. Sentiu que não havia jeito, olhou a súmula e pensou em abandonar a partida. O peso se foi, sentiu-se livre.
Olhou a Torre de novo, podia dar um xeque, depois outro… espere um pouco, só depois o Bispo vai… Tem xeque-mate!
Com um minuto no relógio, Isaías deu xeque com a Torre e anunciou:
– Mate em três jogadas.
A torcida continha a custo os comentários e a euforia. O adversário arregalou novamente os olhos, pensou um pouco, já que tinha muito tempo ainda a seu dispor, mas não viu jeito. Tem horas no Xadrez que, depois que a posição já está posta sobre o tabuleiro, as coisas são como 1 + 1.
Inclinou o Rei, apertou a mão de Isaías e saiu mal humorado.
Foi a glória, todos parabenizando Isaías, que negou-se a entregar a súmula original ao árbitro e naquela noite mal pregou os olhos de alegria. No restante do torneio, voltou a ser o capivara de sempre, em modesta posição ao final da tabela. Mas não havia do que se entristecer.
A súmula da partida épica virou um quadro na casa de Isaías. Hoje, ele já nem joga mais, fica só acompanhando as notícias pelos conhecidos.
Quanto ao adversário derrotado, recuperou-se bem, e quase vence a competição. Com o tempo, porém, perdeu muito da força de jogo, sendo derrotado com cada vez maior frequência. Nas rodas de Xadrez e nos bares que frequenta, não tem uma vez que chegue que não lhe recebam calorosamente com um: “Peça tocada…”.
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