O ciclo do desapego

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Sou um fã de livros, dos tradicionais, ‘físicos’, nem que seja para ficar olhando para eles, sentindo o cheiro das páginas quando são novos ou, finalmente, para ler mesmo. Quem é assim acaba adquirindo uma quantidade muito maior de livros do que é capaz de ler.
 
Além disso, com a passagem dos anos, alguns interesses vão mudando, e chega o momento em que se percebe que não existe mais nenhuma vontade de ler aquele “Astrologia Fácil” que foi comprado para “ler depois”, ou aquele outro “Técnicas de origami – nível I”. Nesta hora, é interessante praticar a difícil arte do desapego e deixar que aquelas obras sejam úteis para outras pessoas.
 
Comigo aconteceu isso, ontem, nos dois sentidos!
 
Primeiro, com muito esforço e abnegação, consegui desprender-me emocionalmente dum excelente livro, ainda praticamente intocado, adquirido em 2009 para o estudo dum assunto hoje totalmente longe dos meus interesses. Lembrei logo do amigo para quem aquela obra seria importante e, satisfeito e aliviado, presenteei-o com ela.
 
A surpresa veio à tarde, quando voltava ao lar. Apareceu uma pilha de livros diversos em excelente estado, na calçada do vizinho, que estava de mudança e aproveitou para fazer o mesmo exercício de desapego.
 
Havia muitos livros bons, em especial para quem gosta de estudar a língua portuguesa: gramáticas, dicionários, romances etc. Eu achava que minha estante ia ficar um pouco mais vazia, mas agora estou satisfeito com as novidades!
 
Acabou sendo um aprendizado. Como uma espécie de ciclo de vida dos livros. Se fosse um ser vivo, o maior pesadelo para um livro seria ficar preso numa estante intocado, ou ainda pior, guardado em caixas em lugares escuros e úmidos. Um livro existe para ser lido, para ensinar algo a alguém!
 
Daqui para a frente, terei menos dificuldade em praticar esse desapego, e dar aos “meus livros” atuais a chance de cumprirem seu propósito, que é deixar a vida de alguém mais rica e feliz!

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Tempo e decisão

Há uma famosa canção entre os franceses que diz que os jovens costumam pensar que os mais velhos são bobos, não sabem das coisas, enquanto que os mais velhos, com frequência, fazem o mesmo julgamento dos jovens. Sabiamente, o compositor conclui que a idade não tem relação com o grau de tolice do sujeito, “quand on est con, on est con”!

A canção me veio à mente após conhecer um jovem que me trouxe lembranças daquele que fui. Ao contrário da canção, ele me olhava com alguma esperança de aprender algo de útil; já eu olhava para ele como para alguém que não tem nada a temer, nada a perder, todos os caminhos ainda abertos, as peças no tabuleiro ainda praticamente nas casas iniciais.

– Queria saber o que eu sei hoje, mas voltar a ter a tua idade! – Brinquei.

Ele apenas riu, certamente não tinha pressa alguma em alcançar a contagem dos anos que já tenho. Não tinha nada de bobo, aquele jovem!

Mesmo tendo tomado as melhores decisões, com as informações que tinham em cada momento, é comum que apareça essa ideia fantasiosa para muitas pessoas: voltar no tempo, mantendo a vantagem da experiência. Como o enxadrista que, no meio da partida, tendo feito somente as jogadas que quis, fantasia em retroceder alguns lances, pois agora sabe o que antes foi incapaz de prever. É o eterno problema do que se vê e do que não se vê na tomada de decisões.

O rapaz que sonhava com a melhor universidade, somente para depois de anos de esforço, alcançar o objetivo inicial e agora, já homem feito, perceber que aquele não era seu caminho. Ou aquele outro que, envolvido no turbilhão de planos e preocupações com o futuro, não percebe a aproximação duma jovem que poderia ter sido sua cara metade. A moça que não conseguiu se libertar das pressões paternas, abdicou duma formação superior no exterior e agora lamenta não ter sido mais corajosa. Talvez as coisas nem tenham sido assim, nossa memória é falha. Também o tempo tende a tornar importante coisas e fatos que, então, não tiveram tanta relevância. No fundo, em retrospecto, quase todas as decisões poderiam ser melhoradas.

Fica mais fácil de entender a ideia do “eterno retorno”, segundo a qual cada ato se repete indefinidamente, e cada decisão tem o peso da eternidade. Não nos é dado retornar guardando o tesouro da sabedoria adquirida, mas, segundo o “eterno retorno”, é como se pudéssemos voltar infinitas vezes ao ponto que desejarmos, sem lembrar de nada, somente para, racionalmente, tomar de novo a mesma decisão.

O tempo é como o peão no xadrez, ele só avança. Além do mais, na juventude, temos muitos peões, muito tempo, podemos nos dar ao luxo de sacrificar alguns. Chega um momento da vida em que olhamos os peões avançados, os contamos, percebemos que a abundância inicial já se foi, e isso nos traz a nostalgia do que poderia ter sido.

Mas não há somente desvantagens. Os peões avançados estão mais próximos da borda do tabuleiro, já vislumbram uma promoção! Já não se vê tão pouco a frente, e o que não se vê torna-se mais escasso. A cada novo dia, fica mais fácil tomar uma decisão para a qual teremos prazer em retornar infinitas vezes, sem lamento nenhum.

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Um lance no Maracanã

Catedral do futebol brasileiro (Google)
Eu não sou um fã de futebol, sequer tenho um time do coração. Até mesmo a Seleção, que costuma atrair-me o olhar a cada quatro anos, tem caído em esquecimento.


Inúmeras vezes eu sentei em frente ao aparelho de TV para tentar seguir uma partida do início ao fim, mas, em pouco tempo, o verde do fundo da imagem me faz cair num sono fortuito e reparador.


Há, porém, um fato que me deixa encucado: eu adoro ler crônicas sobre futebol.


Não sei se é pela qualidade dos cronistas, gente como Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade e Luís Fernando Veríssimo, para falar só dos muito famosos escritores fãs do futebol. Tem também alguns que foram artistas no campo e agora escrevem sobre o jogo, o mais notório deles é Tostão.


A crônica e o futebol são artes que o brasileiro tomou para si como se fossem bens de nascença, de forma que nosso país se tornou referência nas duas. Assim, crônicas futebolísticas são como princesas reais oriundas de duas importantes majestades da expressividade nacional.


Contudo, não creio que seja possível escrever sobre o jogo de forma a torná-lo interessante e acessível, até para aqueles como eu, se não estiver ali presente uma boa dose de paixão. A paixão pelo jogo é o filtro que transforma chutes, dribles, escanteios e gols em esperança, alegria, frustração, raiva e esperança novamente. Parece até que futebol, quando transformado em palavras, assume o que tem de mais humano e mais belo e passa a ser de interesse universal.


Uma vez somente, eu senti um pouco desta paixão pelo futebol. Foi num domingo, dia de Missa e futebol. Aceitei o convite para ver uma partida Flamengo x Fluminense realizada num Maracanã lotado (seria minha primeira vez naquele mítico estádio, o que pode ter contribuído para o estado geral das coisas). Como um ateu que adentra uma catedral, sentei e fiquei observando a partida, aparentemente muito mais sem graça que na TV, já que não tem os comentários, nem replay. Foi, então, que aconteceram os gols, e tudo mudou.


A numerosa torcida do Flamengo, com a vantagem de sua equipe, começou um canto e um movimento que se tornou vibratório, ultrapassou o da torcida contrária e foi chegando a todos os presentes, inclusive a mim. Alguns ali estavam tendo pela primeira vez em dias o sentimento de unidade com outros seres humanos, a primeira felicidade do mês, recebiam de volta o primeiro olhar humano de compreensão do colega de brasão. Foi aí que percebi o valor do espetáculo.


Eu não lembro do placar, nem dos artilheiros, mas lembro de ter sido, por um momento, levado a sentir o mesmo que aqueles torcedores sentiam, e compreendi. A vitória do time do coração era só um gatilho para uma felicidade intensa, passageira como qualquer felicidade, mas que reabastecia o ânimo na espera pela próxima partida; até lá, a vida continuaria a ser um mero intervalo.

Nostalgia*


Dois amigos conversando.

– Sabe? Eu tenho, às vezes, saudade do passado, de quando eu era mais novo. Ah, como eram fáceis as coisas!

– É mesmo, a gente quando era mais jovem tinha a felicidade na mão e não sabia.

– Aquelas tarefas da escola, tão simples, e a gente fazendo daquilo uma coisa do outro mundo.

Gargalhadas.

– É, nossa mãe fazia tudo pra gente, tínhamos comida na boca, era brinquedo novo todo dia, e ainda assim a gente reclamava.

– Todos tratavam a gente com carinho e simpatia. E nem levávamos tantas broncas. Já hoje…

Suspiros desanimados.

– E com as garotas? A gente nem pensava tanto nelas, só queríamos diversão. E hoje em dia ficamos aí, bobalhões, apaixonados e nem sempre correspondidos.

– Nem me fale, a Cris está me esnobando, as coisas com ela já não são como eram no começo…

– E a Carol? Está me deixando sem miolos. Nem liga mais pra mim…

Mais suspiros desanimados.

– Você tem razão, tudo hoje é mais difícil. Nossa infância é que era boa.

– E pensar que eu reclamava das lições de matemática daquele tempo.

– E eu das de português.

– É, você nunca soube separar bem as sílabas, né?

– E você? Passou uma semana na tabuada de 7!

– Até hoje eu me enrolo com 7×6!

– E eu tenho horror à palavra “aperfeiçoado”.

Gargalhadas.

– Bons tempos, pena que não voltam mais. Gostaria que todos os problemas que tenho hoje fossem simples como a tabuada de 7.

– Pois eu acho que separar as sílabas de “aperfeiçoado” ainda é pior que muitos problemas que enfrento atualmente!

Mais gargalhadas.

Um grito distante:

– Pedrinho, venha para casa, está na hora do almoço! E venha correndo que esta tarde chamei um professor particular para te ensinar direito MMC e MDC.

– Ih Joãozinho, é minha mãe. Tenho que ir. Vou ter que estudar essas chatices

– Também tenho que correr, senão eu vou é apanhar. Minha mãe está uma onça comigo, tirei zero em redação.

– Como é ruim estar na quarta série!

– Nem me fale Pedrinho, bom mesmo era antigamente!

– E você acha que eu não sei, Joãozinho?

– Joãozinhooo, venha almoçar – gritou outra voz ao longe.

– Ih, não falei? É a minha mãe! Até amanhã.

– Até.

E seguiram cabisbaixos. Cada um para sua casa, cuidar de seus próprios problemas.


*Originalmente publicado em 2002 no site Quase Escritores, organizado por este autor.

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Peça tocada…

Sempre vou lembrar da história do Isaías.


Ele era um jogador esforçado, mas pouco hábil, que mantinha a persistência tão somente pelo enorme amor pelo jogo, além de ter no convívio com os outros jogadores a ilusão de uma vida social.

Jogadores são tipos cruéis, brincam com a inabilidade alheia, nunca com a própria. Isaías apenas olhava, à margem, as discussões principais, as rodinhas nas mesas onde os melhores jogadores explicavam os porquês de suas jogadas.

Engraçado perceber como aqueles que se julgavam melhores que os demais se comportavam na mesa de jogo, ao explicar suas ideias: tinham um ar orgulhoso e firme para disfarçar o puro blefe e se empenhavam em ignorar as perguntas pertinentes, mas inoportunas, daqueles aos quais escapavam seus brilhantismos postiços. Capivaras, era como eles chamavam aqueles menos hábeis com as peças, talvez em analogia à simplória mansidão do grande mamífero nacional.

Acontece que todo capivara tem um dia de mestre, seja por inspiração, descuido ou prepotência do adversário, pura sorte ou mandinga. Há dias em que, ao alinhar os Peões na segunda fileira, alinham-se também os astros na conformação exata, com o sol na Casa da Fortuna do jogador menos laureado. Isaías não foi exceção, e seu caso é lembrado até hoje, nas rodas de conversas, em torno das mesas onde se jogam partidas rápidas.

Era a primeira rodada do torneio, que é normalmente quando acontecem os confrontos mais discrepantes, e os capivaras têm sua chance de enfrentar os favoritos. Isaías saiu do trabalho direto para o local dos jogos. No ônibus, ele deu uma espiada numa revista que mostrava a mais recente novidade da defesa Siciliana, sua predileta. Como diria um campeão local, se capivara tivesse estilo, Isaías seria um jogador de ataque!

Ao chegar no salão, correu até o quadro onde já estava pregada uma folha com o emparceiramento do dia, fora pareado justamente contra o atual campeão estadual, um adversário difícil no tabuleiro e fora dele, pela forma pândega de tratar os derrotados após as partidas. Para completar, Isaías jogaria com as peças pretas.

Na hora marcada, dezenove horas, Isaías apertou seu relógio e aguardou a chegada do adversário, que chegou cinco minutos depois e não disfarçou o meio sorriso de satisfação ao saber contra quem jogaria.

Entraram na mesma linha de jogo que Isaías vira na revista e, como quem não tem nada a perder, ele fez a jogada nova sem ter ao menos revisado as principais continuações possíveis. Seu adversário, que mal jogava já se levantava para passear pelo salão e olhar outros tabuleiros, voltou ao ver que lhe tocava jogar. Ignorou qualquer mudança considerável ao que estava acostumado, jogou o óbvio roque, pressionou o relógio, anotou a jogada na súmula e levantou novamente.

Isaías ficou olhando para o tabuleiro, o coração acelerou, a revista dizia que aquela jogada era um erro, mas ele não lembrava o porquê. Ficou se maldizendo mentalmente enquanto se esforçava para encontrar o furo. O tic-tac do relógio analógico parou de ser ouvido, e Isaías entrou num raro estado de concentração, imaginando peças se movendo, eram muitas as variantes possíveis… Já se passavam quinze minutos, seu adversário vez por outra passava pela mesa para checar se já era sua vez. Na rua passou um carro de som tocando aquela música do Chico Buarque, Mulheres de Atenas, daí veio à mente a Guerra de Tróia, Cavalo de Tróia… uma oferta de um Cavalo para se infiltrar na posição inimiga… De repente, ele lembrou do que dizia a revista: “com este elegante sacrifício de Cavalo, as pretas expõem o Rei inimigo de forma irrevogável”. Pegou seu Cavalo e comeu o Peão imediatamente à frente do Rei inimigo.

O adversário voltou e arregalou os olhos ao ver seu Rei sendo peitado por um Cavalo preto. Desta vez sentou com semblante mais sério, olhou para Isaías, que ainda escrevia sua jogada na súmula da partida, e pôs-se a pensar pela primeira vez naquele jogo.

A partir daí, acabou-se o sossego de Isaías; é uma dificuldade vencer as partidas ganhas, porque se tem a impressão que o adversário vai ver tudo, vai se defender da melhor forma e, cada vez que se tem a vez, é difícil afastar a sensação de que não se vê a melhor jogada.

As outras partidas do torneio foram acabando, e os outros jogadores foram se amontoando em torno da mesa de Isaías, o que aumentava seu nervosismo. Mas a audiência seguia o ancestral hábito de torcer pelo mais fraco e se contorcia ao ver alguns erros de Isaías, que podia arrematar de vez a questão e não o fazia!

No Xadrez, como na vida, uma grande vantagem permite margem a jogadas menos exatas, que vão reduzindo as opções vencedoras, vai ficando mais raro o direito ao lance menos forte, até que chega um momento em que só existe uma jogada para ganhar, as outras todas perdem. Um desses casos estava ali posto diante da audiência e dos dois jogadores. Isaías suava frio e pensava, tinha menos de cinco minutos para acabar seu tempo, escolheu uma jogada de Bispo, não era a correta. A mão foi se dirigindo ao Bispo e a audiência, já que sempre é mais fácil ganhar as partidas dos outros, se retorceu a ver que ele ia mover a peça errada. No meio do caminho, porém, pela pressa, a mão de Isaías roçou uma Torre, que estava mais afastada do foco do ataque, e parecia menos ameaçadora.

– Peça tocada é peça jogada! – Gritou o oponente, sabendo que aquilo certamente abalaria Isaías.

Isaías olhou em volta e viu o árbitro assentindo com a cabeça, ele teria que mover a Torre.

O ânimo acabou, viu-se perdido, quase sem tempo, precisando pensar do zero uma jogada de Torre. Sentiu que não havia jeito, olhou a súmula e pensou em abandonar a partida. O peso se foi, sentiu-se livre.

Olhou a Torre de novo, podia dar um xeque, depois outro… espere um pouco, só depois o Bispo vai… Tem xeque-mate!

Com um minuto no relógio, Isaías deu xeque com a Torre e anunciou:

– Mate em três jogadas.

A torcida continha a custo os comentários e a euforia. O adversário arregalou novamente os olhos, pensou um pouco, já que tinha muito tempo ainda a seu dispor, mas não viu jeito. Tem horas no Xadrez que, depois que a posição já está posta sobre o tabuleiro, as coisas são como 1 + 1.

Inclinou o Rei, apertou a mão de Isaías e saiu mal humorado.

Foi a glória, todos parabenizando Isaías, que negou-se a entregar a súmula original ao árbitro e naquela noite mal pregou os olhos de alegria. No restante do torneio, voltou a ser o capivara de sempre, em modesta posição ao final da tabela. Mas não havia do que se entristecer.

A súmula da partida épica virou um quadro na casa de Isaías. Hoje, ele já nem joga mais, fica só acompanhando as notícias pelos conhecidos.

Quanto ao adversário derrotado, recuperou-se bem, e quase vence a competição. Com o tempo, porém, perdeu muito da força de jogo, sendo derrotado com cada vez maior frequência. Nas rodas de Xadrez e nos bares que frequenta, não tem uma vez que chegue que não lhe recebam calorosamente com um: “Peça tocada…”.

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