O tempo e a bexiga

Ainda tinha oito minutos. Não era muito tempo, mas era o que tinha. Já não sentia as nádegas doloridas de tanto tempo que estava sentado, os pés pesavam, dormentes, o tendão do pescoço chegava quase a latejar.

Com o cansaço, a mente ficava turva, as ideias misturavam-se. O que fora mesmo fazer ali? Poderia estar muito bem em casa lendo um bom livro, ou caminhando calmamente naquele final de tarde. Mas estava ali…

Sim! Era porque gostava! Muitas vezes, só sentia-se ele mesmo quando se sentava e se punha a pensar, a extrair algo de si, criar ideias, interpretar, às vezes blefar ou arriscar algo incerto.

Cinco minutos. Estava acabando. “Não pense nisso. Concentre-se!”. Se ao menos não tivesse precisado ir ao banheiro três vezes, agora teria mais tempo. A bexiga estava vazia, mas sentir o urgência do tempo que se esvaia era ainda mais incômodo que a necessidade fisiológica retida. O tempo… Que coisa! Não é possível que possam ter passado já mais dois minutos!

Estava difícil de fazer cálculos simples, checar antecedente e consequente. Contar até quatro ou cinco e depois voltar ao ponto inicial, atrás da resposta correta.

Olhou ao redor, quase todos já haviam terminado, ele era um dos últimos, mas aquilo não tinha a menor importância.

Dois minutos. “Da próxima vez vou beber menos água, vou fazer exercícios para o corpo não incomodar tanto…”. Pegou a caneta do lado, depois largou, não precisava dela agora. Era algo puramente cerebral o que ele tinha a fazer. Múltipla escolha, mas só uma era certa. Os olhos iam e voltavam, onde estava o detalhe?

Um minuto. O coração disparou, a adrenalina reduziu as dores e aguçou um pouco a mente. Agora só duas opções podiam ser corretas. Letra B ou C?

Quinze segundos. Era B, tinha de ser!

Esticou o braço rapidamente e jogou o bispo na quinta casa do rei, xeque. Pressionou o relógio, quando só restavam três segundos. Era a quadragésima jogada. Respirou fundo. Agora teria mais meia hora de tempo para concluir a partida. Parecia muito, mas era melhor não arriscar, permaneceu sentado e imóvel, estava decidido: se preciso fosse, faria ali mesmo, nas calças.

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* Uma versão deste texto apareceu no blog parceiro Reino de Caíssa

Um erro famoso e instrutivo

Um erro certamente não proposital criou um problema muito famoso que ilustrou diversos livros e contribuiu para a divulgação de uma fantástica partida de xadrez.

A quinta partida do match Capablanca × Marshall em 1909 ficou famosa por diversos motivos, e não somente pela técnica demonstrada por Capablanca na fase final da partida.

Por muitos anos, diversos autores divulgaram que Marshall deixara passar a chance de vitória após a 44ª jogada de Capablanca (provavelmente reproduzindo o erro de uma coluna da revista The Chess Review de junho/1933, sem se dar ao trabalho de checar os lances originais da partida em outra fonte):

Diagrama original retirado da colune “Mistakes of the masters” de Lester W. Brand “The Chess Review” de junho/1933. Posição após 44 … Ba2.

Chernev aponta ainda que este mesmo diagrama (que contém um erro) foi citado em diversos livros e artigos, como The Chess Mind (Gerald Abrahams, 1951 ) e no mais recente The 10 Most Common Chess Mistakes … and how to avoid them! de Larry Evans (1998).

Diagrama nº 61 do livro “The Basis of Combination in Chess” (J. Du Mont, 1938) reproduzindo o erro de Brand.

Esta última referência, de Evans, é curiosa, pois ele próprio corrige a informação em seção de perguntas e respostas de Chess Life & Review de novembro/1974 (página 750):

Recorte da resposta de Larry Evans,
indicando que o correto era dama em b6 (QN6).

O que tornou essa posição (errada) famosa foi a suposta falha de Marshall em encontrar uma continuação ganhadora relativamente simples: 1. De8+ Rg5 2. f4+ com vitória, pois se 2 … Rg4 De2# ou 2 … Rf6 3.Dh8+ ganhando a dama.

Na verdade, como apontou Evans, a posição correta tem a dama branca na casa b6 (e não c6), e a linha vencedora acima simplesmente não existe para as brancas.

Segue a partida completa:

Você precisa ativar o JavaScript para melhorar a vizualicação das partidas de xadrez.

Certamente, Marshall, o homem homenageado com uma chuva de moedas de ouro, jamais deixaria uma chance como essa de derrotar seu histórico rival.

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Memórias de um enxadrista*

Há treze anos eu jogava minha primeira partida num torneio de xadrez. Tinha as peças brancas. Confiante, aventurei-me com “1. e4”, e fui surpreendido pela, então inédita, defesa Siciliana, “1. … c5”. Foi minha primeira derrota em torneios.

Desde então minha devoção ao jogo aumentou, voltei com afinco às páginas do Xadrez Básico, comecei a ter aulas, disputei outros torneios. Foi um ano dedicado a melhorar minha técnica na intricada arte das 64 casas. Ao final deste ano eu terminava o Campeonato Estadual Absoluto (de todas as categorias) num honroso (para mim) oitavo lugar, melhor colocação dentre os jogadores de minha idade.

Aquele foi um tempo de grandes descobertas sobre o tabuleiro: um pouco de aberturas, um pouco de meio-jogo, um pouco de finais de partida. Muitas vezes, nas metafóricas combinações do nobre jogo, incipientes lições de vida eram reveladas.

Passei toda a adolescência e início da vida adulta pensando quase que diariamente em alguma situação enxadrística. O xadrez fez parte de minha vida em ocasiões importantes: entrada no segundo grau e na universidade, vivência no exterior (onde também disputei torneios), primeira namorada, primeiro emprego, primeiro carro.

Mas, ironicamente, o próprio desenrolar da minha vida foi-me afastando do enxadrismo, as metáforas com o jogo foram rareando, até que, com tristeza, sinto-me hoje quase um estranho ao universo que ronda o xadrez. Se, por acaso, visitar uma sala de torneio qualquer em minha própria cidade, é bem provável que eu não conheça boa parte dos jogadores.

Vêm à mente, muitas vezes, imagens variadas: dos bons amigos que fiz nos torneios, das muitas derrotas, das vitórias importantes que me impulsionaram a continuar. Refaço mentalmente as variantes que tomei e que, pouco a pouco, levaram minha vida para cada vez mais longe dos tabuleiros.

Felizmente, quando parece que perdi os laços com o jogo dos reis, uma bela partida num livro ou na internet reaviva a velha chama, e sou novamente como o garoto que há treze anos descobria, com o rei inclinado, a eficácia da temida defesa Siciliana.

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*Texto de 2005

Será o fim dos livros de xadrez? (III)

Livros de xadrez ainda têm espaço nos dias atuais? Uma foto recente do campeão mundial de xadrez pode nos dar uma resposta a esta pergunta.

Um dos textos mais lidos deste blog foi Será o fim dos livros de xadrez? (2013), que recebeu um rápido adendo alguns anos depois. Chegou a hora da parte III!

O estopim daquele primeiro texto foi a percepção de que as livrarias físicas não estavam mais oferecendo livros sobre nosso amado jogo. E foi uma observação certeira, em parte pela própria crise no mercado editorial nacional que já se iniciava, em parte pelos fatores que levantei na época, principalmente o reduzido interesse na nova geração de jogadores de elite em publicar livros.

Hoje, os meios mais usados pelos novos estudantes do jogo são aulas em vídeo, aplicativos para prática de posições chave e tática e, no final da fila, alguns seletos livros clássicos.

Esses clássicos, por sinal, continuam a despertar interesse dos aficionados, um dos exemplos é o texto do GM Rafael Leitão sobre os 20 livros que o ajudaram a se tornar GM, que aparece como um dos destaques em sua página na internet. Outro artigo destacado de Leitão é sobre os melhores livros de xadrez já escritos.

Recentemente, um amigo me perguntou porque eu ainda estava empenhado em produzir material sobre xadrez em forma de livros (no meu caso, ebooks), uma vez que as pessoas leem cada vez menos. Respondi que o fazia por ser primeiro um objetivo pessoal, fruto do fascínio que tenho por livros, e também pela memória afetiva que adquiri ao longo dos estudos sobre xadrez.

Admito que a palavra escrita tem perdido a popularidade apesar da disseminação do formato de livro digital. Basta ver a relativa decadência dos blogs frente aos canais do YouTube.

Mas haverá, ainda, espaço para os livros?

Na última semana, apareceu em alguns grupos de xadrez online a seguinte foto do campeão mundial de xadrez Magnus Carlsen:

A principal reação das pessoas foi descobrir qual seria aquele livro ao lado de Carlsen. Isso serviu de claro exemplo para muitos de nós de que não é a chegada de novos formatos que fará o livro desaparecer. Mesmo o melhor do mundo os utiliza, em formato físico, com tabuleiro físico, de tempos em tempos.

Lembrando as palavras de Kasparov, os “livros empoeirados” ainda ajudarão a formar muitas gerações de jogadores.

P.S.: o livro na foto é Chess Strategy in Action, escrito pelo MI norte-americano John L. Watson (que deve estar bastante contente com a publicidade gratuita!)

Um dos segredos do treinamento de Magnus Carlsen?

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O urgente × O importante

O jogo de xadrez pode ser visto como um laboratório da vida, uma vida em miniatura. É um ambiente controlado no qual, não raro, são postas situações que encontram perfeita analogia com problemas da vivência humana.

Uma das questões amiúde enfrentadas por enxadristas (assim como outras formas de vida humana) é decidir entre fazer o que é urgente ou o que é importante. Como o jogo tem um conjunto claro, simples e finito de regras, o impacto das decisões é visto com muito mais facilidade e rapidez que nas situações da vida real.

Certa vez, vi claramente o problema do ‘urgente × importante’ numa partida do Campeonato Feminino de Xadrez dos EUA na qual se enfrentaram Apurva Virkud (com peças brancas) e Sabina Foisor (com peças pretas), ambas mestras de destacada força.

Nessa partida, ficou evidente o pobre papel exercido pela dama branca após o 16° lance, que fez este exército ficar na defensiva o restante da partida, sempre priorizando o urgente sem jamais conseguir fazer o importante: recolocar a dama (a peça mais poderosa do exército) em uma posição mais favorável.

Virkud × Foisor, St Louis 2017 (posição após 16..Da5)

Na posição mostrada no diagrama acima, mesmo alguém sem conhecimento sobre xadrez perceberá quão distante se encontra a dama branca do centro do tabuleiro e da ala do rei (metade direita do tabuleiro), que é onde se desenvolve o ataque das peças pretas.

Analisando a partida com a ajuda dos fortes aplicativos (ou engines, como são amplamente chamadas) disponíveis mesmo em nossos smartphones, verificamos que a posição das brancas é muito frágil devido ao forte centro móvel de peões pretos, além da superior mobilidade de cada uma das peças pretas em comparação com suas equivalentes do bando contrário.

As brancas não aproveitaram as duas únicas chances que surgiram para recolocar sua dama em jogo (o que, apesar de não ser a opção preferida pela fria análise da máquina, faria todo o sentido para um jogador de carne e osso): imediatamente no 17° lance, ou pouco depois, no 21°, nas demais ocasiões, a urgência se impôs de forma muito aguda.

Virkud × Foisor, St Louis 2017 (posição após 26. Tg1)
Pretas jogam e dão xeque-mate em 9 lances

Ao observarmos a posição acima, após o 26° movimento branco, perceberemos claramente a falta que fez a dama branca, agora bloqueada pelo cavalo e ainda no mesmo local há 10 jogadas, enquanto as pretas têm a opção de um belo desfecho com um ataque de mate (fica como desafio para os enxadristas – pretas jogam e dão xeque-mate em 9 lances).

A partida me deixou pensativo. Não somente em termos de xadrez, mas em termos de opções de vida. A princípio, seria melhor não se colocar numa situação na qual as urgências nos impeçam de fazer o que é importante, mas, uma vez que o cenário fica mais complicado, precisamos ficar atentos para qualquer chance de recolocar as prioridades em ordem.

Como a partida nos ensinou, fazer somente o urgente não livrou o exército branco da derrota. É preciso lembrar que, mesmo que não traga um retorno rápido, ou sequer mude o desfecho final, fazer o que é importante nos coloca em posição de lutar melhor, mantendo a honra (aliás, um atributo jamais urgente, mas sempre importante).

Último lance da partida: 31. … Tf3+

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