Peões Metafóricos (*)


Era final de tarde, a luz do dia decantava-se pouco a pouco no horizonte; também para o sol, a jornada de trabalho chegava ao fim. Dirigi-me até um café, onde por muitos anos cultivo o hábito de observar os últimos momentos de claridade ouvindo conversas distantes ou perdido em pensamentos, acompanhado somente de uma pequena xícara de café expresso, sem açúcar.


Um coro de vozes exaltadas ao fundo chamou-me a atenção. Guiados pelo som, meus olhos correram até uma mesa de canto onde havia mais garotos que cadeiras. “São estudantes”, pensei entre um gole e outro.


– Eu garanto que é assim: o peão que chega ao final do tabuleiro só pode ser trocado por uma rainha.

– Que rainha!? É dama, vê se aprende!

Os risos e brincadeiras por um momento suspenderam o embate, até outro rapazote colocar mais lenha na fogueira:

– O peão pode ser trocado por qualquer peça, isso é óbvio, já vi meu avô fazendo isso. Mas ele me disse que vai depender: se o peão alcança a casa inicial de um cavalo, ele é trocado por cavalo, se é a casa inicial de um bispo, é trocado por um bispo, e assim por diante.

– Que absurdo! E se for na casa onde começa o rei?

– Ah, aí como não pode pedir outro rei, ele é trocado pela dama.

– Pelo que sei, só podemos trocar o peão por uma peça que já tenha sido perdida para o adversário. Senão o peão nem pode ser avançado, tem que esperar na sétima fila até que a peça desejada suma do tabuleiro.

Ao escutar aquilo, outro menino levantou a voz em tom mais alto que os demais para poder ser ouvido.

– Nada disso, o peão pode ser avançado sim, mesmo que ainda não possa ser trocado por outra peça. Mas ele fica lá, imune. Não pode ser capturado.

– Não faz sentido! Um peão parado lá no fim do tabuleiro, sem poder mais se mover, sem poder capturar outras peças, não pode nem dar xeque!? Não serviria para nada. O que realmente acontece é que o peão ganha o direito de ser trocado por outra peça quando chega ao final do tabuleiro, mas a troca só pode ser realizada depois que ele retorna até a segunda fileira, de onde partiu no começo da partida!

Por um átimo os demais se entreolharam calados, surpresos com aquela nova possibilidade, mas logo gritaram em uníssono:

– O quê????

– Calma, eu explico. Quando o peão chega na última casa, além de ganhar o direito de ser promovido, ele também passa a poder andar para trás, pulando duas casas por jogada, assim em três lances ele retorna para a segunda fileira do tabuleiro e só aí pode ser trocado pela peça escolhida.

Aqueles jovens falavam de um jogo do qual eu não lembrava há muitos anos. Também na minha juventude eu participara de discussões apaixonadas como aquela: sobre tomadas en passant, roques, afogamento do rei etc. Eram conjecturas de meninos que aprendiam o jogo às pressas, sem ler regras aprofundadas ou manuais, mas que tinham a curiosidade aguçada pelas situações práticas que enfrentavam em suas partidas experimentais. Sem saber, os principiantes refazem, nessas discussões, diferentes variações que realmente ocorreram no jogo ao longo dos séculos, em sua evolução até o formato atual.

Ainda ouvia as vozes acaloradas ao fundo, mas já eram como as saudosas vozes de meus amigos de rua e de escola, como se eu voltasse a ser um aprendiz dos primeiros encantos do xadrez. Nem percebi o pôr do sol, e o meu café também já tinha acabado. Por impulso, olhei o fundo da xícara, e não me surpreendi ao notar que a borra havia formado a indistinta silhueta de um cavalo. Paguei a conta e dirigi-me à saída. Porém, há dois passos da porta, resolvi voltar e dar minha contribuição à acalorada disputa.

Os garotos se calaram, desconfiados de minha repentina aproximação. Mas, como quem dá um xeque a descoberto, não dei tempo para perguntas:

– Quando eu jogava, sempre escolhia trocar meus peões que chegavam ao final do tabuleiro por cavalos. Sabem por quê?

Seus olhares curiosos foram a resposta que queria:

– É que naquele tempo, se você promovesse o peão a cavalo, imediatamente podia fazer uma nova jogada com ele!

Não esperei pelas reações. Virei-me e sai rapidamente, certo de que aqueles meninos logo consultariam algum manual e descobririam que um peão que chega ao final do tabuleiro pode ser trocado por qualquer peça (exceto o rei), não importa quais peças ainda estejam no tabuleiro.

No percurso até minha casa, um tanto nostálgico, pensei sobre a fortuita metáfora que podia ser feita com base nas cenas e conversas que acabara de presenciar: aqueles garotos eram como peões que seguiam seus primeiros passos nos caminhos da vida.

Quanto a mim? Bem, no momento estou no final do tabuleiro, imune e quieto, esperando a chance de dar alguns passos para trás… até a casa inicial, para receber minha merecida promoção.


(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa

O Céu dos Enxadristas (*)

Passar a vida inteira jogando xadrez era o mínimo que Josué poderia ter feito, aliás, concordava inteiramente com a frase célebre que dizia que “a vida é muito curta para o xadrez”, apesar de não saber ao certo quem havia dito isso.
Jogava desde menino, mas foi depois da aposentadoria, quando tinha pouco mais de sessenta anos de idade, que ele passou a se dedicar inteiramente ao jogo com toda energia que lhe restava. A família não protestava, um amor como aquele não podia ser combatido e, de um modo ou de outro, havia contagiado a todos os familiares.
Agora, aos noventa e oito anos, sentado na mesa trinta e quatro do torneio estadual, tinha diante de si um jovem adversário que atacava impetuosamente desde a primeira jogada da partida. Era sua vez de jogar, olhava o rei fixamente e contava as casas de escape. Começou a sentir uma leve tontura, em seguida sufocou, sua mente sempre clara turvou-se, sentiu que era ele quem estava em xeque. Seguiu-se uma grande luz e um longo silêncio.
Quando voltou a si, estava num lugar no qual nunca estivera, cheio de árvores emolduradas por um bonito céu azul resplandecente. Por todos os lados havia mesas onde pessoas jogavam xadrez. “Será que estou sonhando?”, pensou.
Neste instante, percebeu uma bela jovem que veio ao seu encontro.
“Bem vindo, Josué! Sou Caíssa, a deusa do xadrez, e este é o Paraíso dos Enxadristas. Ehh, o Céu dos Enxadristas, se assim te parecer mais fácil de entender”.
“Quer dizer que eu morri durante aquela partida?”
“Sim Josué, você alcançou uma das maiores honras concedidas aos enxadristas: morrer jogando.”
Josué ficou calado, olhou de novo em volta, verificou suas mãos, seu corpo. Sentia-se ótimo, novinho em folha. As mãos, já não eram as de alguém de noventa e oito anos.
“Josué, aqui no Paraíso, cada um retoma à idade em que teve seu melhor desempenho no jogo durante a vida. Por isso, você está com aparência de trinta e poucos anos, quando jogou seu melhor xadrez.”
“Isso é muito bom!”
“Venha, vou te mostrar o lugar.”
Realmente havia ali muitos jovens, salvo algumas pessoas que se apaixonaram pelo jogo mais tarde na vida e alcançaram o melhor desempenho pessoal já em idade mais avançada.
“Quer dizer que eu vou conhecer todos os campeões mundiais que já se foram?”
“Ah, sim! Estão quase todos aqui.”
“Quase?”
“Bem, você sabe, no final de sua vida, Steinitz costumava jogar muitas partidas com Deus. Inclusive, morreu deixando uma partida inacabada. Então, ouvindo as razões de seu celestial adversário, ele preferiu ir para o Céu convencional, onde ainda deve estar jogando com Deus até hoje!”
Josué ficou contente de não ter sido Capablanca ou Fischer o convocado por Deus para ir ao outro Céu, pois eram seus campeões preferidos. Não demorou muito, ele viu um jovem loiro, com aparência de não mais que trinta anos de idade, sentado sozinho em frente a uma mesa onde havia um tabuleiro arrumado com peças belíssimas. A deusa Caíssa percebeu o olhar de Josué para o jovem e disse:
“Sim, é Fischer quem está ali. Desde que chegou aqui pouco fala e não jogou sequer uma partida.”
“Por que?”
“Fica sempre ali, quase sempre sozinho. Só Tal e Morphy conseguem arrancar algumas palavras dele, de vez em quando. Ele ficou um pouco triste de ter vindo para cá aos sessenta e quatro anos. Mas fazia parte do trato: em troca de ser o melhor ele aceitou viver apenas um ano completo para cada casa do tabuleiro. Agora ele está bem, mas aguarda por Spassky, seu grande amigo e rival.”
“Vai ser um embate e tanto! Cada um em sua melhor forma!”
Josué pensou um pouco sobre aquilo. Sempre achou que, após a morte, os mistérios do jogo seriam revelados, que o xadrez seria transparente para todos. Quando expôs sua questão para a deusa, ela explicou que não haveria graça nenhuma nisso, os enxadristas que sentiriam um tédio eterno se soubessem tudo o que pode se passar num tabuleiro.
“Cada um tem a eternidade para evoluir nos mistérios inexplorados deste jogo maravilhoso!”
O passeio continuou. Naturalmente, não havia somente as grandes estrelas do jogo. Pelo contrário, eram milhares e milhares de simples aficionados, jogadores anônimos que professaram a fé enxadrística sem duvidar, mesmo em face das mais vergonhosas derrotas. Caíssa mostrou ao longe um homem que andava atrás de outro, como a cobrar uma dívida.
“Olha, você não os reconhece? É Kieseritzky que vive atrás de Anderssen, a pedir uma revanche da famosa Partida Imortal. Mas ainda não conseguiu.”
Em outro ponto, um rapaz num terno impecável ensinava alguns truques para um grupo de mulheres; sim, havia muitas delas no Céu dos Enxadristas!
“Ah, sim! Aquele é Capablanca. Já não se interessa tanto em jogar, para ele é muito fácil, mas fica aí, sempre às voltas com suas alunas.”
Mais além, Josué viu uma grande bancada, com um trono central e um outro menor ao seu lado. Certamente, o maior era o trono de Caíssa. Mas no trono menor estava um homenzinho acanhado calvo e com óculos.
“Também não o reconhece? Aquele é David Bronstein, meu seguidor mais puro. Sua fé no jogo sempre me encantou. Desde que chegou aqui, elegi-o para estar ao meu lado. Fica sempre lá, estudando posições do peão do rei. Muitos outros vão conversar com ele. É bastante popular!”
“E quanto a Botvinnik, seu maior rival em vida?”
“Respeitam-se muito, mas não têm contato. Bem, estão há muito pouco tempo aqui comigo, com o tempo serão grandes amigos. Tenho certeza! Veja só o caso de La Bourdonnais e McDonnell: passam quase todo o tempo juntos, jogando e rindo bastante.”
Eram tantos grandes jogadores, tantas novidades, tantas novas ideais que demorou para Josué se dar conta que sua antiga vida estava encerrada. Lembrou-se da esposa, filhos, netos e bisnetos. Ficou subitamente triste, pois morrera longe deles. Como deusa que era, Caíssa leu seus pensamentos.
“Eles jogam xadrez, não é?”
“Sim, jogam. Claro que cada um tem seu nível, mas até os bisnetinhos já movem as peças!”
“Então, não se preocupe. Um dia estarão todos aqui com você!”
Sorriu ao pensar que fizera muito bem em ensinar o jogo a todos da família. Caíssa despediu-se e foi para perto de Bronstein. Josué continuou andando pelo vasto paraíso até encontrar um homem delicado que estava acabando de tornear algumas magníficas peças. Estava terminando um peão. Josué observou aquela cena tentando ficar bem quieto. Quando o homem acabou o trabalho, olhou para o lado e viu Josué.
“Amigo, quer jogar comigo? Acabo de fazer este novo jogo de peças!”
“Será um prazer! Vai ser minha primeira partida aqui!”
Arrumaram as peças num tabuleiro que estava numa mesa próxima, o homem pediu para jogar com as peças brancas. Antes de mover, porém, ergueu um peão e começou o que acabaria por ser uma longa palestra:
“Sabia que os peões são a alma do xadrez?”
(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa

O mestre grisalho ainda sonha

Sentado, perante o tabuleiro quadriculado, o mestre grisalho segura entre as mãos a criativa cabeça, como se o peso das ideias fosse demais para os músculos do pescoço.

Ele joga uma partida de xadrez.

As peças no tabuleiro não passam de mnemônicos, a posição estática é como mera estação onde o trem da partida para rapidamente e logo volta a seu curso. Na mente do mestre, as peças estão em outra posição, na verdade dançam, voltam ao mesmo ponto e tornam a mover em outras direções; para cada lance feito, dezenas de partidas são imaginadas pelo mestre. Lance após lance, partida após partida.

Por vezes, mira o teto com o olhar perdido, as peças passam ligeiras em sua imaginação.

Há um peça na sétima fila, um peão do adversário. Uma peça curiosa esse peão, vale tão pouco no início do jogo, mas a cada passo que dá, sempre em frente, seu valor aumenta. Um peão nunca olha para trás: só lhe interessa o presente, mas mira o futuro.

Mais um passo e aquele peão passará a ser outra peça. Que peça o adversário colocará no lugar do peão? O mestre pensa nas possibilidades; são quatro opções, ele precisa pensar em todas. Para cada uma, são tantas partidas possíveis. É preciso avaliar cada uma delas. Após assegurar-se que não há risco, ele faz sua jogada, aciona o relógio, anota o lance na súmula e levanta para uma rápida caminhada pelo salão de jogos.

Há quase trinta anos, o mestre repete o ritual quase que diariamente. É um jogador da elite do planeta desde muito jovem; elite que se alterou quase que completamente ao longo dos anos, mas ele permanece em forma, sedento. Já viu passar tantos campeões do mundo, venceu a todos mais de uma vez, mas ele próprio jamais alcançou o título máximo de seu amado jogo. Chegar tão perto e falhar não o desencoraja. Ainda deseja melhorar a cada partida!

O adversário moveu seu peão uma casa, trocando-o por uma dama, e permaneceu sentado, profundamente concentrado. O mestre retorna e senta apressado. Anota ansioso a resposta que vê sobre o tabuleiro. A posição, aquela nova estação que agora aparecia no tabuleiro, tinha passado em sua mente momentos antes, numa das possibilidades que previra. O fim está próximo, ele pode intuir.

São seis movimentos à frente, numa sequência que deixa poucas escolhas ao adversário, por isso as centenas de possibilidades caem para algumas dezenas, mas em cada uma delas ele vê o rei adversário sem saída. Não há mais mistérios, esta tudo claro. Faz seu movimento com firmeza e aguarda a réplica. O adversário desiste, é inútil lutar mais.

Uma alegria juvenil toma seu peito. É assim a cada vitória, um elixir da juventude.

O adversário o cumprimenta reverente (apesar de ser também um virtuoso no jogo, é ainda um rapazote) e sai desgostoso. O mestre segue pelo lado oposto, seus olhos ainda passeiam distantes, verificando lances que não vieram à luz; um dia quem sabe, numa outra partida. Sempre haverá uma outra partida.


O engenheiro e a borboleta

Pode-se fugir do próprio destino? Um menino dividido entre duas paixões acaba escolhendo a certeza dos cálculos, mas, talvez inconscientemente, sua outra paixão jamais esteve longe o suficiente. Ao contrário, esteve até perto demais…

Ainda menino, ele se interessou pela concisão dos números, pela lógica das operações matemáticas, pela simetria. Ao mesmo tempo, era fascinado pelo movimento de peças articuladas, de elementos que se encaixavam e formavam um objeto maior, com funcionalidades diversas e maravilhosas.

A vida no interior facilitava a observação da natureza, o convívio com plantas e animais. Começou a criar forte interesse num tipo de inseto comum de se ver, as borboletas. Talvez por serem pequenas “máquinas” voadoras com perfeita simetria, economia de formas, pelas belas padronagens nas asas, um ciclo de vida intrigante, aqueles simples insetos ganharam lugar em sua vida.

Desde que se conhecia por gente, então, ele equilibrava seus dias entre o estudo da matemática, o desenho de engenhocas e sua pesquisa particular sobre os lepidópteros. Esta última parecia ser sua maior paixão.

Por forte influência familiar, resolveu cursar engenharia mecânica, em vez de ciências biológicas; afinal de contas, tinha grande afinidade com a engenharia, e quanto às borboletas… bem, jamais precisaria afastar-se de sua paixão por elas.

Ele cursou a universidade, formando-se com louvor, estagiando numa grande empresa que fabricava máquinas enormes. Durante o curso, leu o que podia sobre borboletas, participava de expedições para caçá-las e só viajava para cidades que tivessem borboletários.

Nunca se casou. Uma vida era muito curta para a engenharia e, especialmente, para as borboletas.

Seu espírito minucioso, detalhista, e seu amor pela simplicidade e eficiência, fizeram dele um grande engenheiro. Projetou e liderou a construção de máquinas maravilhosas. Foi pioneiro na criação de máquinas que constroem outras máquinas. O fascínio daquele ofício era o de combinar peças simples até formar artefatos complexos. Faltasse somente um daqueles elementos básicos, uma engrenagem, um pino, e a máquina não funcionaria.

Tinha hábitos eficientes, imutáveis. Era o primeiro a chegar à fábrica, mas não ficava um minuto sequer além do horário. Dentro dos galpões, onde o ritmado som metálico mantinham sua ativa mente concentrada na produção, ele só pensava em suas máquinas. Porém, ao colocar o pé na calçada, ávido pelas poucas horas de luz que ainda havia, o maravilhoso mundo entomológico tomava conta de suas sinapses, de seus sentidos. No bolso do casaco, sempre trazia uma caderneta para suas anotações sobre as queridas borboletas.

É verdade que, com o passar dos anos, seu estudo no campo dos insetos foi ficando muito mais teórico que prático, na grande cidade não tinha muita chance de vê-las, era difícil afastar-se muitos dias da fábrica (que não parava jamais), tamanha era a importância de sua presença para o bom andamento da produção.

Liderava a linha de montagem como se fosse um experimento biológico, que não podia ser exposto à contaminação. Tudo precisava estar limpo, regulado, em ordem. Ele pensou tudo para que, aos poucos, não precisasse haver mais ninguém ali, só ele e suas máquinas. Cada equipamento enchia o engenheiro de orgulho, pois eram todos fruto do seu pensamento. O mais simples e grosseiro deles, porém, era o mais importante: a gigantesca prensa, onde o metal era moldado conforme seus minuciosos cálculos. Por capricho, havia sido projetada como duas asas de borboleta, que se fecham uma sobre a outra. Seu movimento era lento até meio curso, depois se fechava rápido, aplicando uma força tremenda. Ela era toda pintada de azul.

Numa sexta-feira, no final do dia, o engenheiro apanhou seu casaco e foi andando pela fábrica. Verificou os ajustes para a produção noturna, foi até próximo da grande prensa que trabalhava com precisão. Vestiu o casaco e colocou a mão dentro do bolso, à procura de sua caderneta. Ao retirar a mão, não percebeu a queda dum parafuso, que ele havia substituído duma máquina e havia esquecido naquele bolso.

No caminho para casa, folheando a caderneta, foi recordando os desenhos e anotações sobre uma espécie da qual gostava muito, uma borboleta azul, que ele só conhecia por livros, já que não era comum na sua região e não tivera a sorte de ver em todas as suas viagens. Talvez, pensou, já fosse tempo de se aposentar das máquinas e seguir sua velha paixão integralmente.

Naquela noite, teve um sonho. Um menino corria por um campo relvado, com uma puçá nas mãos, buscava capturar uma borboleta azul que se afastava dele somente o suficiente para não desvanecer seu ímpeto. Quando a rede da puçá tocou a asa do inseto, ele despertou. Já era dia claro, e ele resolveu levantar e ver como estava a produção.

Ao se encaminhar para a fábrica, porém, o engenheiro pensava no sonho que havia tido. Seu possível significado ainda o intrigava, e ele não notou, atrás de si, uma nuvem de borboletas que se aproximava, um panapaná.

O som das minúsculas asas em movimento trouxe o engenheiro de volta à realidade quando a nuvem já passava por ele. Uma multidão de borboletas alaranjadas, no meio delas, o engenheiro viu uma única azul.

Ele se apressou, acompanhando com dificuldade o dinâmico movimento dos insetos, mas percebeu quando a borboleta azul entrou por um dos janelões da fábrica.

Ainda mais apressado, ele entrou no lugar sem sequer se dar conta do firme som do maquinário, cíclico como um relógio. Ao fundo, tal como um bumbo, a grande prensa marcava a cadência. Ele só via a borboleta que se arriscava entre engrenagens, hastes, compensadores, e voava em direção à prensa.

Correu, na tentativa de que seu pesado corpo alcançasse o outro, levíssimo, que voava. A borboleta pousou sobre a prensa, que iniciava seu processo de fechamento. O engenheiro resfolegava na tentativa de alcançar não mais a borboleta, mas o botão de emergência, para parar as máquinas. A prensa fechava lentamente, a borboleta imóvel, como se aguardasse por ele. A poucos passos, já quase tocando o botão, o engenheiro escorregou, ao pisar o parafuso, que não devia estar ali.

Durante a queda, a mão do engenheiro se afastou do botão, enquanto seu corpo foi atraído para a borboleta, como sua alma havia sido atraída a vida toda. Quando ele caiu sobre a prensa, a borboleta voou.

Pouco antes do impacto das grandes asas metálicas, os olhos ainda seguindo o voo do pequeno inseto, ele atentou de repente ao som da produção que fechava mais um ciclo, a borboleta saia pelo janelão, ele ainda pensou: o sonho agora faz todo o sentido.

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O Jogo da Criação


Algumas vezes, nas Esferas Celestes, havia tanta, mas tanta paz, que Deus se sentia entediado. Os anjos tentavam de tudo: canto, exibições de circo, balé, etc, mas era difícil remover o Criador de seu tédio.


Foi, então, que surgiram os jogos, invenção dos anjos, para tentar dar alguma distração ao seu Mestre.

A princípio, Deus gostou da novidade e experimentou todos os jogos que apareceram, tendo por adversários os próprios querubins. Primeiro foi um jogo de palitinhos, cujo objetivo era adivinhar quantos deles havia na mão de cada jogador. Ora, sendo Deus tão mais esperto que seus anjos, e ainda onisciente, esse jogo rapidamente perdeu a graça.

Tentaram jogos com dados, explicando ao Criador que eram instrumentos capazes de incluir incerteza nos resultados, o que era bastante útil quando se tratava de jogar contra a própria onisciência. Acontece que Deus, ao contrário da crença comum, jogava dados muito bem e conseguia sempre tirar os números que desejasse. Portanto, nada de incerto havia para ele, apenas para seus menos hábeis adversários angelicais. O mesmo aconteceu quando passaram ao carteado, apesar de que neste caso, o Criador precisou usar das artimanhas do blefe para vencer algumas partidas em que se distraiu no trato com as cartas.

Essa miríade de jogos fatalmente chegou a um jogo de tabuleiro, com peças redondas, chamado de jogo de Damas. Excelente matemático que é, Deus logo percebeu que era um jogo com muitas possibilidades, mas, para Ele, não era grande coisa: apenas meio sextilhão de posições possíveis. Ainda assim, por vezes, o jogo foi capaz de distraí-lo. O problema é que, por natureza, os anjos não sentiam vontade alguma de vencer seu Criador. Isso, além da infinita capacidade divina, tornava impossível para Deus ser derrotado. E ganhar sempre, até para o Onipotente, enjoa.

Foi quando chegou o Anjo Caído, com um tabuleiro como o de Damas, porém as figuras que se moviam sobre ele eram bastante diversas, assim como os movimentos de cada uma. Rapidamente, Deus calculou que se tratava de um jogo com mais possibilidades que átomos no universo, e talvez trouxesse algum desafio. Além disso, por ser um dissidente, Deus sabia que aquele antigo anjo seria muito mais combativo. Tratava-se do Jogo das Seis Aflições, depois conhecido como Xadrez.

Jogaram a primeira partida. Deus tinha as peças brancas, e começou com o peão do rei. O Anjo da Discórdia tentou respostas simétricas, sem saber que, a cada lance, a vantagem continuava com o Criador. Por fim, uma combinação fatal de sete movimentos surgiu: seis sacrifícios seguidos de peças e um mate com o cavalo, a única peça que restava para o condutor das figuras brancas.

Insatisfeito, o ex-anjo solicitou revanche, com troca de cores, e começou a segunda partida com o peão da dama. As peças moviam-se tão rapidamente que apenas os dois jogadores conseguiam entender o que se passava. A plateia angelical mantinha silêncio e, mal eles tentavam entender uma jogada, já outra era feita no tabuleiro. Quando restavam apenas poucas peças, Deus tinha um peão de vantagem, Lúcifer jogou seu cavalo na quinta casa do bispo do rei, xeque! Os anjos empalideceram, o rei do Rei estava em perigo, mas uma defesa hábil anulou as ameaças, e a vitória veio logo depois, quando o peão a mais chegou aos confins do tabuleiro e se tornou uma dama.

O anjo caído não podia mais disfarçar sua ira, duas derrotas seguidas era algo que nunca lhe acontecera. Como Deus recusasse uma nova partida, uma ideia macabra começou a formar-se na mente do Grande Tentador.

— Senhor, fui tolo em achar que seria páreo para tua infinita sabedoria. E sou indigno de uma nova tentativa, na qual certamente eu sairia derrotado mais uma vez.
Deus ouviu o falso bajulador com indiferença, mas apenas até as palavras seguintes, que Lhe causaram um estranho interesse.

— É claro, Grandioso Criador, que seria diferente se não fosses Tu o meu adversário direto, se Tu fosses apenas um Ser inspirador, mas que não fossem tuas as decisões das jogadas sobre o tabuleiro.

— O que estás a insinuar, Lúcifer?

— Apenas deixa que eu jogue contra peças vivas, de próprio e livre arbítrio, que apenas sejam inspiradas por tua Vontade, mas que seja delas a decisão final.

— Somente os anjos são parte viva de minha Criação, e mesmo um deles conseguiu me descontentar. Por que Eu daria vida a outros seres, meras peças num jogo tolo?

— Será que duvidas, ó Grandioso, que tua simples inspiração sobre as figuras não é suficiente para me vencer nesse jogo?

Vis palavras, porém certeiras.

Como muito tempo depois viria a repetir-se, num episódio envolvendo um certo Jó, o desafio do malfeitor foi aceito. Deus soprou sobre o tabuleiro, que num grande novo mundo se tornou. As figuras, tomaram vida, e logo perceberam que eram donas do supremo dom da vontade. O primeiro movimento foi do grande tentador, e teve algo a ver com um fruto proibido.

Assim, à guisa de entretenimento divino, começou a história dos homens. Condenados a viver num jogo entre as forças do mal e do bem. Numa disputa que parece infinita.

Porém, como séculos para os homens são apenas segundos para o Criador, é bem capaz que a partida já se tenha encerrado lá nos hiperplanos celestiais. Mas, para nós, meros peões animados, o resultado permanecerá um mistério até o final.


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