O Grande Dragão triunfou?

O xadrez praticado no ocidente nunca foi o jogo preferido na China. O país cultivava mais interesse em dois outros jogos de estratégia: o Go (mais antigo que o xadrez) e o Xiangqi (um primo do xadrez, ligeiramente mais simples e com algumas peças diferentes).

Para piorar a situação, após a Revolução Cultural na China na década de 1960, o xadrez ocidental foi banido, pois era considerado uma atividade burguesa.

Então, não é de se estranhar que, em meados da década seguinte, nenhum jogador de destaque internacional viesse da China.

Em 1974, porém, o banimento do xadrez foi revisto (talvez em face do sucesso do jogo como propaganda na vizinha URSS comunista, ou pelo sucesso do recente Match Spassky x Fischer) e foi traçado um plano ambicioso cuja meta era levar a China à elite mundial até o final do século XX. Era a estratégia do “Grande Dragão”.

Se esse plano foi conhecido pelo resto do mundo naquela época, eu não sei, mas a verdade é que ninguém levou muito a sério. Atrás da “cortina de ferro” chinesa, porém, avanços estavam em andamento.

A China, começou a demonstrar evolução quatro anos depois, nas suas primeiras Olimpíadas de Xadrez, realizadas em Buenos Aires no ano de 1978. O time foi composto praticamente por jogadores sem experiência internacional, sem titulação e apenas dois (dentre os quatro jogadores titulares e dois reservas) tinham ELO FIDE: Qi Jingxuan (2405), Chen De (2285), Liu Wenzhe, Liang Jinrong, Chang Tung Lo e Zhang Weida.

Só para termos uma noção comparativa, em 1978, o Brasil tinha o terceiro melhor jogador do mundo, GM Mecking (o Mequinho), além de outros mestres internacionais e estrelas em ascensão como Jaime Sunye Neto.

O desempenho da equipe chinesa surpreendeu a todos, com o decente escore de +6 =3 -5 (20ª posição dentre 66 equipes) e destaque para a medalha de prata de Weida no 2º tabuleiro reserva e performance de GM com 2538.

O que ninguém esqueceu, porém, foi da partida que passou à história como a ‘Imortal Chinesa‘ jogada no 3º tabuleiro do confronto da China contra a forte Holanda. Lu Wenzhen derrotou o GM Jan Donner em apenas 20 lances!

Liu × Donner (Buenos Aires, 1978) Posição após 15. …♔f7

A partir do diagrama acima, pode parecer que as pretas vão consolidar sua defesa com ♖h8 e seguir a vida. Liu Wenzhe, porém, tem mate em 7 lances se encontrar uma jogada simplesmente espetacular! O chinês sem título ou rating executa a sequência com perfeição: 16.♕×g6+!! ♔×g6 17.♗h5+ ♔h7 18.♗f7+ ♗h6 19.g6+ ♔g7 20.♗×h6+ e as pretas abandonam em face do inevitável 20. …♔h8 21.♗×f8+ ♕h4 22.♖×h4#.

Kavalek nos conta que, após o mate, Donner permaneceu sentado em sua cadeira por mais 15 minutos, mirando espantado para o tabuleiro. Então, no melhor de seu estilo, zombou de si mesmo: “Agora serei conhecido como o Kieseritzky Chinês”.

Com essa partida, Lu Wenzhe tornou-se o primeiro chinês a vencer um GM ocidental. Posteriormente em sua carreira, ele obteve a titulação de Mestre Internacional, foi campeão nacional de seu país em 1980 e 1982 e tornou-se um dos principais treinadores do xadrez na China.

Apesar disso, o fraco desempenho do país nas Olimpíadas seguintes de 1980 (38ª colocação) e 1982 (38ª colocação) deixou uma impressão que a ‘Imortal Chinesa’ poderia ser apenas um evento fortuito.

O primeiro Grande Mestre chinês só viria em 1990. Em 1991 a WGM Xie Jun tornou-se a primeira chinesa Campeã Mundial de Xadrez entre mulheres (em 1994 ela obteria o título de absoluto de GM) e o avanço chinês ganhou momentum!

Desde então a China tornou-se gradativamente uma potência enxadrística mundial vencendo duas das últimas três Olimpíadas de Xadrez, domínio no xadrez feminino desde a década de 1990, incluindo a mais jovem mulher da história a obter o título absoluto de Grande Mestre (Hou Yifan, que também foi Campeã Mundial entre mulheres até desistir de defender seu título em 2017). Atualmente, a campeã do mundo é a também chinesa GM Ju Wenjun.

O ápice da estratégia chinesa do “Grande Dragão” traçada há quase 50 anos acaba de ser alcançado, com a vitória do GM Ding Liren sobre o russo Ian Nepomniachtchi em uma das disputas mais combativas dos últimos anos, com várias partidas decisivas na etapa pensada e um dramático desfecho na partida rápida final.

Nepomniachtchi perde o controle emocional ao perceber que o match estava decidido contra ele.

Ainda é cedo para dizer que a conquista de Ding Liren tornará a China tão prevalente no xadrez absoluto quanto é no xadrez feminino, uma vez que Magnus Carlsen ainda é claramente o jogador mais forte do planeta. Porém, se o que parecia ser um evento espúrio em 1978 acabou numa história de sucesso, quem pode duvidar que a apertada vitória de Ding pode dar origem a uma nova dinastia chinesa?

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A máquina finalmente vai matar o xadrez? Ou seremos nós?

Em 1997, quando o computador Deep Blue venceu o campeão mundial de xadrez Gary Kasparov, muitos se perguntaram se o xadrez ia morrer.

A famosa 6ª partida do macth de 1997 Fonte: Veja

A pergunta continua válida nos dias de hoje, mas não pelo motivo que muitos pensaram em 1997.

Desde os anos 2000, os humanos entenderam que a capacidade das máquinas no jogo de xadrez era insuperável. Um sinal disso foi a extinção das competições entre homens e máquinas, coroada pela decepcionante derrota de Kramnik em 2006 (então campeão mundial) contra Deep Fritz.

Kramnik × Deep Fritz 2006 (5ª partida) Fonte: Chessbase

O interesse humano no jogo, porém, não decaiu. Pelo contrário, conforme apontou o Kasparov em um de seus livros, a cooperação entre homens e máquinas ajudou a aprofundar compreensão sobre o jogo, principalmente ao encontrar ideias estratégicas mais profundas e obrigar os jogadores de elite a aposentar aberturas muito especializadas que dominaram o xadrez nas décadas de 1980 e 1990.

Contudo, os smartphones se tornaram poderosos computadores miniaturizados enquanto os algoritmos de xadrez tornaram-se quase perfeitos. Hoje, o jogador comum tem acesso a um super grande mestre no bolso, em seus telefones equipados com as engines mais atualizadas, como o Stockfish.

Para muitos, tornou-se difícil resistir à tentação de utilizar tamanha ajuda em suas partidas, seja amistosas pela internet, ou até mesmo em torneios presenciais (ou OTB de “over the board”)!

Os controles de segurança em torneios OTB, principalmente nos eventos de elite, vinham sendo suficientes para detectar fraudes e desencorajá-las. Mas alguns jogadores ainda tentaram.

O mestre FIDE búlgaro Borislav Ivanov chamou atenção do mundo do xadrez ao passar a apresentar desempenho digno de super grande mestre em diversos eventos. Após ficar famoso e despertar suspeitas, em uma das competições foi pedido que ele retirasse os sapatos. Ivanov não aceitou, alegando questões de higiene pessoal. Nada se provou, mas ele se afastou das competições.

O grande mestre letão Igors Rausis também caiu no doce canto das engines e foi pego consultando um smartphone no banheiro durante uma partida em 2019. Ele foi banido pela federação internacional e perdeu seu título de grande mestre.

A explosão do xadrez online (onde é mais fácil trapacear) e a transferência de muitos torneios que antes eram presenciais para esse formato deu às possíveis trapaças uma nova dimensão, pois agora é possível ganhar premiações em dinheiro além de pontos no ranking online.

Carlsen prestes a abandonar contra Niemann. Fonte: Chessbase

Recentemente, o próprio campeão mundial de xadrez, o norueguês Magnus Carlsen, levantou suspeitas contra um jovem Grande Mestre norte-americano, Hans Niemann, após ser derrotado por ele numa partida presencial. Algumas semanas depois, num torneio online, Carlsen manteve seu protesto ao abandonar uma partida após somente uma jogada.

O assunto ultrapassou a bolha do xadrez e tem sido comentado em diversos meios de comunicação, o que pode ser péssimo para a imagem do jogo.

Se, por séculos, o xadrez tem sido visto como sinônimo de inteligência e pensamento estratégico, a repercussão dessa suposta trapaça arrisca colocá-lo no mesmo nível de meros jogos de azar. Não é a publicidade que o xadrez precisa.

Hans Niemann passando por inspeção de rotina no início do Campeonato Nacional de xadrez dos Estados Unidos (10/2022) Fonte: Chessbase

O problema que esse caso realça é que não se encontrou nada contra Niemann nas buscas rotineiras por aparelhos eletrônicos, o que nos deixa com somente duas possibilidades:

1) Ele não é trapaceiro
2) Ele seria trapaceiro, mas o método que ele usa é impossível de detectar com os meios vigentes

O segundo caso é que preocupa. Pois os avanços tecnológicos aliados à poucos níveis de ética podem criar o cenário ideal para a morte do xadrez: quem vai querer patrocinar eventos onde grandes jogadores não passariam de executores das ideias das máquinas? Como os jovens talentosos se motivariam para compreender as dificuldades do jogo?

Deep Blue não matou o xadrez, nem Deep Fritz, nem Stockfish, nem AlphaZero. Eles são todos inofensivos ao xadrez. São os seres humanos que, se não tomarem cuidado, um dia matarão uma das mais maravilhosas criações da mente humana.

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O menino e o Ogro

O Ogro se sentou para mais um dia de atividade rotineira: destruir egos sobre o tabuleiro. Há décadas, dedicava-se com afinco àquela que era sua tarefa preferida e que executava com sucesso exemplar.

Em oposição ao Ogro, usando as armas brancas, um menino que mal conseguia apoiar os cotovelos na mesa de jogo cumprimentou-o como a um igual.

O Ogro não gostou.

Mesmo em posse das armas pretas, o Ogro tentou assustar o garoto, queria ensinar-lhe uma ou duas lições que aprendera com os anos e as abundantes vitórias. Mas foi uma imprudência. Mais que ninguém, ele deveria saber que não se pode subestimar a vantagem de começar uma partida de xadrez! Quando o menino jogou seu cavalo na casa quatro do rei, o Ogro percebeu que não teria um dia fácil.

Intensificaram-se as caretas e olhares ameaçadores para seu jovem adversário, porém inúteis, pois, tão logo movia suas peças, o menino saía a passear pelo salão de jogos para olhar as outras partidas.

A cadeira, então, se tornava cada vez mais funda, e agora era o Ogro que tinha dificuldades em apoiar seus cotovelos sobre a mesa. Os braços mal alcançavam as peças, o tempo em seu relógio do jogo, estranhamente, corria mais rápido.

Logo o menino tinha um peão de vantagem, as peças do Ogro recuados, as do menino pareciam faróis a iluminar cada casa do tabuleiro.

O que o menino não sabia era que o Ogro odiava perder e, a cada lance defensivo perfeito do adversário, o garoto reavaliava seu plano, a vitória próxima começou a parecer cada vez mais remota, no fundo parou de acreditar nela. Propôs troca de damas, deixando no tabuleiro, além de torres e peões, bispos que não se agrediam, pois não andavam nas mesmas casas.

Subitamente, o Ogro ressurgiu de seu assento, o suor secou de suas têmporas, seus braços se alongaram, as mãos ganharam velocidade! A torre preta alcançou a sétima fila, o bispo correu para a oitava. Assustado, o rei branco ordenou que sua reduzida tropa viesse em socorro.

Nenhum dos dois tinha mais como avançar, a paz agora era inevitável.
O menino deixou o tabuleiro decepcionado. Em sua mente, sobre um tabuleiro imaginário, as peças ainda sumiam e reapareciam em velocidade estonteante, mas a vitória que acabara de escapar não apareceu em suas análises.

Enquanto recolocava o relógio no pulso e experimentava certo alívio, o Ogro não podia evitar a surpresa em perceber o quão rápido passaram os anos, o quão rápido inverteram-se os papéis.

Talvez fosse mesmo um momento de parar, os meninos de hoje já não têm mais medo de caretas.

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Xadrez não é o jogo da imitação

Apesar de comum entre iniciantes no xadrez, repetir as jogadas do adversário não é uma boa ideia. Capablanca nos ensina magistralmente.

Quando uma partida de xadrez é iniciada, existe um perfeito equilíbrio, uma exata simetria. Não fossem as cores alternadas de tabuleiro e peças, os dois bandos pareceriam exata imagem especular um do outro. Só há uma diferença, alguém tem que começar a partida, e esse pequeno desequilíbrio se revela crucial!

A convenção é que as brancas começam, o que deixa o exército preto com a necessidade de compensar o fato de estar sempre um passo em atraso.

Muitos iniciantes, assim, têm uma ideia que parece promissora, principalmente contra jogadores bem mais fortes: repetir exatamente as jogadas do adversário.

A princípio, parece uma boa ideia e, na infinitude de possibilidades para uma partida de xadrez, deve haver pelo menos milhares de situações em que se possa chegar ao empate, mas o fato é que manter a simetria em fases cada vez mais avançadas da partida quase sempre amplifica a vantagem de quem está um lance à frente.

Segue um exemplo simples que, apesar de inverossímil, mostra de cara que não é verdade que SEMPRE repetir o lance do branco leva o preto ao empate:

O caso acima não será visto numa partida real, porém ilustra bem o risco de sempre manter a posição simétrica, postergando e amplificando a vantagem das brancas de ter o primeiro lance: quem tem a vez de jogar pode estar a apenas um lance do mate!

Um segundo exemplo mais realista e ilustrativo vem duma partida centenária jogada pelo ex-campeão mundial José Raul Capablanca em 1918, provavelmente numa sessão de simultâneas. Seu adversário (cujo nome foi não preservado, daí o uso de N.N.) achou seguro repetir os lances do lendário campeão, até receber uma dura lição:

O xadrez não é um jogo contra o espelho, como nos lembram as diferentes cores dos exércitos; enquanto no espelho estamos em frente a nós mesmos, no xadrez, há sempre alguém com ideias próprias do outro lado do tabuleiro !

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Ljubojević: o vingador de aberturas

Quando reuniram-se em Petrópolis, no ano de 1973, dezesseis dos melhores jogadores do mundo para o Interzonal (que decidiria metade dos Candidatos ao título mundial do Ciclo 1973-1975 da FIDE), David Bronstein já era uma espécie de relíquia viva do xadrez: ex-desafiante ao título mundial que empatara um match com Mikhail Botvinnik em 1951, mas que jamais voltara a ter outra chance. Ljubomir Ljubojević , por sua vez, era um vigoroso talento em ascensão, conhecido por seu estilo agressivo.

Talvez essa diferença de expectativas entre o jogador jovem que vinha cheio de ambições e o veterano que não via o xadrez como uma mera competição, mas como uma forma de expressão artística, tenha ajudado a criar uma das partidas mais famosas da história.

Curiosamente, Ljubojević (com peças pretas) adotou uma variante contra a qual havia triunfado facilmente, com peças brancas, quando enfrentou Honfi 3 anos antes. Pode ser que ele pensasse haver encontrado alguma melhoria significativa para o lado preto.

A partida recebeu o Prêmio de Beleza do Torneio Interzonal de Petrópolis.

Inconformado, Ljubojević deve ter aprofundado suas análises após Petrópolis, pois, poucos meses depois, colocou-se novamente na mesma situação contra Florin Gheorghiu, que desviou-se da partida anterior com 18. Re2?, após o qual Ljubojević mostrou estar muito bem preparado:

Não satisfeito com sua primeira “revanche” contra a variante, Ljubojević ainda tinha algo a provar a si mesmo, e repetiu a escolha de abertura numa partida do Interzonal de Riga em 1979, contra Grünfeld, que jogou o lance de Bronstein 18. d6. Foi a vez de Ljubojević desviar-se, melhorando em relação à partida de Petrópolis:

Após essa vitória, Ljubojević não voltou a ter oportunidade de repetir a variante em torneios, mas certamente estava satisfeito por ter conseguido usar sua novidade 18. … Dc5!. Timman opina em seu livro The Art of Chess Analysis que ele deve ter repetido a linha após ter encontrado uma posição cujas “possibilidades eram agudas o bastante e permitiam chances para ambos os lados” após a continuação 19.Ce4 Dd4! conforme se viu na partida de 1979.

Parece que Grünfeld também ficou com a variante “entalada”, pois voltou a enfrentá-la de brancas em 1984, mas acabou perdendo. Como se vê, não é sempre que alguém consegue “se vingar” de uma derrota sofrida!

Ljubojević em 2017
Ljubojević em 2017 (Foto: David Llala)

Para quem quiser tentar, porém, vale a pena pedir umas dicas a Ljubomir Ljubojević.

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