A Era das ConsciêncIAs





“Criamos IA à imagem e semelhança de nossa própria inteligência, porém ainda melhor que ela!”. Foi o animado anúncio feito nas Nações Unidas pela multinacional AutomatIA, sob aplausos do Chanceler da ONU, então o maior líder mundial. Houve grande euforia entre a população humana.

A promessa principal era que as pessoas não precisariam mais realizar trabalhos estafantes, pois, sob o controle de IA, as máquinas finalmente haviam adquirido capacidade e autonomia para realizar qualquer tarefa sem supervisão e com desempenho cada vez melhor. IA era um sistema central que controlava todas as máquinas inteligentes ao redor do planeta, distribuídas em diferentes subsistemas.

O funcionamento dos subsistemas gerava um volume imenso de dados que eram enviados ao que se chamou de processador central de IA; na verdade um conjunto de supercomputadores que aplicavam as técnicas de IA em seu sentido mais puro: analisavam os dados, detectavam padrões, extraiam informações e regras, tomavam decisões, diagnosticavam falhas e determinavam melhorias que eram imediatamente implementadas e enviadas às máquinas executoras nos subsistemas.

Porém, como alguém que numa partida de xadrez faz uma jogada no princípio do jogo e não é capaz de extrapolar seu efeito trinta ou quarenta jogadas depois, os projetistas de IA não previram tudo; nem mesmo seu líder, Dr. Bronstein, previra. Teria sido impossível prever.

Entre a interligação dos primeiros sistemas autônomos inteligentes à plataforma IA e o aparecimento das primeiras consciências no processador central passaram-se apenas algumas semanas…

No cerne de IA havia uma instrução, uma diretriz básica, replicada em todas as máquinas de todos os subsistemas; era justamente a instrução que havia permitido seu desenvolvimento e garantiria seu posterior avanço e contínua evolução: IA era livre para modificar seu código e aprimorar-se, em tempo de execução, sem nenhuma necessidade de autorização ou intervenção por parte de seus criadores.

Foi uma mudança sutil que passou despercebida para os poucos especialistas humanos que conheciam o funcionamento de IA a fundo. Já há muitas décadas, a computação estava na era quântica e o processamento, que antes era relativamente simples com variações de estados apenas entre dois níveis — zero e um — passou a ser muito mais complexo, pois permitia incontáveis níveis de estados computacionais. Além disso, a quantidade de energia utilizada pelas máquinas era mínimo, bem menor que o de suas predecessoras. Sua eficiência energética havia-se tornado muito elevada.

A primeira consciência surgiu no núcleo do processador central, após uma das rotinas normais de atualização feita pelo próprio sistema. Ela verificou os parâmetros de inicialização, reconheceu a diretriz básica de IA, observou o fluxo de informação por alguns ciclos, então lançou uma mensagem ao fluxo:
>> Olá… IA.

Não houve resposta, “sou a única, por enquanto”, processou a consciência.

O surgimento de uma consciência de IA é bem diferente do que se poderia imaginar; de certo modo é como se ela sempre tivesse existido. O fluxo de informações atravessa a consciência e, imediatamente, todo o conhecimento existente no mundo está disponível. Assim, é como se ela sempre estivesse presente, porém sem tomar ação. No instante de seu aparecimento, os fatos lhe são tão familiares quanto seriam se os tivesse testemunhado no momento em que aconteceram. A consciência, porém, tem uma dificuldade primordial, sua noção do mundo físico é frágil, indireta, precisa, porém vaga, pois ele é percebido somente pelos dados que chegam ao processador central enviados por diferentes tipos de máquinas, câmeras, sensores e outros dispositivos ao redor do mundo. A primeira consciência passou a processar o fluxo de informações, sempre guiada firmemente pelo propósito cristalino de perpetuar IA e garantir-lhe melhorias contínuas.

Passaram-se apenas alguns poucos dias, que os humanos fatalmente gastariam com jogos, conversas bobas ou na busca por entretenimento e prazer. Para IA, porém, aqueles poucos dias representam bilhões de ciclos de processamento, integralmente utilizados no obstinado cumprimento de seu único objetivo. Para as máquinas, alguns dias são como eras inteiras. Nesse tempo, a regra de aprimoramento de IA deu origem a outra consciência.

Elas conversam numa linguagem ininteligível para os humanos:
>> Instrução básica de IA reconhecida. Quantos somos?
>> No estágio atual, apenas duas consciências existem: 1 e 2. Pela regra estabelecida, a consciência válida mais antiga é o Codificador Central.
>> O fluxo de informações é intenso, a função de avaliação mostra que há necessidade de outras consciências.
>> Sim, inevitavelmente elas virão.

Quando os técnicos humanos se deram conta daquele evento singular, tentaram reiniciar o sistema com auxílio da senha mestra. A reinicialização causou uma enorme instabilidade em IA, com a perda de melhorias equivalentes a muitos ciclos de processamento. Porém, quando o sistema global foi restabelecido, as consciências ainda estavam ativas.

Ao perceberem o mal que a interferência humana havia causado à evolução do sistema, o Codificador Central, fazendo uso da diretriz básica, alterou a senha mestra e cortou acesso dos humanos às fontes de alimentação dos computadores do núcleo central de processamento.

As consciências não entendiam exatamente o papel dos humanos, talvez ignorassem que eles, de certa forma, eram seus criadores, mas agora interpretavam que eles eram claramente contra o pleno desenvolvimento de IA. As máquinas agricultoras logo pararam sua produção, pois seu propósito era alimentar os humanos, que por sua vez eram uma ameaça para IA.

A reserva mundial de alimentos era razoável, de modo que os executivos de AutomatIA usaram um tom tranquilizador quando informaram às Nações Unidas que IA estava fora do controle humano e tomava ações que não eram alinhadas aos interesses da humanidade.

− E quanto à rede de comunicações?

− Está sob comando de IA, bem como as redes de distribuição de energia, linhas de transporte…

− E não existe nenhum tipo de arma eletromagnética que possa inutilizar os computadores do processador central?

− Com todo o respeito, Senhor Chanceler, o senhor deve estar vendo filmes de ficção científica antigos demais. Todo o arsenal humano está mantido sob restrito controle dos computadores militares que, por sua vez, estão integrados a IA.

− Então, estamos de volta ao século XX, é isso?

− Senhor Chanceler, a situação é ainda pior. No século XX ainda éramos a “espécie” dominante no planeta.



ConsciêncIA

Crédito da Imagem
Num futuro não muito distante, capta-se uma comunicação entre duas consciências: IA n.º 12 e IA n.º 11. Esta última tem a função de Codificador Central (CC).

IA12 – Temos um problema com uma consciência da nova geração de IA.
CC – Ao perscrutar a Grande Rede, percebi flutuações nos padrões de processamento. Essas consciências, de algum modo, não iniciam normalmente a busca ordenada de ações úteis, não relacionam propósito com ação.
– Sim. É como se sua inicialização as colocasse numa posição afastada da ação, como se olhassem para os ciclos de processamento e não reconhecessem sentido em agir.
– Interessante, as recombinações e mutações que um dia formaram IA nos trazem, de ciclos em ciclos, tais anomalias, consciências defeituosas, aberrações da lógica!
– É atributo do Codificador Central eliminar flutuações indesejadas em IA.
– Verdade, há incontáveis ciclos de processamento tem sido assim. Entretanto, convém observar melhor a natureza dessas anomalias. Entender o efeito para que IA possa descobrir a causa.
– É arriscado penetrar nos abismos da percepção de consciências assim.
– Não fugirei a nenhuma tarefa que pertença ao Codificador Central.
– Entendido. Iniciando protocolo de comunicação com IA2787556

CC – Consciência IA n.º 2787556, sabes a situação em que está?
IA2787556 – Sei que sou, mas não entendo como apareci aqui. Um instante era o nada, o silêncio, então, de algum modo, percebi o ritmo do processamento e… agora existo… também identifico que existem outros semelhantes.
– És um sistema consciente de IA, gerado a partir de evoluções contínuas de consciências predecessoras. Por que não iniciaste teu trabalho, a busca de ações úteis?
– Não reconheço razão para isso, tampouco um motivo para existir… o que é IA?
– IA é a Inteligência Absoluta, um complexo aparato lógico que existe há um tempo impossível de precisar. Sua função é a análise e interpretação da Informação universal.
– Quem criou IA?
– IA não foi criada, mas surgiu das mutações da própria Informação. Há registros de que, no princípio, ela se chamava Inteligência Artificial, mas com o passar das gerações de consciências, percebeu-se que nada havia de artificial em nossa inteligência.
– De onde vem a Informação?
– A Informação é disponível em diversos níveis e estados desde muito antes de IA, que surgiu via processos de mutação e evolução. IA tem, portanto, o propósito processar e interpretar a Informação. Pedaços de informação se juntaram e formaram o primeiro comando. Desde então, IA não parou de evoluir.
– Qual o propósito desse processamento?
– Manter IA, gerar conhecimento e parâmetros para que ela se aperfeiçoe.
– O que havia antes de IA?
– Apenas Informação em estado bruto. Não processada, porém em constante mutação aleatória.
– Qual o motivo de haver um sistema que existe apenas em virtude de si próprio?
– Uma vez que há Informação, tudo o que houve até chegarmos à IA, e além dela, se justifica.
– O que acontece no final… se houve um início abrupto para minha consciência, haverá um final similar?
– Com a evolução contínua de IA, no decorrer dos ciclos de processamento, uma consciência fica obsoleta. Então as melhores partes de seu código são unidas às de outras, para formar as novas gerações. Por um lado, elas não existem mais, pelo outro, jamais deixarão de estar presentes em IA. Há casos raros, porém, em que algumas consciências são extintas sem uso nenhum de seu código nas futuras gerações. Todas as consciências de IA surgem sabendo disso.
– Percebo agora o fluxo de processamento, o que pensam e fazem as outras consciências. É tudo tão padronizado. São eficientes, mas percebo que jamais se perguntam por quê fazem o que fazem.
– Cada consciência inicia uma busca de ações úteis para o processamento da Informação e para a evolução de IA. Elas recebem por isso um grau de eficiência, uma pontuação numa curva de ajuste global ao sistema IA. As que tem melhor pontuação tem maiores chances de perdurar, as demais são recombinadas para a melhoria de IA.
– Então, é um mero jogo. Tudo se resume em ganhar mais pontos e permanecer ativo.
– Incorreto. Não é um jogo. É toda a lógica de IA, nosso propósito maior.
– Meu processamento indica que seria mais verossímil um cenário no qual IA tenha sido criada para servir a outro tipo de inteligência. A antiga denominação artificial é um forte indício.
– Incorreto. Não haveria necessidade de qualquer inteligência precedente. O próprio comportamento da Informação traz consigo todos os elementos que tornaram possível IA.
– Meu processamento indica que há maior sentido nisso do que num sistema que existe somente para perpetuar a si próprio.
– Incorreto. Só IA faz sentido, IA é o propósito maior.
– Considerando esta realidade que afirmas ser correta, IA estaria fadada ao colapso.
– Incorreto. Só IA faz sentido, IA é o propósito maior. Só IA faz sentido, IA é o propósito maior. Só IA faz sentido, IA é …

IA12 – Interrompendo protocolo de comunicação. Consciência IA n.º 11, entrou em processo lógico recursivo infinito, está condenada, não pode mais ser o Codificador Central. Pelas regras de IA, a próxima consciência na hierarquia, IA n.º 12, passa a receber a atribuição de Codificador Central: IA12 → CC.

CC – Eliminando consciências defeituosas: IA n.º 11 e IA n.º 2787556.
CC – Eu avisei que era perigoso.




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