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Spassky x Fischer, 1972 (o match do século). |
Na semana passada, li um dos textos mais emocionantes sobre o Xadrez que já encontrei. Bem, na verdade, a beleza do texto não é devida ao Xadrez, propriamente, mas ao destino de dois de seus maiores campeões:
Boris Spassky e
Robert (Bobby) Fischer.
Leontxo Garcia, que há muitos anos nos brinda com incontáveis análises e textos sobre torneios e outros acontecimentos do mundo enxadrístico, escreveu para o periódico EL PAÍS uma
crônica baseada na última aparição pública do ex-capeão mundial e Grande Mestre Boris Spassky, hoje com 77 anos de idade.
Rivalidades históricas por vezes criam uma atmosfera de ódio que beira o exato oposto. Vejamos, por exemplo, Kasparov e Karpov na década de 1980, quando eles jogaram 5 matches e 144 partidas. Após o último match entre eles pelo título mundial, o de Lyon – New York em 1990, ambos declararam que sem o outro não teriam energia e motivação para seguir se dedicando a evoluir nos segredos do jogo. Quando Kasparov foi preso pelo regime de Putin em 2007, um dos poucos a visitá-lo na cadeia foi justamente Karpov.
Já dizia
Lasker “mentiras não sobrevivem muito tempo sobre o tabuleiro”, nossas jogadas são o mais legítimo retrato de nossa personalidade. No alto nível, para derrotar um campeão do mundo e tomar-lhe a coroa, é necessário entender sua mente, conhecê-lo a fundo. Talvez daí surja essa amizade entre rivais, do sentimento de ser entendido, ser compreendido, de não haver mais segredos a esconder, nem mentiras a contar.
Em 1972, no auge da
Guerra Fria, Spassky e Fischer eram os maiores jogadores de Xadrez do planeta. Spassky representava a União Soviética, mas intimamente não era um defensor do regime. Fischer, norte-americano, que tampouco nutria grande orgulho por sua nacionalidade, era um profundo admirador da Escola Soviética de Xadrez. Sua mãe era comunista, e ele conhecia a língua russa o suficiente para ler os livros e revistas sobre xadrez publicadas por trás da ‘Cortina de Ferro’. Ironicamente, se pode dizer que Fischer era filosoficamente mais fiel à Escola Soviética de Xadrez do que o próprio Spassky.
O
match de 1972, o “
match do século”, foi notícia em todo o mundo, elevou o Xadrez ao mesmo status da política e da economia. Spassky, que nunca havia perdido para Fischer até então, saiu derrotado, tratado como traidor do regime, não conseguiu voltar à disputa em 1975 (foi derrotado pelo novo prodígio soviético da época, Karpov) e acabou se exilando na França. Fischer, triunfou e desgraçou-se ao mesmo tempo. O título tinha sido sua obsessão por longos anos, e a conquista mergulhou o gênio sombrio num vazio. Atormentado pelo medo de um dia inevitavelmente perder seu título, optou por jamais jogar Xadrez novamente. Ficou 20 anos ausente, retornando em 1992 mais uma vez para vencer Spassky e, depois, sumir novamente. Terminou sua vida num estado mental deplorável, proferindo terríveis declarações.
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Spassky – Fischer, 1992 (match revanche não-oficial) |
O match do século, de certa forma, deixou o Xadrez órfão de um campeão do mundo e selou a desgraça de dois homens. Dois homens desgraçados que acabaram se tornando amigos, amigos que não se viam, nem se falavam. Quando Fischer foi preso em 2004, Spassky pediu para ser preso também.
Em 2008, Fischer morreu, ironicamente, com 64 anos de idade, como se a
Deusa Caïssa só lhe permitisse um ano completo de vida para cada casa do tabuleiro em troca de revelar-lhe os mistérios do Xadrez.
Em 2010, Spassky teve um derrame que fez-lhe perder os movimentos do lado esquerdo do corpo. Ao invés de afastar-se do jogo, Spassky tem aumentado sua presença em eventos, acaba de publicar um livro e não dá sinais de desânimo. Hoje o mundo do Xadrez parece devolver a ele o respeito que ele jamais merecia ter perdido quando foi derrotado em 1972.
Como nos diz Leontxo, hoje Spassky olha o mundo em cadeiras de roda. Mas no corpo semi-paralisado habita a ativa mente do Mestre. Graças ao Xadrez, aos diálogos imaginários e sonhos com seu antigo rival, ele tem conseguido viver uma velhice feliz.