Lances Quase Inocentes (LQI) é um blog de xadrez. Contos, crônicas, entrevistas, cinema e dicas de conteúdo. Campeões mundiais de xadrez, história do xadrez, partidas e jogadas mais famosas da história.
Análise do grande Capablanca, terceiro campeão mundial de xadrez, daquela que foi quase sua última derrota.
Com sabem, o grande José Raul Capablanca y Graupera perdeu pouco mais de 50 partidas em toda a sua carreira profissional. Muitas delas, como se vê ao analisar tais derrotas, frutos de certo descuido do grande campeão mundial que, em face de sua enorme compreensão do jogo, por vezes passava por alto as ameaças dos rivais.
E sua obra clássica, Chess Fundamentals, de 1921, Capablanca lançou de forma didática as bases de seu modo de pensar o xadrez. Na parte final do livro, ele analisa por completo 14 partidas, muitas das quais perdidas por ele. Trata-se de uma fonte maravilhosa de ensinamentos.
Uma delas chama a atenção: sua derrota contra Oscar Chajes, no torneio em memória de Leopold Rice, em 1916. Chajes foi um mestre norte-americano de origem austro-húngara (hoje parte da Ucrânia) que era também secretário de Leopold Rice em seu cube de xadrez. Ele foi campeão do estado de Nova Iorque várias vezes.
Durante mais de 8 anos, esta foi a última derrota de Capablanca, até ter que inclinar seu rei contra Reti, no lendário torneio de Nova Iorque de 1924.
Levando em conta o valor dos ensinamentos de Capablanca, traduzi e atualizei a notação da análise que faz de sua partida contra Chajes. Chamo atenção em especial ao estilo pessoal das notas do grande cubano, da maneira como se culpa pelos erros e como enaltece os acertos do adversário.
Com a palavra, Capablanca, conforme nos deixou em seu famoso livro:
Xadrez, cinema e Guerra Fria estão novamente juntos no lançamento do NETFLIX: The Coldest Game (2019). Uma produção polonesa estrelada por Bill Pullman. As referências a fatos históricos do xadrez são abundantes.
Xadrez e matemática costumam ser paixões correlatas para muitos. Um recente lançamento da NETFLIX uniu esses dois assuntos ao perene e interessante tema da Guerra Fria: The Coldest Game (Partida Fria, na versão não tão adequada do título em português).
Usando elementos da atmosfera do match Spassky × Fischer pelo título mundial, o Match do Século, que realmente aconteceu em 1972, o diretor polonês Lukasz Kosmicki traz o xadrez como peça central na famosa questão dos mísseis soviéticos em Cuba no ano de 1962 (portanto quase uma década antes de Spassky × Fischer), talvez o ponto mais alto da chamada Guerra Fria entre EUA e URSS.
A trama de Kosmicki e Marcel Sawicki (roteirista) utiliza-se de um match entre dois mestres de xadrez como meio de obter informações cruciais sobre as ameaças dos mísseis soviéticos em Cuba.
A disputa seria entre o campeão soviético Grande Mestre Alexander Gavrylov e o campeão norte-americano Grande Mestre John Konigsberg, morto misteriosamente há dias do confronto. É escolhido então o último jogador norte-americano a ter vencido Konigsberg em torneios: um obscuro e ex-professor de matemática em Princeton Joshua Mansky (interpretado por Bill Pullman) , que anos antes fora um genial enxadrista e colaborador do projeto Manhattan, mas ultimamente dedicava-se somente às cartas e ao álcool.
O match se desenrola em Varsóvia, local ideal para que um militar dissidente soviético que fazia parte das forças do Pacto de Varsóvia encontrasse oportunidade para entregar aos americanos informações que poderiam antecipar ou adiar uma guerra nuclear.
Para o fã de xadrez, apesar de alguns erros técnicos (como o match ser composto de um número ímpar de partidas, ou a pressa dos jogadores em mover as peças em momentos chave), o filme traz bastantes cenas empolgantes, como o belo salão onde são disputadas as partidas, closes no tabuleiro sem os habituais erros cometidos em outros filmes, o que permitiu analisar boa parte das partidas do match!
A primeira partida é decidida a favor do americano, felizmente foi possível capturar a exata posição:
O desfecho deve ser conhecido para alguns enxadristas mais estudiosos, e demonstra o bom trabalho feito pelo Mestre Internacional polonês Andrzej Filipowicz, que foi consultor técnico neste filme no que diz respeito ao xadrez. Ele escolheu um desfecho brilhante que ocorreu numa partida real entre dois poloneses, Tylkowsky × Wojciechowski, disputada em 1931.
A partir do diagrama acima, a partida Mansky × Gavrylov segue com 30.Ca4? (segundo as engines melhor seria 30.f5) … T×b2!!31.C×b2 c3! 32.T×b6 (único) … c4! 33.Tb4? (seria melhor 33.C×c4, mas a vitória das pretas viria após 33 … c2!!) … a5!!, e Gravrylov deixa a mesa indignado, abandonando a partida. No caso real, Tylkowski ainda resistiu até o 40º lance.
Uma curiosidade é que esse desfecho ocorreu de forma quase idêntica 2 anos depois em Madrid, numa partida entre Esteban Ortueta e Aguado Sanz :
A ocorrência de um tema tão complexo e belo em duas partidas realizadas em anos e países diferentes (quando não havia internet nem Google) torna esse desfecho ainda mais espetacular, talvez por isso tenha sido escolhido para o filme (além de ser um dos pontos altos do xadrez polonês, certamente).
Na segunda partida, é a vez de o soviético levar a vantagem, aproveitando-se de um hipnotizador na plateia que atrapalha Mansky (mais uma vez é pescado algo da história real do jogo, mas que só ocorreu no match de 1978 pelo título mundial entre Anatoly Karpov e Viktor Korchnoi). A posição principal jamais é mostrada inteiramente, o que dificulta sua identificação, mas passa a sensação de que o norte-americano caiu numa cilada de abertura.
A terceira partida sequer é mostrada: empate.
A quarta partida, por sua vez, recebe diversos enfoques diretos, o que permite definir o desenlace no tabuleiro. Na posição abaixo, Mansky, de brancas, propõe empate, mas o soviético diz algo como “A posição do tabuleiro está clara. Não!”. Uma fala estranha, a julgar pelo que se vê no tabuleiro, no qual há igualdade material e ligeira vantagem branca devido à exposição maior do rei preto:
Mansky segue, então, com uma sequência de lances rápidos, com respostas igualmente rápidas de seu oponente: 1.Db3+ Rh8 2.Tad1 Bd7 3.Bb6 De8 4.Da3 Cfg8 5.Cd5 Bg4 6.Cc7 Dc6 7.Td6 Dc2 8.C×a8 T×a8 9.Bd4 Cf5 10.B×g7+, após o qual Mansky novamente propõe empate.
Desta vez, ao ver que o empate lhe favorecia , Gavrylov levanta-se, cumprimenta seu oponente aceitando a oferta e, em seguida, aplaude o adversário. A referência para este aplauso é o gesto idêntico que fez Spassky ao final da 6ª partida do Match do Século em 1972, quando aplaudiu Fischer por sua brilhante vitória (que dava ao americano a dianteira pela primeira vez naquele match). No filme, a situação do match agora é de igualdade em 2 pontos após 4 partidas.
A partir deste momento, no match e na trama central da história, não seria possível qualquer análise sem revelar fatos importantes, razão pela qual deixo o restante para quem se interessar em ver o filme. Garanto que haverá surpresas, como num xeque duplo a descoberto!
Partida Fria vai agradar um amplo público, desde os exigentes enxadristas (que vão avaliar meticulosamente todos os pormenores técnicos) e matemáticos (que vão gostar das diversas referências, como o problema lógico de decidir qual caminho seguir numa encruzilhada por meio de um única pergunta feita a um de dois irmãos, um que sempre mente e outro que sempre fala a verdade, sendo que não se sabe qual é qual), até o público em geral, que sempre recebe muito bem tramas baseados em fatos reais, com guerra, intrigas e espionagem.
É sempre bem vindo um filme que trate o xadrez com decência técnica sem perder a chance de emprestar seu charme e simbolismo às duras batalhas da vida fora dos tabuleiros.
A posição acima ocorreu no torneio de Wijk aan Zee de 1996, quando o ucraniano Vassily Ivanchuk assombrou seu adversário, o letão Alexei Shirov, os demais jogadores e todos aqueles que acompanhavam o torneio com aquele que é considerado por alguns como “o lance mais espetacular de todos os tempos”: 21.Dg7!!, que então era uma novidade teórica!
Sem dúvida é uma jogada bela e paradoxal (com lampejos da outra famosa jogada). Talvez atônito, Shirov não foi capaz de jogar da forma mais combativa e acabou perdendo após 21. … B×g7 22.f×g7 Tg8 23.C×c5 d4 24.B×b7+ T×b7 25.C×b7 Db6 26.B×d4 D×d4 27.Tfd1 D×b2 28.Cd6+ Rb8 29.Tdb1 D×g7 30.T×b4+ Rc7 31.Ta6 Tb8 32.T×a7+ R×d6 33.T×b8 Dg4 34.Td8+ Rc6 35.Ta1(1-0).
Ivanchuk × Shirov (Wijk aan Zee, 1996)
Não deve ter sido fácil para um jogador daquela força ser lembrado por tamanha derrota, mas, anos depois, no mesmo torneio, Shirov teria a chance de se redimir.
Ruslam Ponomariov, campeão mundial da FIDE em 2002, resolveu testar se Shirov já estava recuperado daquela derrota de 7 anos antes, naquele mesmo torneio de Wijk aan Zee, e repetiu o sacrifício de Ivanchuk (que então já se tornara parte da teoria de aberturas), mas ele não imaginava que Shirov estava louco para se redimir, mesmo que fosse contra outro adversário (que, aliás, é ucraniano como Ivanchuk).
Shirov desviou-se da partida anterior com 23. … T×g7 24. C×d7 D×d7 25.T×a7 Tg6 (Stockfish recomenda 25. … f6) 26. Tfa1 (Stockfish recomenda 26.Td1) … Te6. A partir de agora Shirov joga quase sempre a primeira opção recomendada pelo Stockfish e vence exemplarmente! 27. Bd4 Te2 28.h4 Td2 29.Be3 T×b2 30.T1a5 b3 31.Tc5+ Rd8 32.T×b7 D×b7 33.T×d5+ D×d5 34.B×d5 Tb1+ 35.Rg2 b2 36.Be4 Td1 37.Bg5+ Re8 38.Bf6 b1=D 39.B×b1 T×b1 40.h5 Rf8 41.g4 Td1 42.Bb2 Rg8, e as brancas abandonam. Se 43.Rf3 c3, seguido de Td3+(0-1).
Ponomariov × Shirov (Wijk aan Zee, 2003)
Nos últimos anos, diversos jogadores famosos enfrentaram o sacrifício Dg7, dentre eles o atual campeão mundial, Magnus Carlsen, mas não consta que ninguém mais tenha tentado aquele truque novamente contra Shirov!
Um dos finais mais bonitos que aprendi ainda no início dos meus estudos de xadrez foi o “Exemplo 23” do livro “Chess Fundamentals” escrito pelo genial J. R. Capablanca.
Atualmente, esse livro se encontra em domínio público e está disponível no site do Projeto Gutemberg (uma curiosidade é que ele veio ao mundo originalmente em inglês em 1921 e foi traduzido para o espanhol somente em 1947).
Fiz uma tradução livre da lição tal qual se encontra no livro e deixo aqui para o deleite dos leitores.
Fatalmente, as engines poderão indicar uma solução diversa da assinalada pelo ex-campeão mundial, mas a didática e a beleza do método proposto servem de base para a construção do pensamento enxadrístico de qualquer jogador.
Com a palavra, Capablanca:
Nesta posição, a melhor linha de defesa para as brancas consiste em manter seu peão em h2. Assim que o peão é avançado, fica mais fácil a vitória para as pretas. Por outro lado, o plano vitorioso para as pretas (supondo que as brancas não avancem seu peão) pode ser dividido em três partes. A primeira parte será obter o seu Rei para o h3, mantendo ao mesmo tempo intacta a posição dos seus peões (isso é da maior importância, já que, para ganhar o jogo, é essencial no final que as pretas possam avançar seu peão mais recuado, uma ou duas casas, de acordo com a posição do rei branco).
1.♔g3 ♔e3 2.♔g2 … Se 2.♔g4 ♔f2 3.h4 g6 e ganham as pretas.
2…. ♔g2 ♔f4 3.♔f2 ♔g4 4.♔g2 ♔h4 5.♔g1 ♔h3 A primeira parte foi concluída.
A segunda parte será curta e consistirá no avanço do peão da torre até o rei preto.
6.♔h1 h5 7.♔g1 h4 Isso dá fim à segunda etapa.
A terceira parte consistirá em calcular o avanço do peão do cavalo de modo a jogar … g3 quando o rei branco estiver em h1. Agora se torna evidente quão necessário é ser capaz de mover o peão do cavalo preto uma ou duas casas de acordo com a posição do rei branco, como indicado anteriormente (*). Neste caso, como é a vez das brancas, o peão deve avançar duas casas, já que o rei branco estará no canto, mas se fosse agora a jogada das pretas, o peão deveria avançar apenas uma casa, já que o rei branco estaria em g1.
O estudante deve tentar aprender a pensar dessa maneira analítica. Ele irá, assim, treinar sua mente para seguir uma seqüência lógica no raciocínio de qualquer posição. Este exemplo é um excelente treino, pois é fácil de dividir em etapas e explicar a ideia principal de cada uma delas.
(*) Referência a uma lição anterior contida no livro.
Em 1961, Fischer, um astro em ascensão, jogou um match contra o antigo menino prodígio e consagrado grande mestre norte-americano Samuel Reshevsky. Uma das armas do veterano era a variante acelerada da Defesa Siciliana Dragão contra a perene abertura do peão do rei de Fischer.
Fischer optou pela pacífica linha 12. Dg4 d6 13 Dd1, que deixa as pretas em boa posição. A partida terminou com a divisão do ponto. Análises subsequentes acabaram por conferir a esta subvariante uma fama de “empatativa”, de modo que o próprio Fischer alterou seus planos para o mais sólido sistema Maroczy contra a Dragão.
No ano seguinte, a mais de 8000 km de distância, a posição acima se repetiu numa partida de um evento por equipes na URSS entre o Mestre Internacional Rashid Nezhmetdinov e o Grande Mestre Internacional Oleg Chernikov.
Talvez a partida de Fischer fosse conhecida de ambos os soviéticos, mas o fato é que Nezhmetdinov começou a pensar além do normal para uma posição com opções tão limitadas e com desfecho tão claro: o empate por repetição de lances (após 12. Dh6 Bg7 13. Dh4 Bf6 etc) ou pela linha escolhida por Fischer. Chernikov pôs-se a passear pelo salão, e chegou até mesmo a perguntar para Vladimir Voloshin, amigo de Nezhmetdinov: “Você sabe porque Rashid Gibyatovich está pensando tanto? É uma posição morta. Se ele queria evitar o empate, deveria ter pensado antes” Foi quando um garoto chegou até ele dizendo: “Senhor, ele acaba de sacrificar a dama!”.
Quando Chernikov voltou ao tabuleiro, estava jogado o fantástico lance que Fischer não fez: 12.D×f6!! Um dos sacrifícios intuitivos mais fantásticos da história do xadrez.
A partida seguiu com 12.… Ce2+ 13.C×e2 e×f6 14.Cc3 … O plano das brancas se baseia em explorar a grande diagonal a1–h8 desguarnecida pelo bispo da Dragão que foi tomado pela dama, e trazer uma torre até f3. 14.… Te8 (muitos analistas indicaram que teria sido melhor continuar com 14.… d5, após o qual Nezhmetdinov teria jogado 15.Bd4! e usar plano similar ao da partida) 15.Cd5 Te6 16.Bd4 Rg7 17.Tad1 d6 18.Td3 Bd7 19.Tf3 Bb5 20.Bc3 Dd821.C×f6! mais uma vez um lance crucial na casa f6 ! 21.… Be2 22.C×h7+! Rg8 23.Th3 Te5 24.f4!24.… B×f1 25.R×f1 Tc8 26.Bd4! O bispo vale muito mais que a torre inimiga! 26.… b5 27.Cg5 Tc7 … As brancas lançam mão de elegante combinação final para simplificar a posição com 28.B×f7+!T×f7 29.Th8+ R×h8 30.C×f7+ Rh7 31.C×d8 T×e4 32.Cc6 T×f4+ 33.Re2 Apesar de o final ainda demandar técnica por parte das brancas para ser vencido, Chernikov reconhecia que aquele era o dia de Nezhmetdinov, ou talvez ele só quisesse finalmente poder levantar-se a cadeira (1-0).
Nezhmetdinov, um mestre pouco conhecido fora da ‘Cortina de Ferro’, mas cujo ímpeto de ataque lhe rendeu a alcunha de “enxadrista assassino“, foi grande amigo e grande influenciador de Mikhail Tal (contra quem, aliás teve escore positivo +3 -1 =0!).
Realmente uma lástima que, por diversos motivos, nunca tivemos um confronto “Fischer × Nezhmetdinov”, teria sido épico!
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