Por que ‘Lances Quase Inocentes’?

Muitas vezes me perguntam sobre a escolha do nome deste blog. Fora dos círculos enxadrísticos fica um nome meio estranho mesmo, aliás, pouco tem a ver com xadrez, à primeira vista. Porém, quase todos que jogam ou jogaram xadrez, logo percebem a associação.


Em 1993, lançaram um filme muito bom sobre xadrez, chamado “Lances Inocentes” na versão em português do título, mas que no original se chama “Searching For Bobby Fischer” (Procurando por Bobby Fischer).


Trata-se da história real dum garoto americano, Joshua Waitzkin, que mostra um incomum talento para o jogo de xadrez, apesar de nenhum incentivo aparente em casa, já que seus pais não jogavam. E muitos passam a apostar nele como o próximo Bobby Fischer.

Lá nos Estados Unidos, que foi hegemônico no xadrez mundial na década de 1930, o xadrez só foi redescoberto pelas massas após o fenômeno Bobby Fischer, o excêntrico e genial grande mestre que em 1972 se tornou o primeiro ocidental a se tornar campeão mundial, após longo QR domínio soviético sobre o jogo. Só que, depois disso, Fischer desapareceu do mapa, por assim dizer. Não jogou mais torneios, nem partidas sérias, não aceitou defender seu título contra o novo desafiante oficial oriundo dos duríssimos torneios classificatórios, o soviético Anatoly Karpov, em 1975, e deixou de ser o campeão oficial desde então. Fischer abandonou este mundo em 2008, curiosamente, aos 64 anos de idade.

Assim, após provar do gosto da vitória, e ver um aumento súbito no número de praticantes do jogo, o xadrez dos Estados Unidos se viu numa busca tácita daquele que seria o próximo Fischer, daí o nome original do filme.

O título em português capta outra faceta da história, que mostra um menino que, apesar de talentoso, diferencia-se do ídolo de seu país, por ser quase bondoso com seus adversários, apesar de vencer quase todos.

O garoto passa certa inocência quando joga, um estilo ainda não maculado pelos vícios de anos de torneios, pela ânsia de ganho de pontos de rating e títulos. O xadrez, para ele, ainda se mostra como é: o maravilhoso mundo de descobertas, um fim e não um meio, um pouco da luz que nos é dada a enxergar em meio a tanta escuridão.

Fica a dica: quem não viu, procure ver!

Xadrez e Trapaça: Soviéticos agiam em Cartel nos Torneios de Candidatos até 1978?

O fato de ser engenheiro, e ter tomado gosto pela investigação científica durante meu mestrado, leva-me a ter contato com variados estudos e artigos, a maioria deles estritamente no ramo da engenharia, mas, algumas vezes, caem em minhas mãos alguns relacionados com uma de minhas maiores paixões: o xadrez.

O artigo em questão tem o seguinte título em inglês: “Did the sovietes collude? A statistical analysis of championship chess 1940 – 1978” de Charles C. Moul e John V.C. Nye publicado em 2009 no nº 70 do periódico científico internacional Journal of Economic Behavior & Organization. Em português, pode ser traduzido assim: Os soviéticos agiram em cartel? Uma análise estatística de campeonatos de xadrez entre 1940 e 1978.

O trabalho trata de analisar dados estatísticos de torneios no período 1940-1978 envolvendo soviéticos e não-soviéticos em eventos internacionais (sob tutela da FIDE) e comparando com torneios no mesmo período jogados apenas por soviéticos (como os campeonatos da URSS). O objetivo é saber se os soviéticos agiam como um cartel em eventos internacionais, empatando rapidamente partidas entre eles e jogando para valer contra os demais. Os autores argumentam que essa estratégia, em torneios longos do tipo todos-contra-todos (abreviarei para T-T) traria melhores resultados aos soviéticos, pois estariam mais descansados (os autores estimaram uma diferença equivalente em rating de 42,8 pontos em favor dos jogadores mais descansados).

Alguns resultados obtidos por eles chamam bastante a atenção e fortalecem a hipótese do cartel para o período investigado (1940 – 1978):

  • Em eventos FIDE do tipo T-T os soviéticos empataram em média 60% das partidas contra seus compatriotas, enquanto que a média geral de empates entre 2 não-soviéticos ou entre um soviético e um não-soviético foi de 50%;
  • Em média, apenas 46% das partidas entre soviéticos em eventos fechados na URSS foram empates, contra 60% em torneios FIDE;
  • Em média, as partidas empatadas entre soviéticos em eventos FIDE foram 8 lances mais curtas que empates entre soviéticos em eventos fechados na URSS;
  • Em torneios FIDE do tipo mata-mata (ou nocaute, KO), não se percebe diferença significativa na quantidade de empates: soviético x soviético (56,2% de empates) e soviético x não-soviético ou 2 não-soviéticos (55,6% de empates).

Após esta primeira comparação, foram analisados os Torneios de Candidatos de 1950 a 1962. Os autores calcularam as probabilidades de vitória de cada participante desses torneios sob 2 hipóteses:

  • A – os soviéticos agiram em cartel, empatando partidas entre eles a fim de “guardarem forças” contra os demais jogadores;
  • B – os soviéticos não agiram em cartel.

Para realizar essa comparação, em cada hipótese (A e B), 10.000 simulações de resultados foram feitas, e calcularam-se as médias dos resultados individuais nessas simulações (no caso A, os resultados entre soviéticos foram simulados como empates; no caso B foram tomados aleatoriamente). No caso B, o resultado médio das simulações foi muito mais coerente com os ratings estimados no site Chessmetrics por Jeff Sonas para os jogadores nas épocas em que os torneios foram realizados.

Segundo os autores, o evento no qual a hipótese do cartel soviético teria maior impacto no resultado seria no famoso Torneio de Candidatos de Zurich 1953, um longo evento T-T de dupla volta em que cada jogador disputou 28 partidas. As chances de vitória de um soviético (eram 9 de um total de 15 participantes) sob a hipótese de cartel foi estimada em 75,7% contra 48,5% de chances se a hipótese fosse falsa.

O Torneio de Candidatos de Curaçao 1962, famoso pela denúncia de Fischer sobre a forma como os soviéticos controlavam o resultados do torneio (e que aparentemente foi uma das motivações para o estudo feito por Moul e Nye) também foi analisado. O torneio contou com 8 jogadores (5 soviéticos) que se enfrentavam todos contra todos 4 vezes! A chance de vitória de um soviético sob a hipótese de cartel foi estimada em 93,7%, contra 80,8% de chances caso a hipótese de cartel seja falsa.

Fischer × Kortchnoi em Curaçao 1962
(fonte: chessbase.com)

Os autores concluem que sua análise, a primeira do tipo a usar forte base estatística para analisar o assunto (segundo eles), apenas reforça a ideia generalizada e facilmente compreensível de que os soviéticos, em eventos no exterior, deveriam estar sujeitos a algumas pressões para agir como um time e que assim o faziam. Eles não dizem nem sim, nem não à pergunta do título, mas afirmam que a probabilidade de ocorrerem os resultados observados na prática sem nenhum tipo de cartel, ou outra estratégia de grupo dos soviéticos, seria muito menor.

Eles deixam claro que, obviamente, este não é o único fator que levou à hegemonia da URSS no xadrez naquele período, mas que, aliada à notória força dos grandes mestres soviéticos, a estratégia de cartel tornava quase impossível a um não-soviético tornar-se o desafiante oficial ao título mundial. Por exemplo, enfatizam o caso de Zurich 1953, quando Reshevsky era o favorito com 28,6% chances de ser o campeão caso não houvesse cartel, mas que, havendo cartel, suas chances cairiam bruscamente para 14,8%. No final, sabemos que o campeão foi Smyslov, com Bronstein e Reshevsky empatados em segundo.

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As 3+ deste blog

Este blog tem 10 meses desde sua criação, e, na maior parte do tempo, eu mostrei partidas minhas ou fiz comentários sobre fatos do xadrez que me interessaram, nunca com a pretensão de ensinar. Revisando as postagens antigas, há 3 delas que me deram mais gosto em escrever e, como estão ficando meio antigas, decidi colocar um link aqui para elas caso alguém se interesse em ler:

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