O engenheiro e a borboleta

Pode-se fugir do próprio destino? Um menino dividido entre duas paixões acaba escolhendo a certeza dos cálculos, mas, talvez inconscientemente, sua outra paixão jamais esteve longe o suficiente. Ao contrário, esteve até perto demais…

Ainda menino, ele se interessou pela concisão dos números, pela lógica das operações matemáticas, pela simetria. Ao mesmo tempo, era fascinado pelo movimento de peças articuladas, de elementos que se encaixavam e formavam um objeto maior, com funcionalidades diversas e maravilhosas.

A vida no interior facilitava a observação da natureza, o convívio com plantas e animais. Começou a criar forte interesse num tipo de inseto comum de se ver, as borboletas. Talvez por serem pequenas “máquinas” voadoras com perfeita simetria, economia de formas, pelas belas padronagens nas asas, um ciclo de vida intrigante, aqueles simples insetos ganharam lugar em sua vida.

Desde que se conhecia por gente, então, ele equilibrava seus dias entre o estudo da matemática, o desenho de engenhocas e sua pesquisa particular sobre os lepidópteros. Esta última parecia ser sua maior paixão.

Por forte influência familiar, resolveu cursar engenharia mecânica, em vez de ciências biológicas; afinal de contas, tinha grande afinidade com a engenharia, e quanto às borboletas… bem, jamais precisaria afastar-se de sua paixão por elas.

Ele cursou a universidade, formando-se com louvor, estagiando numa grande empresa que fabricava máquinas enormes. Durante o curso, leu o que podia sobre borboletas, participava de expedições para caçá-las e só viajava para cidades que tivessem borboletários.

Nunca se casou. Uma vida era muito curta para a engenharia e, especialmente, para as borboletas.

Seu espírito minucioso, detalhista, e seu amor pela simplicidade e eficiência, fizeram dele um grande engenheiro. Projetou e liderou a construção de máquinas maravilhosas. Foi pioneiro na criação de máquinas que constroem outras máquinas. O fascínio daquele ofício era o de combinar peças simples até formar artefatos complexos. Faltasse somente um daqueles elementos básicos, uma engrenagem, um pino, e a máquina não funcionaria.

Tinha hábitos eficientes, imutáveis. Era o primeiro a chegar à fábrica, mas não ficava um minuto sequer além do horário. Dentro dos galpões, onde o ritmado som metálico mantinham sua ativa mente concentrada na produção, ele só pensava em suas máquinas. Porém, ao colocar o pé na calçada, ávido pelas poucas horas de luz que ainda havia, o maravilhoso mundo entomológico tomava conta de suas sinapses, de seus sentidos. No bolso do casaco, sempre trazia uma caderneta para suas anotações sobre as queridas borboletas.

É verdade que, com o passar dos anos, seu estudo no campo dos insetos foi ficando muito mais teórico que prático, na grande cidade não tinha muita chance de vê-las, era difícil afastar-se muitos dias da fábrica (que não parava jamais), tamanha era a importância de sua presença para o bom andamento da produção.

Liderava a linha de montagem como se fosse um experimento biológico, que não podia ser exposto à contaminação. Tudo precisava estar limpo, regulado, em ordem. Ele pensou tudo para que, aos poucos, não precisasse haver mais ninguém ali, só ele e suas máquinas. Cada equipamento enchia o engenheiro de orgulho, pois eram todos fruto do seu pensamento. O mais simples e grosseiro deles, porém, era o mais importante: a gigantesca prensa, onde o metal era moldado conforme seus minuciosos cálculos. Por capricho, havia sido projetada como duas asas de borboleta, que se fecham uma sobre a outra. Seu movimento era lento até meio curso, depois se fechava rápido, aplicando uma força tremenda. Ela era toda pintada de azul.

Numa sexta-feira, no final do dia, o engenheiro apanhou seu casaco e foi andando pela fábrica. Verificou os ajustes para a produção noturna, foi até próximo da grande prensa que trabalhava com precisão. Vestiu o casaco e colocou a mão dentro do bolso, à procura de sua caderneta. Ao retirar a mão, não percebeu a queda dum parafuso, que ele havia substituído duma máquina e havia esquecido naquele bolso.

No caminho para casa, folheando a caderneta, foi recordando os desenhos e anotações sobre uma espécie da qual gostava muito, uma borboleta azul, que ele só conhecia por livros, já que não era comum na sua região e não tivera a sorte de ver em todas as suas viagens. Talvez, pensou, já fosse tempo de se aposentar das máquinas e seguir sua velha paixão integralmente.

Naquela noite, teve um sonho. Um menino corria por um campo relvado, com uma puçá nas mãos, buscava capturar uma borboleta azul que se afastava dele somente o suficiente para não desvanecer seu ímpeto. Quando a rede da puçá tocou a asa do inseto, ele despertou. Já era dia claro, e ele resolveu levantar e ver como estava a produção.

Ao se encaminhar para a fábrica, porém, o engenheiro pensava no sonho que havia tido. Seu possível significado ainda o intrigava, e ele não notou, atrás de si, uma nuvem de borboletas que se aproximava, um panapaná.

O som das minúsculas asas em movimento trouxe o engenheiro de volta à realidade quando a nuvem já passava por ele. Uma multidão de borboletas alaranjadas, no meio delas, o engenheiro viu uma única azul.

Ele se apressou, acompanhando com dificuldade o dinâmico movimento dos insetos, mas percebeu quando a borboleta azul entrou por um dos janelões da fábrica.

Ainda mais apressado, ele entrou no lugar sem sequer se dar conta do firme som do maquinário, cíclico como um relógio. Ao fundo, tal como um bumbo, a grande prensa marcava a cadência. Ele só via a borboleta que se arriscava entre engrenagens, hastes, compensadores, e voava em direção à prensa.

Correu, na tentativa de que seu pesado corpo alcançasse o outro, levíssimo, que voava. A borboleta pousou sobre a prensa, que iniciava seu processo de fechamento. O engenheiro resfolegava na tentativa de alcançar não mais a borboleta, mas o botão de emergência, para parar as máquinas. A prensa fechava lentamente, a borboleta imóvel, como se aguardasse por ele. A poucos passos, já quase tocando o botão, o engenheiro escorregou, ao pisar o parafuso, que não devia estar ali.

Durante a queda, a mão do engenheiro se afastou do botão, enquanto seu corpo foi atraído para a borboleta, como sua alma havia sido atraída a vida toda. Quando ele caiu sobre a prensa, a borboleta voou.

Pouco antes do impacto das grandes asas metálicas, os olhos ainda seguindo o voo do pequeno inseto, ele atentou de repente ao som da produção que fechava mais um ciclo, a borboleta saia pelo janelão, ele ainda pensou: o sonho agora faz todo o sentido.

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Tempo e decisão

Há uma famosa canção entre os franceses que diz que os jovens costumam pensar que os mais velhos são bobos, não sabem das coisas, enquanto que os mais velhos, com frequência, fazem o mesmo julgamento dos jovens. Sabiamente, o compositor conclui que a idade não tem relação com o grau de tolice do sujeito, “quand on est con, on est con”!

A canção me veio à mente após conhecer um jovem que me trouxe lembranças daquele que fui. Ao contrário da canção, ele me olhava com alguma esperança de aprender algo de útil; já eu olhava para ele como para alguém que não tem nada a temer, nada a perder, todos os caminhos ainda abertos, as peças no tabuleiro ainda praticamente nas casas iniciais.

– Queria saber o que eu sei hoje, mas voltar a ter a tua idade! – Brinquei.

Ele apenas riu, certamente não tinha pressa alguma em alcançar a contagem dos anos que já tenho. Não tinha nada de bobo, aquele jovem!

Mesmo tendo tomado as melhores decisões, com as informações que tinham em cada momento, é comum que apareça essa ideia fantasiosa para muitas pessoas: voltar no tempo, mantendo a vantagem da experiência. Como o enxadrista que, no meio da partida, tendo feito somente as jogadas que quis, fantasia em retroceder alguns lances, pois agora sabe o que antes foi incapaz de prever. É o eterno problema do que se vê e do que não se vê na tomada de decisões.

O rapaz que sonhava com a melhor universidade, somente para depois de anos de esforço, alcançar o objetivo inicial e agora, já homem feito, perceber que aquele não era seu caminho. Ou aquele outro que, envolvido no turbilhão de planos e preocupações com o futuro, não percebe a aproximação duma jovem que poderia ter sido sua cara metade. A moça que não conseguiu se libertar das pressões paternas, abdicou duma formação superior no exterior e agora lamenta não ter sido mais corajosa. Talvez as coisas nem tenham sido assim, nossa memória é falha. Também o tempo tende a tornar importante coisas e fatos que, então, não tiveram tanta relevância. No fundo, em retrospecto, quase todas as decisões poderiam ser melhoradas.

Fica mais fácil de entender a ideia do “eterno retorno”, segundo a qual cada ato se repete indefinidamente, e cada decisão tem o peso da eternidade. Não nos é dado retornar guardando o tesouro da sabedoria adquirida, mas, segundo o “eterno retorno”, é como se pudéssemos voltar infinitas vezes ao ponto que desejarmos, sem lembrar de nada, somente para, racionalmente, tomar de novo a mesma decisão.

O tempo é como o peão no xadrez, ele só avança. Além do mais, na juventude, temos muitos peões, muito tempo, podemos nos dar ao luxo de sacrificar alguns. Chega um momento da vida em que olhamos os peões avançados, os contamos, percebemos que a abundância inicial já se foi, e isso nos traz a nostalgia do que poderia ter sido.

Mas não há somente desvantagens. Os peões avançados estão mais próximos da borda do tabuleiro, já vislumbram uma promoção! Já não se vê tão pouco a frente, e o que não se vê torna-se mais escasso. A cada novo dia, fica mais fácil tomar uma decisão para a qual teremos prazer em retornar infinitas vezes, sem lamento nenhum.

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O mestre e o escritor

Imagem: Jonathan Wolstenholme
Sentados frente a frente, dois homens esperam a condução. Parecem perdidos em seus pensamentos, quase imóveis, cada um com um livro na mão. Alguém distraído poderia pensar que são muito parecidos estes homens. Estatura mediana, cabelos esbranquiçados nas têmporas, mãos sem sinais de trabalho braçal. São homens de ideias, seria lícito dizer.

Estavam assim há tempo considerável, não se notaram, já que apenas os corpos partilhavam de proximidade, os pensamentos, ou as almas, se preferem, estavam longe, imersas nos conteúdos das páginas que miravam sem esforço.

Quase ao mesmo tempo, a posição cansou aos dois, foi preciso ajustar a postura, mudar um pouco a direção da cabeça. Instintivamente os olhos buscaram o livro um do outro, objeto comum de fascínio, e perceberam quão diferentes eram seus assuntos.

Foi o da esquerda quebrou o silêncio.

– Por muito tempo fui enamorado deste jogo, mas a pouca reciprocidade me afastou. Prazer, sou Baltazar.

– Como vai? Sou Estevão. Ah sim, o livro! Sempre o trago comigo, é para não perder o hábito de analisar posições de xadrez. Sou jogador, preciso estar sempre em forma.

– É um jogo demandante, bem lembro! Há tempos, porém, que enveredei pelo caminho das letras, outra paixão, tornei-me escritor. Mas, muitas vezes, percebo grande semelhança em nossos ofícios.

– Semelhança, como poderia ser? Há jogadores que escrevem livros sobre o jogo, mas… entre escrever e jogar uma partida de torneio… vejo tão pouco em comum. Escrever é um ato solitário, individual, no xadrez cada partida é composta a dois. Mesmo quando só um jogador é exaltado, como na famosa partida Imortal, é preciso haver um adversário.

– Meu caro, é aí mesmo que reside grande semelhança, cada partida é uma trama, uma história. Cada um vê a si próprio como o herói. Mas toda história precisa de um vilão, no xadrez o vilão é sempre o adversário!

– Bem, confesso que não havia pensado nisso. Mas ainda afirmo serem tão díspares nossas profissões. O enxadrista planeja suas jogadas tentando prever a ação do adversário, nada é determinístico, nada está numa mente só.

– Ah, quantas vezes são iniciadas obras sem que o autor saiba aonde suas palavras o levarão! No tempo de composição de um livro, de um conto, quantas influências um escritor pode ter: amigos, filhos, vizinhos… Como se vê, não há nada determinístico.

– Vejo que és astuto, Baltazar, mas não me convence. O enxadrista usa peças, são somente seis tipos, o tabuleiro contém um número fixo de casas. São muitas as partidas que se pode jogar. No vernáculo, porém, há tantos milhares de palavras, e não há limite ao papel que se deseje preencher com elas.

– Amigo, se me permite, as histórias são fruto da vivência dos seres humanos, e assim como há seis peças, os sábios falam que são seis as aflições humanas, são sete os pecados capitais e dez os mandamentos… Percebe? Poucos os elementos básicos povoam todas as histórias contadas, assim como são poucos os tipos de peças que compõem as mais belas combinações do xadrez.

– Já que falaste em combinações, aí está a maior diferença, pois, com frequência, sacrificamos peças pelo objetivo final, o xeque-mate. Como pode ter algo a ver com a literatura?

– Acontece o mesmo com as personagens, são como as peças, cada uma tem sua função na trama. Tantas vezes, é preciso matar o mocinho, separar um casal, levar um filho amado, tudo pelo desfecho ideal.

O enxadrista sentiu-se sem lance, tamanha a coerência do escritor, pois parecia haver um contexto, não somente semelhanças pontuais. Lembrou-se dum antigo diálogo citado num livro de xadrez, no qual um maestro de orquestra perguntava ao grande mestre de xadrez qual era sua profissão, e o jogador retrucava perguntando “e a sua, qual é?”.

– Estou convencido, Baltazar. Estou encurralado como um rei no canto do tabuleiro. Somos artistas em áreas que guardam notáveis semelhanças. E pensei, agora, em mais uma: a palavra escrita é como o peão que avança, não tem retorno!

Apertaram as mãos e, num impulso amistoso, trocaram seus livros, onde anotaram um endereço de contato, para uma partida amistosa ou um café.

O escritor partiu pensando que aquele diálogo merecia um conto. Já o enxadrista, jamais se livrou daquelas analogias e, ainda hoje, sempre que move um peão para abrir o jogo, baixinho diz para si “Era uma vez…”.

Reconhecimento Paterno no Xadrez

Antigamente, sem internet, os amadores de xadrez se viravam com o que tinham. Até uma palestra baseada em falsos cognatos pode ter muito a ensinar sobre o jogo dos reis!

Muito tempo antes da abundância de informação que a internet trouxe, os enxadristas amadores viviam uma vida mista de pesquisadores, arqueólogos e improvisadores buscando conhecer um pouco das ideias dos mestres, uma xerox de livro raro, uma revista com as partidas mais recentes. O conhecimento de outras línguas era ainda mais limitado, e só restava confiar nas traduções em espanhol de obras famosas. Livros em inglês até apareciam, mas não se podia arriscar entender errado alguma frase dos mestres.

Algumas vezes, aparecia oportunidade para assistirem a palestras de jogadores mais fortes. Em tais palestras, não raro, saiam sabendo menos do que quando entraram. Uma vez, por exemplo, chegou na cidade um jogador de fora, pródigo em contar suas histórias e forte enxadrista. Venceu um torneio aberto e, de pronto, se tornou admirado pelos locais.

– O senhor por acaso sabe inglês? – perguntou um dos jogadores que estava ouvindo as histórias do forasteiro.

– Sim, claro, qual bom jogador não sabe!? – blefou.

O rosto do homem se iluminou e ele estendeu ao forasteiro um maço de papel com a xerox dum artigo de xadrez em inglês intitulado “Pattern Recognition in Chess”. Um texto longo recheado de diagramas com posições variadas de partidas famosas. O homem gelou.

– O senhor por acaso não aceitaria nos fazer uma palestra com o conteúdo deste artigo? Obviamente que será pago pelo serviço.

A alusão ao pagamento interessou mais ao jogador que os diagramas do artigo, e ele se comprometeu a ficar mais uns dias na cidade, ao final dos quais faria uma apresentação sobre o material que tinha nas mãos.

Foi arranjada hospedagem e alimentação para o novo mestre, que se dedicou a entender o que havia naquele texto.

O parco inglês do forasteiro, fortemente baseado na semelhança de palavas com o português e apoiado num resumido vocabulário, lhe permitiu criar uma interpretação do artigo. Muito ajudou conhecer o nome dos jogadores que ali apareciam Tchingorin, Capablanca, Bronstein, Fischer e Kasparov. Sobre a vida deles ele conhecia bastante coisa!

No dia marcado, um sábado, no auditório duma escola municipal (um dos aficionados enxadristas da cidade era o diretor da escola) arranjou-se um tabuleiro de demonstração ao redor do qual foram arrumadas carteiras escolares, com o providencial apoio para anotações dos interessados jogadores. A fim de pagar pelo serviço, a cada um foi cobrado um valor de R$ 10,00.

O palestrante chegou no horário, tomou um gole de água, encarou a audiência e começou explicando que o artigo falava da interessante e importante questão do ‘Reconhecimento Paterno no Xadrez’.

Os presentes se surpreenderam, será que era mesmo um tema relevante para aumentar a qualidade do jogo deles?

‘Vários jogadores ao longo da história sofreram justamente com a falta do reconhecimento paterno, ou com um reconhecimento deficiente. Vejam o caso de Mikhail Tchingorin…’. Foi falando enquanto montava no mural a posição do primeiro diagrama do artigo. ‘Como sabem, Tchingorin perdeu os pais muito jovem e foi criado num orfanato na  Rússia no final do século XIX. Apesar disso, foi capaz de ser um dos melhores do mundo em sua época, inclusive foi desafiante duas vezes de Steinitz pelo título mundial. Na posição aqui do diagrama, infelizmente, se vê a falta que lhe fez um pai. No momento crucial, teve insegurança e se permitiu levar mate quando vencia, ao retirar a única peça que defendia seu rei.’.

Os presentes anotaram tudo e analisaram um pouco quais seriam as opções de Tchingorin para vencer aquela partida.

‘Vejam agora o exemplo de José Raúl Capablanca, campeão mundial cubano, aprendeu xadrez olhando o pai jogar e recebeu deste todo o apoio. Com pouco mais de dez anos de idade não havia em toda a ilha de Cuba nenhum adversário capaz de vencê-lo.’ Uma posição de Capablanca foi montada no tabuleiro, uma na qual se vencia com uma elegante dança de cavalos, muito instrutiva para os presentes.

‘Outro caso de carência de reconhecimento paterno pode ser visto na história de David Bronstein, um dos gênios do xadrez soviético. Bronstein não era bem visto pelo regime socialista da URSS, seu pai foi considerado um “inimigo do povo” e ficou preso por vários anos. Isso foi crucial na disputa com Botvinnik em 1951, quando ele liderava mas deixou a emoção pela situação de seu pai (uma vitória poderia significar complicar sua vida novamente) dominar sua mente e ele perdeu uma partida que poderia facilmente ter empatado.’ Foi montada novamente uma posição no mural. Nela Bronstein perdeu um final de par de cavalos contra par de bispos.

‘Caso curioso o de Bobby Fischer. Ele nunca soube quem era seu pai, teve péssimo relacionamento com sua mãe, mas mesmo assim alcançou o topo no xadrez em 1972. Foi campeão mundial dando fim à hegemonia soviética que durava mais de vinte anos. Apesar de, aparentemente, não ter feito falta para seu jogo de xadrez, a ausência de reconhecimento paterno foi danosa em outros campos de sua vida. Ele não defendeu seu título frente a Karpov em 1975. Aos 29 anos de idade, largou o jogo e até hoje não se sabe direito por onde ele anda. Dizem que perdeu o juízo!’. E passaram a analisar posições de partidas do grande campeão norte americano.

‘Finalmente, temos a história do grande Garry Kasparov. Como sabem, Kasparov perdeu seu pai quando tinha somente 7 anos de idade, mas ele teve em sua mãe um grande escudo, ela devotou toda energia ao menino e ao xadrez dele! O resultado, já sabemos, ele é o campeão mundial e certamente um dos melhores jogadores da história do nosso jogo. Não teve reconhecimento paterno, mas o reconhecimento materno foi abundante!’. A palestra foi concluída com diversas posições famosas de partidas de Kasparov.

Ao final, houve aplausos, animadas conversas, o palestrante foi convidado almoçar na casa do diretor da escola antes de pegar o ônibus na rodoviária. Durante o almoço, o filho do diretor, o melhor estudante da cidade, timidamente perguntou ao novo ídolo de seu pai:

– Mestre, o título do artigo não seria ‘Reconhecimento de Padrões no Xadrez’?

O forasteiro teve cuidado para não engasgar com a farofa e tomou um gole de suco antes de responder.

– Jovem, é preciso sempre ter cuidado com essas línguas estrangeiras, elas são muito traiçoeiras, principalmente os falsos cognatos!

Para a tristeza dos enxadristas da cidade, aquele grande palestrante nunca mais deu as caras por ali.

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Uma versão deste texto apareceu no blog originalmente em 28/01/2017

A menina e o Ogro

Ilustração de Omar Rayyan
Naquela noite ela mal dormiu, ansiosa com o importante acontecimento do dia seguinte: pela primeira vez enfrentaria o campeão mundial num torneio!

Crescera numa casa repleta de peças, tabuleiros e livros de xadrez, todos em casa jogavam, e ela era a caçula da família. Suas irmãs também aprenderam desde novinhas, e ela não se lembra exatamente em que momento aquilo se tornou sério para ela; quando se percebeu como gente já estava derrotando garotos e garotas bem mais velhos que não escondiam o espanto com as jogadas afiadas na menina.

Apesar de ser a menor em casa, logo ultrapassou as irmãs, não somente pelo talento, mas pelo aperfeiçoamento do método desenvolvido pelo seu pai, que desejava demonstrar que um gênio pode ser criado, sem depender de dádivas inatas.

Ela se acostumou a ser a única menina no meio de homens de todas as idades, desde juvenis a veteranos. Com o tempo, eles passaram a olhar para ela não como uma mulher, uma menina, mas simplesmente um jogador como eles, só que terrivelmente forte. Tinha somente quinze anos de idade quando conquistou o título de Grande Mestre Internacional. Agora, aos dezessete anos, perseguia a meta que o pai incutira em sua mente: alcançar o degrau mais alto, ser campeã mundial geral, entre homens e mulheres!

Tudo aquilo passou como um raio em sua mente no momento em que cumprimentou o campeão no início da partida.

Ele era o mais temido profissional do jogo, toda a energia de seu corpo era concentrada para o melhor desempenho de suas peças sobre o tabuleiro. Muitas vezes, a mera presença dele perto de si era suficiente para desestabilizar os melhores jogadores. Uma de suas armas, além dos fortes lances, era o olhar que lançava sobre os adversários em momentos específicos do jogo, como a degustar o efeito de suas jogadas sobre a mente deles. Também era dado a caretas, razão pela qual, entre os jogadores, ele ser conhecido como ‘O Ogro’.

Ela conhecia bem o campeão, na verdade ela era sua fã, estudara todos os seus jogos, sabia de suas idiossincrasias no tabuleiro e fora dele, por isso os olhares e caretas não a perturbavam. Ela estava preocupada apenas em compreender e refutar as jogadas que ele fazia. Tinha as peças brancas e iniciou a partida avançado seu peão do rei duas casas, sua abertura favorita.

O campeão também empregou sua defesa preferida, e a partida seguiu equilibrada. Após pouco mais de vinte jogadas, a menina sentia a dificuldade de enfrentar o campeão do mundo, não somente pelos olhares e caretas, mas por suas ideias que eram mais profundas que as ideias dos outros grandes mestres, a vantagem de jogar com as brancas havia sido dissipada e agora o adversário é que tinha vantagem.

No trigésimo sexto lance, ambos já com poucos minutos de tempo no relógio, o campeão pega seu cavalo, desloca-o em direção à quarta casa do bispo da dama, e a menina gela: aquilo seria um erro! Ele pousa o cavalo sobre a casa escolhida, segurando as laterais da peça com o indicador e o polegar direitos, libera a pressão dos dedos lentamente até que o cavalo fica livre sobre o tabuleiro, então, subitamente, ele volta a pressionar a peça entre os dedos, retorna-a para a casa de origem e volta a pensar!

“O que ele está fazendo? A peça foi solta no tabuleiro, não foi?”. A menina olha a seu redor, o árbitro não estava próximo da mesa, não havia mais ninguém atento à partida naquele exato instante. Sequer sua mãe ou sua irmã, que estavam na plateia, pareciam ter notado nada de anormal. O que fazer? Ela teria mesmo visto aquilo? Se reclamasse ao árbitro sem provas, ela seria penalizada e poderia perder a partida.

Nesse meio tempo, o campeão voltou a tocar no mesmo cavalo e moveu a peça para a primeira casa do bispo do rei, como se não houvesse nada fora do ordinário nesta ação.

Além da difícil situação no tabuleiro e do tempo se esgotando no relógio, a segurança do campeão aumentou a confusão mental da menina, e ela simplesmente fez sua jogada, anulando qualquer chance de protestar pela falta do adversário.

A partida continuou por mais dez lances, até que a menina abandonou, sem esperanças de salvar seu rei do mate.

Houve um frio e constrangido cumprimento de mãos, e a menina foi se afastando da mesa de jogo. Alguns passos depois, uma ideia tardia lhe trouxe a certeza que faltara na hora decisiva: após a trigésima sexta jogada, o campeão não voltou a encarar a menina sequer uma vez…

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