Novo livro: O jogador que desejava perder


Após a primeira experiência de publicação de um livro, com “Que Peça eu quero ser?”, passei a me dedicar aos textos aqui para o blog, além daqueles que publico no excelente blog Reino de Caíssa.

Já faz algum tempo que passei escrever contos e crônicas com o intuito de mostrar o enxadrista prático que xadrez também rende literatura e, por outro lado, apresentar o universo do xadrez ao leitor de contos e crônicas. Acredito que a estratégia tem rendido frutos, verificados via compartilhamentos espontâneos de meus textos em redes sociais ou em convites para colaborar em outros meios, como no ‘Reino de Caíssa’. Isso tem sido por demais gratificante: é o que me motiva a continuar.

Há alguns meses, enquanto trabalhava num outro projeto enxadrístico-literário (do qual falarei daqui a algum tempo) percebi que tinha material suficiente para um pequeno livro de contos! Tamanho ideal para tentar meu primeiro passo na publicação independente online.

O jogador que desejava perder traz doze contos que exploram temas ligados ao jogo de xadrez: a natureza oculta das peças, as angústias das disputas sobre o tabuleiro, as semelhanças entre o xadrez e a vida etc. No final, não são histórias de enxadristas quem movem peças, mas de seres humanos que se mostram em toda sua essência enquanto jogam ou pensam sobre xadrez. Alguns textos foram publicados originalmente nos blogs citados acima, porém todos revisados e, em alguns casos, renovados. Além desses, há outros que foram escritos especialmente para esta ocasião.

Gostaria de agradecer aos leitores, enxadristas ou não, pois o objetivo de todo escritor é ser lido, esse é o maior prêmio. Agradeço minha família, principalmente pela paciência quando estou recolhido escrevendo ou pensando no que escrever, além do retorno que recebo deles, sempre os primeiros a ler ou escutar as histórias ainda recém-saídas dos meandros da imaginação.

Em especial, deixo meu agradecimento ao amigo e premiado escritor Lucêmio Lopes da Anunciação, um dos primeiros que me fez perceber que um engenheiro também pode ser um bom contador de histórias, pela gentileza em ler o original e preparar um belíssimo prefácio, agregando inestimável valor ao livro.

Agradeço aos que tiverem curiosidade de conhecer o livro: comentem suas impressões no próprio site da Amazon, adicionem na lista de desejos, compartilhem com os amigos. Quanto mais histórias baseadas em nosso jogo estiverem difundidas entre o público em geral, mais o xadrez ganhará seu merecido espaço em nossa sociedade.

Xadrez x Futebol em tempos de Copa do Mundo na Rússia!


Nos grupos de discussão sobre xadrez é tolerado que apenas um assunto se intrometa algumas vezes: o futebol! Ainda mais agora, durante a Copa do Mundo da Rússia, a terra do xadrez!

Assim, não é de se estranhar que, em meio a comentários de torneios, problemas de mate em três e outros assuntos típicos do meio enxadrístico, apareçam provocações futebolísticas (ainda que rapidamente censuradas pelo administrador do grupo, que levanta um cartão amarelo).

Num dos grupos, apareceu um jogador que também é árbitro tanto de xadrez como de futebol! Foi o suficiente para aparecer uma pergunta sobre a eterna polêmica entre “mão na bola” × “bola na mão”. Ao ler a excelente explicação do colega, pensei numa analogia com o xadrez:  “mão na bola” é “peça tocada, peça jogada”, mas “bola na mão” é “j’adoube“!


Haveria mais alguma analogia? Fiquei pensando depois (certamente eu não fui o primeiro). Se o xadrez é a vida em miniatura e o futebol é uma caixinha de surpresas, poderia encontrar mais coisas em comum.

Os esquemas táticos podem ser comparados às aberturas: o 1-2-7 é o Gambito do Rei, o 4-4-2 é a Ruy Lopez, o “Carrossel Holandês” é o Ataque Fegatello, o 4-5-1 é o Sistema London; e por aí vai.

Há também clara analogia entre as peças no tabuleiro e as posições dos jogadores em campo: os peões são a zaga, os cavalos são os volantes, as torres os laterais, os bispos jogam no meio-campo e a dama é a artilheira. O rei, claro, fica no gol! Até o enxadrista tem lugar na analogia: ele é o técnico da equipe (mas, graças a Deus, é bem menos xingado).

Se tem uma coisa que não deu para comparar entre xadrez e futebol foi a torcida. Neste quesito são diametralmente opostos: ao redor do gramado estão numerosos e barulhentos torcedores; ao redor do tabuleiro, quando muito, se reúnem alguns silenciosos perus (mães, namoradas, namorados e afins não costumam aparecer).

Mas quando o assunto é quem foi melhor do que quem, aí fica tudo parecido de novo! Esses dias, num outro grupo, voltou a eterna polêmica: quem foi melhor, Fischer ou Kasparov (ou outro)? Apaixonadas razões foram levantadas por fãs incansáveis de um e de outro, fatos citados, especulações lançadas, números debulhados! A polêmica nunca termina. Aí eu lembrei do futebol de novo: Fischer é Pelé, Kasparov é Maradona!

Pra quê fui falar…?

Alguns protestaram, pediram para trocar os pares da comparação, outros falaram de Neymar, Zico, Di Stéfano, Puskas, Leônidas e até Biro Biro! La Bourdonnais foi comparado a Garrincha, o injustiçado, num dos poucos momentos de concordância.

Alguém perguntou, malicioso: “Se Kasparov é Maradona, qual foi o gol de mão?”. Lembrei, então, do episódio contra Judit Polgar, quando ele soltou a peça e depois voltou seu lance; mas fez tudo isso com sua própria mão, jamais alegou ser a de Deus!

Assim, do nada, percebi que se quiser, posso passar horas falando de semelhanças entre os jogos: perder um pênalti é como não ver um mate em um, o impedimento é semelhante a quando uma peça está cravada, a grande área é a ala do rei, os peões protegendo o rei no roque são a barreira das faltas etc.

São tantas semelhanças que talvez até fosse pertinente, numa licença poética, alterar a célebre frase do Dr. Tarrasch (poderia também ter sido do Dr. Sócrates): o xadrez, como o amor, como a música, (como o futebol) tem o poder de fazer os homens felizes!

Compartilhe: bit.ly/XadrezFutebol


(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa

Quando a partida termina (*)

Foto de Maarten van den Heuvel obtida em Unsplash.com

“Não sabem que a mão assinalada
do jogador governa seu destino,
não sabem que um rigor adamantino
sujeita seu arbítrio e sua jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(a máxima é de Omar) de um tabuleiro
de negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que deus detrás de Deus o ardil começa
de pó e tempo e sonho e agonias?”

(Jorge Luis Borges, Xadrez)
No fim da partida, enquanto apertam as mãos, os jogadores ainda discutem algumas variantes que não aconteceram sobre o tabuleiro, prometem um novo confronto em breve e terminam por se despedir. O dono das peças cuidadosamente as coloca na caixa, após a obrigatória contagem. Havia sido uma partida longa, as peças tinham feito inúmeros movimentos e manobras, o descanso era mais que merecido.
– Achava que o xeque-mate não ia chegar nunca. O meu jogador poderia ter vencido cinco jogadas antes, mas não viu. Depois da segunda hora de partida ele não estava enxergando mais nada!
– Ganha e ainda reclama… Pensa que é fácil permanecer de pé, parado, sabendo que o fim é inevitável? Ah, não é! Eu não via a hora de acabar logo aquele sofrimento e voltar aqui para relaxar.
– Sei como é, semana passada aconteceu comigo. Não pense que não vi que você estava segurando o riso, porque meu jogador deixou a oitava fila descoberta.
– Por favor, abram espaço para o artilheiro da noite.
– Ah, eu sabia, lá vem você se gabar do xeque-mate. Tudo bem, aproveite seu momento, sua vitória, afinal é tão difícil ver um jogador te usar para arrematar uma partida!
– Pode até ser raro, mas é lindo! Quem mais pode dar o mate afogado, quem!? O cavaleiro, claro!


– Lá vem você de novo com essa história de cavaleiro, eu só vejo um cavalo.
– Não tenho culpa se as pessoas têm preguiça de esculpir a peça inteira, fazem a montaria mas esquecem que sobre o garanhão está um Sir!
Os companheiros de lida começaram a rir, no meio da aparente bagunça da caixa, não havia ali um exército fortemente hierarquizado, tampouco bandos opostos, mas amigos de longa data que comentavam suas batalhas com entusiasmo e bom humor.
– Não reclama de barriga cheia, ô pangaré, pior sou eu, um arqueiro nato, ter que usar essa roupa de sacerdote. Bom mesmo era nos tempos dos elefantes, quando eu ficava sobre eles mandando flechas para todo lado.
– Flechas? São muito fraquinhas, só arranham. Os jogadores preferem minhas catapultas, lançadas do alto, com longo alcance nas quatro direções.
Não se pode criticá-los, são combatentes antigos, cheios de intimidade. Que graça teria se não pudessem sequer brincar uns com os outros, ainda que por um momento parecesse rixa de crianças. Sabiam que um não existiria sem o outro, se qualquer um deles se perdesse, nunca mais poderiam batalhar juntos.
A elegante senhora logo tomou a palavra para acalmar os rapazes que ainda discutiam qual munição era mais eficiente.
– Vocês são tão bobos, não veem que eu, que lanço flechas e catapulto bombas não posso abrir mão de nenhuma delas? O importante é cada um fazer sua parte no momento certo, nem uma jogada antes, nem uma jogada depois.
A multidão de soldados logo aplaudiu aquela que para eles era um ídolo, por seu enorme poder e velocidade. Durante as partidas, alguns chegavam a poder jogar como ela, ou ainda como outros companheiros, a depender da opção do jogador. Um deles estava um pouco contrariado.
– Hoje meu jogador me promoveu a cavaleiro, ainda não entendi, poderia ter ficado com duas senhoras, mas não quis.
– Calma amiguinho, disse um dos cavaleiros, veja que vantagem que vocês têm! Ainda não percebeu? Todos nós somos condenados a fazer sempre as mesmas coisas nas partidas, secretamente todos invejamos vocês, que podem assumir diferentes papeis, e a cada embate sentem o gostinho de ter outros poderes e viver outras emoções.
– Isso é verdade, a gente precisa se esforçar muito, mas quando conseguimos chegar ao final do tabuleiro, o direito à promoção compensa os riscos e a longa caminhada.
Um arqueiro estava pensativo depois de ouvir a singular situação do soldado, e perguntou com uma ponta de mágoa:
– Não sei porque quase nenhum de vocês é promovido a arqueiro. Seria tão fantástico ver dez de nós lutando juntos!
– Desculpe, não nos cabe responder a essa questão, mas aos jogadores!
Os demais riram. Ninguém fazia ideia se a reclamação do arqueiro era justa, mas a resposta do soldado foi engraçada de qualquer jeito.
Chegou o sono que levou cada uma das peças dentro da caixa a seu próprio tabuleiro onírico. Alguns sonhavam com os antepassados, elefantes, barcos, carruagens, vizires. Outros sonhavam com batalhas recentes. Uma delas sonhou ser um jogador, mas foi um sonho inquieto, pois por mais que procurasse, jamais encontrava uma peça que faltava para completar o tabuleiro e iniciar a partida…
Uma grande claridade encerrou o sonho.
Antes que notassem, já estavam novamente perfiladas para batalha. Em cada lado do tabuleiro, os jogadores estavam em grave concentração. A peça que há pouco sonhava ser um jogador olhou longamente para eles e compreendeu: assim como elas, os jogadores eram indispensáveis às partidas, apesar de não compartilharem da mesma caixa, eles não existiam senão pelo jogo; de certa forma, eram peças também.
Só lhe restava uma dúvida: “O que faziam depois que a partida termina?”
(*) O autor publicou uma primeira versão deste texto no Blog Reino de Caíssa.

O peão e o guardião (*)

Muito antes da invenção das palavras escritas, ou mesmo das primeiras letras, a raça humana vivia sob encanto da imagem ancestral de um jogo, ou Jogo, indefinido e infinito, que ao longo dos séculos tem servido de inspiração latente para outros tantos jogos e demais atividades humanas.
Conta-se que, numa época indeterminada, o Jogo se manifestou a um sábio do oriente sob a forma de figuras que se moviam sobre uma superfície dividida por linhas, à maneira de tropas que andam sobre campos minados. Tal jogo, então, ganhou o mundo e recebeu diversos nomes: chaturanga, shatranj, xatrange, xadrez.
Com a disseminação do xadrez, acirrou-se uma discussão entre alguns iniciados em ciências místicas e artes mágicas que se consideravam guardiões do Jogo. Diziam que era sempre necessário verificar se havia suficientes elementos mágicos para, somente então, afirmar que se tratava realmente de uma manifestação do Jogo. Muitos sustentavam que as figuras do xadrez eram por demais simples e diretas, que eram mero espelhamento de exércitos em batalha, coisa muito vulgar em toda a história das civilizações humanas.
Certa feita, havia um sábio que visitava os guardiões, vindo de uma distante região entre dois rios. Ele era considerado o maior dos conhecedores das coisas simples e complexas sobre o jogo de xadrez. Ciente de que sua presença ali, justamente quando se acalorava aquela nobre discussão, não era mais que um sinal do destino. Pediu a palavra e começou a falar em tom humilde, porém firme:
“Eminentes guardiões dos mistérios do Jogo, que conhecemos apenas como desfocada imagem de espelho, mas cuja grandeza nos permite viver e sonhar. Que estejamos sempre atentos para perceber as manifestações do Jogo!”
Em uníssono, os demais responderam com entusiasmo e respeito: “O Jogo se manifesta aos atentos!”
“Venho aqui defender uma das mais importantes manifestações do Jogo e assim ajudar a desfazer qualquer dúvida ou confusão que não nos permita reconhecer esse fato. Vejam, sábios guardiões, são seis as figuras do xadrez, assim como são seis as aflições humanas fundamentais; são quatro os cantos do tabuleiro, o mesmo número dos elementos básicos da matéria; são duas as forças que se opõem, a exemplo da luz e das trevas que lutam dia a dia no ocaso e na aurora. Tão simples é esse jogo, em aparência, porém quanta complexidade ele guarda: no princípio, há somente vinte movimentos possíveis, mas basta fazer cinco jogadas e já as posições possíveis saltam aos milhões!
Em verdade, a quantidade total de partidas distintas de xadrez é um número sem par até nas estrelas do firmamento!”
Muitos dos presentes arregalaram os olhos com as informações e com a paixão contida nas palavras do sábio. A questão, porém, ainda estava em aberto. Havia alguns eminentes guardiões anciãos que ainda não estavam convencidos. O decano pediu silêncio com sua frágil voz calejada pelos anos, e os demais calaram imediatamente, como acometidos por uma mudez instantânea.
“Eminente visitante, são belos e verdadeiros teus argumentos, e há aqui poucos dentre nós que já não tenham passado dias e noites em claro, em alucinações de lances e combinações com as figuras do xadrez. Existe, porém um ponto a esclarecer. O Jogo tem sido, desde a criação do mundo, uma fonte de magia e inspiração. Mostra-nos, no teu amado xadrez, onde podemos enxergar esse sinal indistinto de uma manifestação do Jogo.”
Os rostos voltaram-se novamente para o sábio da terra distante, que em sua mão direita segurava uma figura. Quem estava mais longe dele não percebeu qual das seis era aquela, mas a informação foi passada em sussurros até os mais afastados: era um peão, a figura mais simples.
“Eis aqui o sinal.” Disse, erguendo o peão acima da cabeça. “Este simples peão, um andarilho lento, desprovido de armas poderosas, que não tem direito ao arrependimento nem à correção de um passo em falso, traz em si o mágico poder de se transformar quando chega ao final do tabuleiro. Em meus estudos, não pude precisar de quanto tempo remonta este lance mágico, mas os pergaminhos mais antigos já falam desta propriedade. É necessário que o peão dê seis passos, como para vencer cada uma das seis aflições fundamentais, até libertar-se do jugo da incapacidade. Ganha um poder tão grande que pode trazer de volta à batalha quem já foi eliminado ou duplicar uma figura de maior força que ainda esteja no tabuleiro. Tal característica tem sido exemplo para os mais simples, ao longo dos séculos, de que é possível vencer as dificuldades e conquistar a posição que se deseja com perseverança e esforço.”
O decano levantou-se e foi até o sábio. Tomou de suas mãos o peão e observou a peça por alguns instantes. Pediu para ver as demais figuras, talvez tentando ver dentro de cada uma delas o peão que um dia elas foram. Lembrou-se que somente o rei não poderia vir do peão, assim como o Jogo, que não vinha de nada antes dele. Para o ancião, foi a última razão de que necessitava.
“Vieste de longe, andaste bem mais que os seis passos do peão, mas hoje apresentaste-te como um dos maiores guardiões do Jogo. A partir de hoje, serás considerado um de nós, um guardião, e jamais voltará a pairar qualquer dúvida de que o xadrez é uma inequívoca manifestação do Jogo.
O restante daquele dia foi dedicado a incontáveis partidas de xadrez entre os guardiões e o visitante, todos queriam aproveitar a presença do sábio para descobrir alguns novos segredos e gambitos.
O nome do sábio que defendeu tão bem o xadrez perdeu-se no pó dos dias, e hoje a existência do Jogo é ignorada quase que completamente. Ainda há, porém, histórias que correm sobre os guardiões, que são poucos e dispersos. Falam que uma das poucas formas de reconhecê-los é durante uma partida de xadrez, pois quando levam seus peões até o final do tabuleiro, antes de fazer a promoção, dizem baixinho: “O Jogo se manifesta aos atentos.”
Compartilhe: bit.ly/PeaoGuardiao
(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa

Peões Metafóricos (*)


Era final de tarde, a luz do dia decantava-se pouco a pouco no horizonte; também para o sol, a jornada de trabalho chegava ao fim. Dirigi-me até um café, onde por muitos anos cultivo o hábito de observar os últimos momentos de claridade ouvindo conversas distantes ou perdido em pensamentos, acompanhado somente de uma pequena xícara de café expresso, sem açúcar.


Um coro de vozes exaltadas ao fundo chamou-me a atenção. Guiados pelo som, meus olhos correram até uma mesa de canto onde havia mais garotos que cadeiras. “São estudantes”, pensei entre um gole e outro.


– Eu garanto que é assim: o peão que chega ao final do tabuleiro só pode ser trocado por uma rainha.

– Que rainha!? É dama, vê se aprende!

Os risos e brincadeiras por um momento suspenderam o embate, até outro rapazote colocar mais lenha na fogueira:

– O peão pode ser trocado por qualquer peça, isso é óbvio, já vi meu avô fazendo isso. Mas ele me disse que vai depender: se o peão alcança a casa inicial de um cavalo, ele é trocado por cavalo, se é a casa inicial de um bispo, é trocado por um bispo, e assim por diante.

– Que absurdo! E se for na casa onde começa o rei?

– Ah, aí como não pode pedir outro rei, ele é trocado pela dama.

– Pelo que sei, só podemos trocar o peão por uma peça que já tenha sido perdida para o adversário. Senão o peão nem pode ser avançado, tem que esperar na sétima fila até que a peça desejada suma do tabuleiro.

Ao escutar aquilo, outro menino levantou a voz em tom mais alto que os demais para poder ser ouvido.

– Nada disso, o peão pode ser avançado sim, mesmo que ainda não possa ser trocado por outra peça. Mas ele fica lá, imune. Não pode ser capturado.

– Não faz sentido! Um peão parado lá no fim do tabuleiro, sem poder mais se mover, sem poder capturar outras peças, não pode nem dar xeque!? Não serviria para nada. O que realmente acontece é que o peão ganha o direito de ser trocado por outra peça quando chega ao final do tabuleiro, mas a troca só pode ser realizada depois que ele retorna até a segunda fileira, de onde partiu no começo da partida!

Por um átimo os demais se entreolharam calados, surpresos com aquela nova possibilidade, mas logo gritaram em uníssono:

– O quê????

– Calma, eu explico. Quando o peão chega na última casa, além de ganhar o direito de ser promovido, ele também passa a poder andar para trás, pulando duas casas por jogada, assim em três lances ele retorna para a segunda fileira do tabuleiro e só aí pode ser trocado pela peça escolhida.

Aqueles jovens falavam de um jogo do qual eu não lembrava há muitos anos. Também na minha juventude eu participara de discussões apaixonadas como aquela: sobre tomadas en passant, roques, afogamento do rei etc. Eram conjecturas de meninos que aprendiam o jogo às pressas, sem ler regras aprofundadas ou manuais, mas que tinham a curiosidade aguçada pelas situações práticas que enfrentavam em suas partidas experimentais. Sem saber, os principiantes refazem, nessas discussões, diferentes variações que realmente ocorreram no jogo ao longo dos séculos, em sua evolução até o formato atual.

Ainda ouvia as vozes acaloradas ao fundo, mas já eram como as saudosas vozes de meus amigos de rua e de escola, como se eu voltasse a ser um aprendiz dos primeiros encantos do xadrez. Nem percebi o pôr do sol, e o meu café também já tinha acabado. Por impulso, olhei o fundo da xícara, e não me surpreendi ao notar que a borra havia formado a indistinta silhueta de um cavalo. Paguei a conta e dirigi-me à saída. Porém, há dois passos da porta, resolvi voltar e dar minha contribuição à acalorada disputa.

Os garotos se calaram, desconfiados de minha repentina aproximação. Mas, como quem dá um xeque a descoberto, não dei tempo para perguntas:

– Quando eu jogava, sempre escolhia trocar meus peões que chegavam ao final do tabuleiro por cavalos. Sabem por quê?

Seus olhares curiosos foram a resposta que queria:

– É que naquele tempo, se você promovesse o peão a cavalo, imediatamente podia fazer uma nova jogada com ele!

Não esperei pelas reações. Virei-me e sai rapidamente, certo de que aqueles meninos logo consultariam algum manual e descobririam que um peão que chega ao final do tabuleiro pode ser trocado por qualquer peça (exceto o rei), não importa quais peças ainda estejam no tabuleiro.

No percurso até minha casa, um tanto nostálgico, pensei sobre a fortuita metáfora que podia ser feita com base nas cenas e conversas que acabara de presenciar: aqueles garotos eram como peões que seguiam seus primeiros passos nos caminhos da vida.

Quanto a mim? Bem, no momento estou no final do tabuleiro, imune e quieto, esperando a chance de dar alguns passos para trás… até a casa inicial, para receber minha merecida promoção.


(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa