Xadrez: uma beleza até de ponta cabeça!*

Num dia comum, como qualquer outro, vejo um problema de xadrez no Twitter, penso por alguns instantes ate achar que resolvi. A beleza da combinação chega até a me arrancar um sorriso.

Apressei-me para enviar para outros amigos do jogo pelas redes sociais.

Diagram sem coordenadas
Brancas jogam e dão mate em 3 jogadas.

Enviei assim, sem as coordenadas do tabuleiro e logo apareceram comentários com mais de uma solução: uma supondo que os peões pretos se movem para cima; outra supondo que os peões pretos se movem para baixo no tabuleiro.

Seria possível o xadrez ser tão mágico assim? Não seria engano de alguns colegas?

A posição original, com as coordenadas corretas, deveria ser a seguinte:

Diagrama com o problema original (peões pretos na sétima fila, a um passo da coroação).
Diagrama com coordenadas (lado das brancas).

E a solução para o problema original é: 1.♔f3! g1=♕ (se, por exemplo, 1. … g1=♘+ 2.♔f2 3.♘f3 3.♗×f3#) 2.♘f2+ ♕×f2+ 3.♔×f2#. As promoções do peão em g1 a bispo ou torre também levam a desfechos similares.

A posição que foi interpretada por outros é a seguinte (girando o tabuleiro 180º, sem mudar as coordenadas originais):

Diagrama com problema alternativo (peões pretos nas casas iniciais).
Brancas jogam e dão mate em 3 jogadas

E o que surpreendeu a todos é que, realmente, apesar da radical mudança na posição, o problema de mate em 3 é mantido! A solução é muito elegante: 1.♗c6! b×c6 (única) 2.♔c8 c5 (única) 3.♘c7#.

O fato não passou despercebido, e muitos interpretaram a coincidência como prova do manancial infinito de belezas que é o xadrez.

Seria possível criar outros problemas “irmãos” desses acima variando a colocação do bispo (entre b7 e e4 no primeiro caso; entre g2 e d5 no segundo caso), mas outras variações não seriam tão felizes em manter a simetria. Por exemplo, mudando-se o rei para e1 no primeiro caso, o problema passa a mate em 4, mas no segundo caso, a mudança do rei para e8 ainda permite mate em 3 (vale a pena verificar).

Naquele dia foram muitos os devotos de Caíssa que dormiram encantados, alguns que estavam há meses sem tocar em seus livros de problemas ousaram dar uma olhada, outros jogaram partidas para extravasar a adrenalina enxadrística.

Quanto a mim?

Eu fiquei pensando neste texto, tinha que escrever e publicar! Quem sabe não acontece de alguém ler, de se encantar também, e de o mundo ganhar mais um enxadrista?

♚♕♝♘♜♙

*Uma primeira versão deste texto apareceu previamente no blog parceiro Reino de Caíssa.

Aprendendo com os campeões

A cada campeonato mundial, Isaías sente renovar-se um pouco a velha chama enxadrística que por tantos anos esteve presente em sua vida, aquecendo sonhos e planos, apesar de sua paixão pelo jogo nem sempre ser correspondida.

O mundial deste ano até lembrava nostalgicamente os embates lendários entre Kasparov e Karpov (K × K), não somente porque voltavam a se enfrentar os dois melhores enxadristas do planeta, mas também por causa das iniciais: Ca × Ca.

Isaías seguiu todas as partidas pela internet, em especial a 12ª, que poderia definir o confronto. O melhor era acompanhar as análises dos grandes mestres online, pois sempre aparecia alguma ideia nova, alguma dica que, embora ele quase não jogasse mais com tanta frequência, poderia ser útil algum dia.

Num desses vídeos, o grande mestre Yasser Seirawan comentou algo sobre uma armadilha de abertura na 12ª partida (uma Siciliana) na qual as pretas poderiam acabar num interessante xeque-mate “afogado” caso jogassem sem bastante cuidado.

Impressionante como tem coisas ocultas no tabuleiro, mesmo nas primeiras jogadas! Claro que o Campeão Mundial jamais cairia naquilo, mas Isaías pensou que algum jogador menos talentoso que Carlsen poderia muito bem se tornar uma vítima naquela situação. Só havia uma dificuldade: Isaías não jogava peão do rei e seria improvável enfrentar aquela variante da Defesa Siciliana.

Aquela 12ª partida acabou empatada, após uma estranha proposta de igualdade feita pelo campeão numa posição vantajosa. No desempate, em partidas rápidas, Magnus Carlsen se impôs e manteve seu título.

Embalado pelas partidas do mundial, assim como dois anos antes, Isaías sentiu novamente vontade de jogar. Correu para o clube, mas lembrava fortemente de não tomar as lições aprendidas durante o campeonato mundial muito ao pé da letra como fizera da última vez.

Nos clubes sempre tem alguém pronto para um par de partidas rápidas, e Isaías não teve dificuldades em encontrar adversários. Foi difícil desenferrujar, mas após algumas derrotas iniciais ele conseguiu alguns pontinhos.

Já perto do fechamento do clube, Isaías moveu seu peão da dama duas casas para iniciar aquela que seria última partida da noite. Seu adversário respondeu com uma Defesa Benoni Antiga, e uma posição parecida com aquela da 12ª do mundial apareceu:

Posição após 4. … Ce7

Como já era tarde da noite, Isaías pensou “Por que não?” e seguiu jogando 5.Cb5 a6 6.Da4 Bd7. Com uma estranha satisfação, Isaías concluiu que, definitivamente, seu adversário não vira o vídeo do Seirawan… Jogou o xeque-mate “afogado” ensinado dias antes: 7.C×d6#.

Posição final, após 7.C×d6#

É sempre bom usar o que se aprende. Dá uma sensação de dar um passo a mais na vida, mesmo que esse passo seja bem pequeno, menor até que o passo de um peão no tabuleiro. Para Isaías, porém, aquele pequeno triunfo serviu para manter acesa a velha chama durante a longa espera que virá, de dois anos, até o próximo confronto pelo título mundial.

Xadrez Fascinante


Há alguns anos (como passam rápido), pensei em fazer uma série de postagens para este blog a fim de apresentar aos leitores aquelas posições de maior importância para a história do xadrez. Como eram postagens curtas, e eu não tinha nada a acrescentar nas análises técnicas das partidas completas em relação às magistrais obras publicadas ao longo dos anos, decidi focar na posição chave de cada partida famosa e contribuir no sentido de unir informações soltas, quase nenhuma delas disponível em língua portuguesa, sobre o contexto da partida, quem eram os adversários, o que tornou aquela posição tão célebre etc. O objetivo era trazer um conjunto de informações mínimas, essenciais, que todo aquele que passa pela vida precisa saber sobre o xadrez.

Para o blog, apenas cerca de uma dúzia de textos foi produzida, a maioria bem curtos, limitados ao formato do canal, mas foram uma semente.

Quando pensei em retomar a série, minhas ambições já estavam mais aprofundadas, era necessário rever o que já tinha feito, ampliar, enriquecer, trocar algumas das posições escolhidas por outras mais relevantes (aprender xadrez é um processo) e completar o projeto: seriam 64 posições críticas de 64 partidas famosas. Mas como escolher?

Um dos critérios: não poderia ser uma posição de abertura, do tipo armadilha, tão comuns em livros para iniciantes. Outro critério, seriam candidatas naturais posições presentes em livros de referência como a fantástica coletânea Meus Grandes Predecessores de Garry Kasparov, Zurich International Chess Tournament de David Bronstein ou 500 Master Games de Tartakower & DuMont. Esses gigantes já haviam feito a triagem natural, mas apenas na intersecção de várias dessas magistrais fontes eu encontraria meus 64 tesouros. Mas a cada dia são criadas partidas que podem se tornar antológicas! Então, o trabalho não poderia se prender somente aos clássicos.

Algumas páginas de internet, como ChessHistory.com, Chessbase.com, Chess.com e ChessGames.com foram levadas em conta, em especial está última, que conta com uma área de comentários de usuários da página que é um verdadeiro manancial de referências!

Para dados sobre jogadores e outras personalidades citadas no livro, usei a Wikipédia como fonte principal (em geral a versão em inglês, que costuma ser mais completa) e outras fontes citadas oportunamente no texto.

Escolhidas as partidas, pesquisados os assuntos, amarradas as pontas soltas, verifiquei que o trabalho seria hercúleo! Então decidi dividir o livro em dois volumes.

Neste primeiro volume que ora entrego, cubro um período que vai desde a primeira partida do xadrez moderno, jogada em 1475, até o marcante Torneio de Candidatos de 1953. O segundo volume tratará dos anos seguintes, até a era atual, em que nomes como Kasparov e Carlsen estão ofuscados pela assombrosa perfeição técnica dos algoritmos computacionais!

Agradeço aos leitores do blog, aos amigos enxadristas e não enxadristas pelo interesse demonstrado pelo assunto ao longo dos anos. Agradeço especialmente à minha amiga Jacqueline Amorim, que corajosamente se voluntariou para revisar o texto. Finalmente, à minha família pelo apoio e paciência nos períodos de dedicação ao livro, sem os quais eu não teria o equilíbrio para realizar nenhuma tarefa de valor.

Que a leitura seja agradável e o objetivo alcançado. A repercussão desse primeiro volume vai me acompanhar e animar na conclusão do segundo, que espero lançar brevemente.


Uma lenda lendária

Conhecer-se… talvez seja a mais difícil das tarefas!

Conta-se que, certa vez, Yo Ping, um jovem sedento por sabedoria, procurou Mestre Kon, que há muito havia-se retirado para as altas colinas do Oeste, para ali manter-se em serena meditação e contemplação das ações da natureza.

O jovem Yo Ping viajou por três dias, refugiando-se à noite sob as árvores, concentrando-se para afugentar maus pensamentos e conciliar o sono reparador.

Mestre Kon surpreendeu-se quando, ao final do terceiro dia de viagem, Yo Ping chegou ao seu acampamento simples, fez uma cortês reverência e pediu para ficar com ele por um tempo, compartilhando de suas lições.

O mestre não respondeu, tampouco fez nada que pudesse ser interpretado como uma negação. Assim, Yo Ping permaneceu ao lado dele por mais três dias.

Neste tempo, os dois, embora jamais juntos, desempenhavam as mesmas atividades corriqueiras e observavam-se mutuamente, um pela veneração, outro por simples curiosidade, ou talvez porque reconhecesse no jovem aquele que um dia havia sido.

Na manhã do quarto dia, Mestre Kon olhou profundamente nos olhos de Yo Ping e perguntou

– O que buscas aqui?

– Sei que és um mestre e anseio por aprender contigo a sabedoria.

O mestre já suspeitava das intenções do aprendiz e, durante os três dias, havia estudado cuidadosamente as atitudes do jovem, percebera sua boa vontade, mas também havia notado algo fundamental.

– Conheces a ti mesmo?

Ele respondeu rapidamente

– Sim, mestre, creio que sou quem melhor me conhece em todo o mundo.

O mestre já esperava aquela resposta.

– Então, sabes que em tuas meditações sentas-te sempre sobre o teu pé direito, que inicias teu sono voltado para leste e acordas voltado para o sul. Sabes que a brisa da tarde faz-te coçar a orelha esquerda?

Yo Ping não sabia do que o mestre falava. A princípio julgou ser algum tipo de teste, de intimidação. Ele não sabia se em todas as vezes em que meditava sentava-se sobre o mesmo pé, nem podia garantir que sempre dormia voltado para leste, nem de que coceira o mestre falava.

Desta vez foi Yo Ping quem tornou-se silencioso e, por outros três dias, meditou sobre as observações do mestre. Notou a verdade nas palavras do ancião e, por fim, voltou à sua presença.

– Não, mestre, eu não me conheço.

– Talvez, agora tu tenhas começado a adquirir este conhecimento – replicou o mestre. A sabedoria é como o final duma viagem que não chega ao fim, o último passo sempre revela que haverá um próximo. O início da viagem, entretanto, repousa no auto-conhecimento. Vai, inicia tua viagem rumo à tua própria descoberta. Só quando julgares que cumpriu esta etapa é que poder-te-ei ensinar algo de valor.

– E quando saberei que é hora de voltar?

– No momento que teu auto-conhecimento for completo, sentirás que deves retornar até mim.

Yo Ping partiu naquela mesma manhã. Em seis dias havia conversado com o mestre apenas durante poucos minutos, mas sentia que aprendera o que necessitava naquele momento.

Mestre Kon, sem alteração perceptível no rosto, sorriu por dentro ao presenciar mais uma vez alguém iniciando a busca sincera por seu próprio conhecimento. Contemplou a partida do discípulo sabendo que havia-lhe ensinado tudo o que havia por se ensinar. Por fim, voltou às suas meditações.

Yo Ping refez o caminho de volta observando atentamente tudo o que fazia e o que pensava, como reagia às diversas situações. Quando avistou a vila natal, algo dentro de si o fez pensar que seria necessário algum afastamento, um tempo para aprender sozinho, sem interrupções ou distrações, quem ele realmente era.

Partiu no mesmo dia.

Procurou por terras remotas, onde pudesse viver com o básico oferecido pela natureza. Fixou acampamento numa região de planície, oposta à região de colinas onde habitava Mestre Kon.

Dia após dia, esmerou-se na tarefa que aceitara empreender. Entretanto, sempre achava que era necessário mais tempo. Passaram-se meses e anos, e Yo Ping jamais se sentia pronto para retornar à presença do seu mestre.

Certo dia, vinte e três anos após ter-se voluntariamente exilado na região dos vales, Yo Ping surpreendeu-se ao ser reverenciado por um jovem de aspecto compenetrado.

– Sei que és um mestre, e gostaria de contigo aprender o caminho da sabedoria.

Yo Ping, ou Mestre Ping, percebeu, então, toda a verdade. Sabia que jamais voltaria a ver Mestre Kon, mas, ao mesmo tempo, sabia que sua busca era genuína e teria de continuar.

Por três dias observou o jovem, cujo nome perdeu-se na poeira dos tempos, e na manhã do quarto dia, lançando um olhar profundamente piedoso sobre ele, Yo Ping perguntou:

– Conheces a ti mesmo?

***

As Misteriosas Peças do Sr. Borges

Na mesma linha de produção de literatura de ficção com elementos do jogo de xadrez, acabo de publicar mais um conto inédito na Amazon Brasil. O novo conto se chama “As Misteriosas Peças do Sr. Borges“. Conheça mais sobre ele  abaixo:




Sinopse do conto:  Um jovem estudante, fascinado com um jogo de peças de xadrez que parecem ter vida própria, resolve encontrar o artesão que as fabrica e se oferece como aprendiz. A admiração pelo artista ancião logo dá lugar à desconfiança, quando pensa que os segredos de fabricação das peças lhe são sarcasticamente negados. Porém, ele não tardará a descobrir a verdade… ou o mais próximo disso!

Em breve, esse conto será também incluído no meu e-Book “O jogador que desejava perder”, que passará a ter 13 contos. Quem já adquiriu o livro, receberá automaticamente a atualização, quem ainda não adquiriu poderá fazê-lo sem nenhum custo pelo novo conto adicionado à obra (continuará o mesmo preço inicial). A atualização do livro com o 13º conto deverá estar disponível até o final de julho corrente.

Sinopse do livro:  Nesta coletânea de 12 {em breve 13} contos com temática ligada ao jogo de xadrez, são exploradas as semelhanças muitas vezes ocultas entre a vida e o jogo. Há tantas ligações assim?

As seguintes palavras, presentes no prefácio, resumem bem esta obra:

“O que espera o enxadrista do outro lado da vida? Poderia Deus ter criado a humanidade por causa do “Rei dos Jogos”? Existe alguma coisa em comum entre o “Jogo da Seis Aflições” e a literatura? Saiba mais sobre o grande valor do peão; imagine como se sente uma peça durante o jogo e depois dele; ria com a tradução mais bizarra da história do xadrez; revolte-se com a trapaça que quase ninguém viu; veja muitas metáforas envolvendo peões; compreenda por que nunca se deve menosprezar um jogador, mesmo sendo ele um ‘capivara’; acompanhe a profecia de um espelho sobre a última partida de um enxadrista; descubra o que acontece quando um jogador toca acidentalmente uma peça; conheça o lugar onde o resultado de uma partida de xadrez decidia quem deveria morrer e quem deveria viver.”

Sem dúvidas, o leitor que não conhece o xadrez passará a ver o jogo com olhos mais atentos, enquanto que o enxadrista prático certamente verá que a riqueza do jogo vai bem além de combinações, táticas e estratégia, pois é metáfora precisa para quase todas as vicissitudes humanas.