Um jovem em busca da maestria… na vida

“Aproveite as partidas, sorria, aprecie o jogo, e não apenas as vitórias. Tudo na vida tem um propósito.” Renan Araújo

Capa do canal do Renan no YouTube.
Renan Araújo é uma agradável surpresa da internet brasileira, com seu canal multidisciplinar no YouTube que dá grande ênfase ao xadrez! Além da análise de partidas completas, destaco o curso de finais que o Renan está preparando. Considero os finais de partida o tópico de maior importância para quem quer aprofundar sua compreensão no xadrez. A gente aprende um bocado de xadrez vendo seus vídeos e, ao ler seu blog, percebe-se que Renan é um jovem com grandes e virtuosas aspirações, com sólidas bases espirituais e científicas!
Ele cedeu gentilmente uma parte de seu tempo para responder a algumas de nossas perguntas que vão permitir conhecer um pouco mais esse jovem estudante de engenharia.
1) Renan, fale um pouco sobre você, em especial aquilo que não tem a ver com xadrez.
O Renan é um cara que gosta de ajudar as pessoas com aquilo que faz. Ele ainda tem um pouco daquela criança sonhadora e curiosa para aprender novas coisas. O xadrez é, na verdade, apenas uma das múltiplas coisas que eu aprecio. O Renan sempre gostou de números, matemática e ciência. Talvez isso tenha me levado à Engenharia. Mas também gosto muito de ler, escrever, e até ando me aventurando no humor de jogos de improviso ultimamente rsrs. Mas acima de tudo, o Renan é um cristão reformado que também busca contar às pessoas o que Deus fez na vida dele.
2) Você conhecia o blog Lances Quase Inocentes?
Eu já tinha visto algumas publicações de divulgação em grupos do Facebook como o “Xadrez para Todos” mas nunca tinha me dado o luxo de visitar e poder ler as publicações. Quando recebi o convite para a entrevista, fiz questão de retirar um tempinho para vasculhar o blog e gostei bastante!

3) Como você aprendeu xadrez e como esse jogo se tornou importante na sua vida?
Quando completei 9 anos, em 2007, uma amiga da família tinha uma lojinha de coisas baratas e mandou eu escolher um dos jogos como presente de aniversário. Escolhi, por puro acaso, um xadrez de plástico bem pequeno, devia custar uns 2 a 3 reais na época. Ele me chamara a atenção. Contudo, ninguém sabia jogar! Então comecei a ler as regras no verso da caixa, e com muita dificuldade fui conseguindo entender como cada peça se movimentava, como capturar, e coisas do tipo. Então, fui buscar pessoas para jogar, mas nunca encontrava, pois todos só queriam jogar Damas.
Em dezembro de 2007 houve uma ação do SESC na minha cidade e tinha vários tabuleiros de xadrez. Fiquei ali a brincar e me colocaram num campeonato, ali, na hora. Ainda consegui ganhar uma medalha. Foi aí que decidi que queria aprender um pouco mais. Sempre brincava com amigos, mas só fui começar a estudar o jogo por volta dos 14 a 15 anos de idade. O jogo sempre foi muito importante para mim pois sempre gerou valiosas amizades, bons momentos e ajudava a treinar o raciocínio, a pensar sob pressão.
4) Você compete ou competiu regularmente em torneios ao vivo, ou prefere eventos e partidas online?
Já competi oficialmente algumas vezes, mas hoje não mais. O xadrez para mim é apenas um hobby, algo que faço para me divertir. Eu sempre disse que sou mais um “estudador” do jogo do que um jogador. Gosto mais de passar tempo pensando num problema de finais, por exemplo, do que jogar uma partida. Estudar para competir também me fez encarar o jogo como algo maçante, algo chato, não estava mais sendo prazeroso. Eu nunca tive pretensão de ser profissional, e aquilo estava me trazendo mais dor de cabeça do que alegria.
Há também uma grande dificuldade para alguém do interior do estado da Paraíba, que é o meu caso, e ela é a falta de torneios acessíveis e a falta de incentivo. Os torneios geralmente são muito caros para iniciantes. Há também outros custos como transporte para cidades vizinhas, hospedagem, etc. E isto sem garantia de retorno. A não ser que se queira realmente apenas se divertir.
Prefiro as partidas ao vivo.
5) Teu blog, bem como o teu canal, não pretende ser exclusivo sobre o xadrez, apesar de o jogo ter grande espaço nesses meios. Você tem uma estratégia mais ampla de geração de conteúdo em diversos assuntos?
Olha, até hoje me pergunto como consegui tantos inscritos! Na época que via os grandes canais de xadrez, achava que o limite de inscritos sobre xadrez era, no máximo, 15 a 20 mil. Eu estava enganado. Minha estratégia sempre foi tentar fazer os vídeos da melhor forma possível, sem me preocupar com o retorno, com fé que um dia seria recompensado. Eu ouvia dizer que o YouTube um dia recomendaria os vídeos e os inscritos viriam. Aparentemente é verdade.
Minha estratégia hoje não mudou muito, nunca fui aquele cara que planejava “dominar a internet“, apenas gosto de ajudar. Começamos porque via que existiam pouquíssimos canais de xadrez na época (2014). Hoje há bem mais canais, inclusive os GMs brasileiros estão entrando na onda e isso é ótimo! Só quem tem a ganhar são os inscritos!
Hoje o espaço do xadrez na minha vida foi diminuído, é verdade. Mas eu ainda aprecio muito esse belíssimo jogo, e no que depender de mim, continuarei postando e ajudando aqueles que precisarem.
6) Especificamente em relação ao conteúdo de xadrez, que costuma ser um trabalho árduo para um público bastante crítico e seletivo e com baixo retorno financeiro ao tempo dedicado. Qual tua motivação para superar essas dificuldades e ter um hoje um canal consolidado com muitos vídeos de xadrez?
A maior motivação deve ser fazer sem esperar retorno. Em tudo na vida, fazer as coisas por dinheiro ou por fama, ou por aceitação, nunca é legal. E isso é verdade. Se perceberem bem, às vezes eu estou desmotivado e dou um tempo, passo duas semanas, um mês sem postar. É um tempo de recarregar as energias, pegar um pouco de saudade do jogo, de gravar. A rotina é bem cansativa também, muitas vezes, e é preciso descansar. Fora o cansaço psicológico, às vezes começam a te criticar, às vezes comparam você ao que outros estão fazendo, às vezes a vida está corrida, provas, trabalhos, etc.
Mas o importante é não se abater. Eu passei 1 ano para ter 250 inscritos, 2 anos para ter uns 2500. Com 3 anos fomos para uns 30 mil. A vida tem suas surpresas.

7) Você é um consumidor de livros de xadrez, ou sua geração já usa aplicativos e vídeos como principal forma de aprender sobre o jogo?
Quando eu estava empolgado para competir, eu comprei todos os livros que pude. Eu gosto muito de ter o livro físico em mãos, poder folhear, reproduzir as posições no tabuleiro físico. Contudo, penso que a tecnologia tem ferramentas que ajudam a aprender de forma mais rápida, e para aqueles que são iniciantes ou intermediários e querem crescer no jogo para competir, é um item obrigatório a se ter, para dar um salto e conseguir chegar pelo menos aos 1900 a 2000 de rating.
Os livros hoje servem muito para refinar o conhecimento adquirido. Ler livros de xadrez sempre foi um processo demorado, lento. Gasta-se tempo montando as posições etc. Mas a familiaridade com os livros e com o tabuleiro é fundamental para o sucesso de um jogador avançado ou profissional. Fora os livros que se leem por puro prazer, como eu faço como o meu preferido Tal-Botvinnik, 1960, escrito pelo próprio Mikhail Tal. É divertido para mim ler o Tal escrevendo. Tais coisas pagam o preço dos livros.
8) Pode deixar uma mensagem final para os seguidores do teu canal e os leitores do LQI?
Aos amigos leitores e espectadores, não se desesperem. O xadrez é um jogo belíssimo que merece ser apreciado. Um jogo que leva minutos para se aprender as regras, mas anos para ficar bom, e talvez nunca o dominemos. Aproveite as partidas, sorria, aprecie o jogo, e não apenas as vitórias. Tudo na vida tem um propósito. Nunca conseguiremos saber o que acontecerá daqui a um mês, daqui a um ano.
A você que deseja ser um amador, assim como na vida, lute com firmeza e não abaixe a cabeça para seus oponentes aparentemente “mais fortes”.
A você que deseja ser um profissional, prepare-se bem, siga adiante, o caminho é longo. O Brasil é um lugar árduo para seguir essa carreira, mas não é impossível, e temos visto as oportunidades crescendo; devagar, mas crescendo.
A todos os que me seguem, e me mandam mensagens positivas, o meu muito obrigado. Vocês foram uma parte sensacional da minha vida, talvez eu tenha aprendido mais com vocês do que vocês comigo. Nada disso seria possível sem vocês.
A todos os enxadristas desse Brasil, um forte abraço e que todos os vossos peões sejam coroados damas nessa vida.

O blog LQI agradece ao Renan pelas respostas e deseja sucesso dentro e fora dos tabuleiros!

Xadrez brasileiro no Youtube

A comunidade enxadrística brasileira na internet tem migrado de conteúdos quase que exclusivamente baseados em blogs e fanpages no Facebook para o formato audiovisual, que permite maior dinamismo, maior envolvimento com o público e traz o potencial de atrair milhares de pessoas para o xadrez. Há tempos que se sentia a carência de grandes canais de partidas, táticas, finais etc, que são abundantes em espanhol e inglês, feito por brasileiros.
Com efeito, já temos hoje canais como o Xadrez Brasil, do Rafael Leite, que superam em números de inscritos um canal internacional famoso como o Power Play Chess, do GM Daniel King. Não vai demorar até alcançarmos no país canais com mais inscritos que o MatoJelic (+150 mil) ou até mesmo o aparentemente inalcançável canal do Agadmator (+400 mil).
O interessante nesse espaço no YouTube é que mesmo os grandes mestres brasileiros como Krikor Mekhitarian (+22 mil) Evandro Barbosa (+17 mil) e Rafael Leitão (+7 mil) disputam a audiência com nomes que sustentam menor ELO FIDE, mas que têm conseguido boa presença online, como o Rafael Leite, citado acima, e o Renan Araújo (+48 mil). Apesar de ainda ser um canal relativamente pequeno, vale a pena citar o trabalho da jovem Beatriz Ibrahim, (+ 1 mil) que com certeza é enorme estímulo para a prática do xadrez por cada vez mais mulheres.
Enquanto que os grandes nomes são conhecidos por muitos de nós, é interessante saber mais sobre aqueles antes pouco conhecidos que agora galgam seu espaço falando com muita propriedade e zelo do nosso querido jogo.
Entrei em contato com alguns dos canais citados acima convidando os responsáveis para uma entrevista curta, de modo a divulgar um pouco mais sobre eles e seus canais no YouTube. Alguns já responderam e em breve as entrevistas serão publicadas aqui conforme as respostas cheguem.
Será que esqueci de algum canal interessante? Deixe sua sugestão nos comentários.

Topalov e as imortais… dos outros

 

Veselin  Topalov (Bulgária, 1975 — ) é um jogador de estilo criativo que não teme complicações. Coube a ele ser o adversário de Kasparov na última partida oficial jogada pelo ex-campeão do mundo em Linares 2005, e ele venceu! Alguns meses depois, Topalov sagrava-se campeão mundial pela FIDE ao vencer o Torneio de San Luis, Argentina, terminando à frente de nomes como Anand, Svidler, Morozevich, Leko e Judit Polgar. Aquele ano de 2005 foi um espetacular para o jovem Topalov!
Além de todo o sucesso como jogador, existe uma curiosidade raramente falada: ele foi derrotado por quatro grandes nomes da história do jogo, Kasparov, Karpov, Bareev e Shirov, naquelas que se tornaram conhecidas como ‘as imortais’ de cada um desses jogadores. Vejamos a seguir:

 

Kasparov, G. × Topalov, V. (Wijk aan Zee, 1999)
Posição após 23. … Dd6
Aqui, Kasparov inicia um combinação de longo prazo, dessas impossíveis de calcular todas as variantes até o final por um ser humano, que tornou esta partida talvez a melhor partida da carreira do ‘Ogro de Baku’. 24.T×d4! (Kasparov) … c×d4? Melhor teria sido manter a igualdade recusando o sacrifício. Mas qual grande obra sobre o tabuleiro não precisa de uma ajudinha do adversário? Só um jogador destemido como Topalov para entrar na linha principal do sacrifício! 25.Te7!! (Kasparov). O segundo sacrifício é ainda mais difícil e espetacular que o primeiro! Mas ambos precisaram ser calculados juntos, pois o primeiro não teria sentido sem o segundo. Toda a partida pode ser vista aqui.
 
Karpov, A. × Topalov, V. (Linares, 1994)
Posição após 17. … h×g6
Alguns anos antes, no torneio de Linares de 1994, enfrentando Anatoly Karpov, Topalov novamente dá uma chance de imortalidade a outro grande ex-campeão mundial: 18.Cc5! “Forte jogada, que abre espaço para um agudo jogo tático” (Karpov) … d×c5 19.D×d7 Tc8 20.T×e6! “Este sacrifício de qualidade escapou aos cálculos de meu adversário, que chegou muito perto de salvar a partida” (Karpov). Novamente, dois sacrifícios combinados (cavalo em c5 e torre em e6) que tornam a combinação uma das mais famosas dentre as jogadas por Karpov. A partida completa pode ser vista aqui. Vale lembrar que Karpov venceu aquele torneio naquela que foi talvez a maior performance individual de um jogador em todos os tempos (11 pontos em 13 partidas, +9 -0 =4; 2,5 pontos à frente de Kasparov e Shirov).

 

Topalov, V. × Bareev, E. (Linares, 1994)
Posição após 16. De4
No mesmo Torneio de Linares de 1994, Topalov, desta vez de brancas, sofreu uma derrota do tipo miniatura para o grande mestre Evgeny Bareev numa partida que ganhou o prêmio de beleza do torneio. O diagrama acima ocorreu após um primeiro sacrifício de Bareev no 13º lance (13…. C×f4) sabiamente recusado por Topalov, que pensou que após 16. De4 haveria a troca de damas com igualdade material e uma ligeira vantagem posicional para as brancas, mas ele não contava com as inspiradas ideais de Bareev naquele dia: 16. … Te8!! (Román Torán) 17.D×e8 Bf5! “Completando a manobra que nos recorda ‘A imortal’, com seu duplo sacrifício de torres” (Román Torán). Mais uma vez a combinação envolve múltiplos e belíssimos sacrifícios! 18.D×a8 … e, a partir de agora, temos mate em 10 jogadas que deixo como exercício aos leitores. Toda a partida pode ser vista aqui. Duas derrotas imortais em um mesmo torneio, definitivamente ‘Linares 1994‘ foi uma competição difícil para Topalov.
 
Para finalizar, uma brilhante jogada que arrematou um final de bispos de cores opostas, potencialmente empatado:

 

Topalov, V. × Shirov, A. (Linares, 1998)
Posição após 47. Rg1
Shirov, temido por colocar fogo no tabuleiro em quase todas as suas partidas, é menos conhecido por sua técnica de finais de partida, porém, quem disse que nos finais de poucas peças não existe mais tática? 47. … Bh3!! Este brilhante sacrifício tem sido citado como um dos lances mais fantásticos da história do xadrez! Mais do que ficar “na prática” com 4 peões contra 1 (por causa dos peões dobrados brancos na coluna h) as pretas abrem caminho via f5 até as casas críticas que garantirão a coroação de um de seus peões, de a ou d. 48.g×h3 Rf5 49.Rf2 Re4 50.B×f6 d4 51.Be7 Rd3 52.Bc5 Rc4 53.Be7 Rb3 e Topalov abandona (0-1). Veja a partida completa aqui.
 
Grandes jogadores quase sempre têm seus altos e baixos, Topalov foi crescendo com essas derrotas contra grandes nomes da década de 1990 para, além de ser campeão pela FIDE e número 1 do mundo, tornar-se um dos maiores jogadores da década seguinte. Sua grande qualidade, e talvez por isso tantas derrotas extraordinárias, é seu lema que tão bem faz ao xadrez: jogue e deixe jogar!

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Encontro com o decano do xadrez do Ceará

Coronel Carlos Alberto Ferreira, 97 anos de idade, decano do xadrez cearense!
Não sei se acontece com todos, mas quando eu leio os livros de xadrez dos grandes mestres do passado, parece que eles estão ao meu lado, contando suas histórias vividas numa época áurea do xadrez. Lamento que, de fato, eu não os tenha conhecido; nomes como Bronstein, Najdorf, Kotov, Averbakh… para falar somente daqueles cujos livros eu gosto mais.

Há poucos ainda no mundo que foram contemporâneos desses homens, que leram suas palavras quando a tinta ainda estava fresca no papel, que conheceram alguns deles pessoalmente. Há muito poucos no mundo, mas quantas dessas testemunhas oculares estão próximas de nós?

Será que quietos em sua casa, lendo e jogando xadrez, não existem veneráveis senhores ou senhoras que compartilharam este mundo com grandes jogadores, não necessariamente no mesmo espaço físico, mas ainda assim próximos dos eventos que hoje são somente histórias em livros.

Tive a honra de visitar pela segunda vez uma pessoa assim!

O coronel Carlos Ferreira (apenas Cel Ferreira nos tempos da ativa) é, com certeza, o decano do xadrez cearense (talvez até do Brasil), ainda que muitos dos enxadristas atuais do estado não o conheçam! Ele é uma testemunha das glórias do xadrez desse estado de enorme tradição no jogo (algo que hoje não se fala e divulga da maneira que deveria ser divulgado). Aos 97 anos, com uma lucidez e agilidade mental que demonstram o bem que faz o xadrez! Ele continua professando aos quatro cantos seu amor ao jogo, que pratica desde muito tenra idade!

Nosso decano demonstra grande combatividade no tabuleiro! Cheguei para uma conversa, mas fui desafiado para duas partidas!

Posição final de uma das partidas (Ferreira x Frota, 1/2-1/2)
O Cel Ferreira foi aluno da Escola Preparatória de Fortaleza (que funcionou entre 1942 e 1961 no prédio do atual CMF em Fortaleza-CE), oficial de carreira do Exército Brasileiro, vice-presidente da CBX, organizador do V Zonal Sulamericano de Xadrez (realizado em Fortaleza no ano de 1963), diretor do DETRAN-CE na década de 1960, além de ter atuado na indústria de pesca do Ceará nos anos 1970 e no SENAI nos anos 1980. No xadrez, continua forte jogador até hoje (como comprovei).
Além das partidas, ouvi histórias sobre o mestre Ronald Câmara (cearense, mestre nacional e bi-campeão brasileiro de xadrez) e sobre o também coronel Francisco Alves dos Santos, ou simplesmente Chico Alves (cearense, vice-campeão brasileiro de 1961 e membro da equipe brasileira na Olimpíada de Xadrez de 1972, realizada em Skopje, Alemanha). Ouvi sobre seu contato com nomes importantes como os grandes mestres Eliskases e Mecking.

Na memória do Cel Ferreira, está firme um tempo em que os segredos do xadrez estavam quase inacessíveis, sobretudo por trás da Cortina de Ferro. Contou que certa vez afastou-se do Ceará para residir em Recife, em virtude de sua posição como oficial das Forças Armadas, deixando alguns colegas de mesma força enxadrística que ele. Só que nesse intervalo de alguns anos, chegaram à Fortaleza alguns exemplares da famosa revista soviética de xadrez 64 que foram traduzidos e minuciosamente estudados pelos colegas do coronel. Quando ele voltou, uma surpresa: seus antigos rivais de mesma força eram agora quase invencíveis!

Perguntei: “Coronel, quem é o número 1 de todos os tempos?”. Ele falou sem titubear: “Fischer”! “E quanto a Kasparov?”. “Este fica em segundo”. Mas não pensem que ele ficou preso ao passado, regularmente acompanha partidas dos garotos de hoje, Carlsen e companhia.

O tempo foi curto para ouvir as histórias e jogar as partidas que ambos desejávamos, mas outras visitas virão!

Aproveitando o ensejo, ofertei ao Cel Ferreira um exemplar (único impresso) do meu ebook Xadrez Fascinante, não para concorrer com os clássicos de sua seleta biblioteca de xadrez, mas como singela contribuição de um conterrâneo que também ama esse jogo.

Já deixei a promessa de retornar, jogar mais um pouco, ouvir outras histórias e, quem sabe, poder ofertar o segundo volume do ‘Xadrez Fascinante’, ainda em elaboração.

Compartilhe: bit.ly/DecanoCeara

Ensaio sobre a cegueira… enxadrística

O xadrez é um jogo de informação perfeita, o que significa que tudo o que os jogadores precisam para tomar suas decisões está diante de seus olhos (ao contrário de outros jogos, como o Poker). Isso não significa que seja um jogo no qual as pessoas tomem sempre as melhores decisões, pois, a rigor, ninguém é capaz de “enxergar” todos os bilhões de possibilidades de posições sobre o tabuleiro. Na verdade, todo o perdedor de qualquer partida falhou em ver tudo o que precisava, senão conseguiria pelo menos empatar.
 
Ultimamente, com a chegada do AlphaZero, a definição de cegueira enxadrística precisa ser atualizada, pois a máquina “vê” tanta coisa que até os melhores humanos podem ser considerados cegos.
 
Por exemplo, no recente match Ca x Ca (Carlsen x Caruana), a sexta partida acabou num final muito interessante no qual o desafiante (com peças pretas) tinha bispo, cavalo e peão contra bispo e peão do campeão, mas que acabou em empate. Num dado momento, o computador, profundo e frio, viu xeque-mate para as pretas em 30 jogadas! Nesse nível, todos estavam cegos, até os dois jogadores mesmo depois de ver a jogada da máquina não percebiam o desfecho fatal.
 
Mas a cegueira que mais nos impressiona é a cegueira ao óbvio, coisa que até o mais neófito dos enxadristas seria capaz de ver.
 
Em 1953, jogava-se o famoso Torneio de Candidatos de Zürich, que deve sua fama aos excelentes livros escritos sobre ele e às polêmicas envolvendo a política soviética e a competição enxadrística. Na 19ª rodada do evento (que teve um total de 30!) enfrentavam-se o húngaro Szabo (que estava entre os últimos colocados) e o norte-americano Reshevsky (que tinha boas chances de vencer o certame).
 
Szabo tinha as peças brancas e jogou um xadrez bem dinâmico e, ao ponderar seu 21° lance, mirava a seguinte posição:

Szabo, L. × Reshevsky. S (Zürich, 1953), posição após 20.… ×f6


A maioria dos jogadores que costumam praticar e estudar xadrez perceberá que há acima uma situação de xeque-mate em 2 jogadas para as brancas, começando com 21.×g6! ♗g7 22.×g7# ou 21. …♔h8 22.♗×f6#. Szabo, que tinha muito tempo disponível em seu relógio para pensar, jogou rapidamente 21.♗×f6?? arruinando a vitória imediata.

Vejamos o que os grandes cronistas (e participantes) do torneio falaram sobre este erro:
 
“Seguramente contagiado pelo angustiante apuro de tempo de seu adversário, o grande mestre húngaro retoma a peça, quando tinha mais tempo que suficiente para ver o simples mate em duas jogadas” (Najdorf)
 
“Um caso único em muitos anos de torneios: nenhum dos grandes mestres vê 21.×g6! g7 22.×g7#” (Bronstein)
 
A audiência, que seguia a partida em tabuleiro mural, reagiu com tamanha surpresa que seus ruídos chegaram aos ouvidos de Szabo que logo percebeu a oportunidade perdida. Mais adiante, voltou a errar numa posição ainda vantajosa, e acabou por propor empate mesmo em posição ainda ligeiramente melhor para ele. Segundo Najdorf, naquela altura para Szabo “era mais difícil solucionar os problemas de seus nervos que os problemas do tabuleiro”.
 
Afetado pelo erro, Szabo só voltou a vencer alguma partida naquele evento após 9 rodadas!