Três peões na sétima vão ao paraíso

Mac Donnel, A.  De la Bourdonnais, L.
Londres, 1834
Posição após 24. c6
Talvez o final mais brilhante de que se tem notícia”, (Enciclopédia Soviética de Xadrez).
No século XIX, Inglaterra e França clamavam ter os melhores jogadores de Xadrez do mundo. Em 1834, para tirar essa dúvida, foram reunidos os dois mestres que eram considerados os melhores enxadristas desses dois países para uma série de seis matches (!) e definir qual dos dois era o melhor 
jogador da Europa, quiçá do mundo. Alexander MacDonnel, enxadrista amador, irlandês radicado em Londres, e o enxadrista profissional Louis Charles Mahé de la Bourdonnais, francês, como se nota, teriam jogado um total de 88 partidas, das quais apenas 85 se conservaram. Sabe-se, porém, que o placar final foi preservado, com contagem em favor do francês (+45 – 30 = 13)1. Após este encontro, De la Bourdonnais desfrutou da reputação de Campeão do Mundo até sua morte, em 1840.

A posição acima é da 62ª partida da série (16ª do 4º match), as pretas  têm certa desvantagem material, compensada pela posição e mobilidade de seus peões centrais. Esta posição não é a mais famosa desta partida, mas é o ponto inicial da combinação cujo desfecho permanece até hoje no imaginário enxadrístico mundial.

A partir do diagrama acima, a partida continuou assim: 24. … fxe3! (ignorando a ameaça sobre o bispo de b7, que não pode ser capturado)25.Tc2 De3+ 26.Rh1 Bc8 27.Bd7 f2 28.Tf1 d3 29.Tc3 Bxd7 30.cxd7 e4 31.Dc8 Bd8 32.Dc4 De1 33.Tc1 d2 34.Dc5 Tg8 35.Td1 e3 36.Dc3 (e agora o arremate, que leva a uma famosa posição vencedora, com três peões colados na sétima fila, e incontáveis ameaças!)… Dxd1! 37.Txd1 e2
Posição final após 37. … e2 (0-1).
Uma posição realmente fantástica, com ares de composição artística, mas alcançada numa partida real no que hoje seria considerada uma disputa pelo título mundial! Os peões negros alinhados na sétima fila2 tornam inofensivas as poderosas peças pesadas brancas, que abandonaram sem esperar pelo xeque-mate.

1 Aqui, há fontes que indicam também +45 -27 = 13 (considerando apenas as partidas que se conservaram) e +44 -30 = 14
2 Teria sido esta posição final a inspiração para o nome do filme A classe operária vai ao paraíso? 

LQI fez quatro anos de existência!

Em 2010, decidi que tinha chegado o momento de (finalmente) voltar a me dedicar ao Xadrez. Aquela decisão implicava, entre outras coisas, fazer exercícios de tática, estudar partidas comentadas em livros, relembrar e atualizar o repertório de aberturas e, claro, jogar torneios.

No decorrer dos primeiros torneios, senti a necessidade de criar um espaço para mostrar as partidas que estava jogando, para que alguns amigos pudessem vê-las e opinar sobre a qualidade dos meus lances sobre o tabuleiro. Lembro de ter tido essa ideia ao ler o excelente (e hoje inativo) blog do GM Krikor.

Assim, em 31/5/2010, nascia o blog Lances Quase Inocentes (LQI) com a despretensiosa primeira postagem: Algumas partidas recentes (que até hoje só teve 10 acessos, pois foi divulgado só para algumas pessoas). A explicação para o nome do blog pode ser vista aqui.

O entusiasmo foi crescendo quando fui conseguindo minha pontuação FIDE, o que me motivou a escrever bastante sobre o tema. Por exemplo:

 
Com o tempo, o LQI passou a dar informações sobre torneios na cidade de Natal (RN) e Fortaleza (CE), principalmente. Algumas vezes comentava sobre grandes eventos internacionais, campeonato brasileiro absoluto, informações sobre onde jogar Xadrez na cidade de Natal, compilação mensal dos ratings FIDE e CBX dos jogadores do RN etc.

Ao longo desses quatro anos, houve uma inevitável mudança de planos na esfera pessoal, e novo afastamento do Xadrez competitivo. Então, voltei a uma abordagem mais extensiva do jogo, que teve impacto no blog. Por exemplo, eu descontinuei o lado mais utilitário do LQI, pois demandava muito tempo e exigia que eu estivesse em dias com todos os torneios. Felizmente, as informações sobre o Xadrez local continuam sendo atualizadas em outros sites e blogs excelentes como: Xadrez PotiguarBlog Xadrez Potiguar (onde se publica mensalmente o ranking do RN com base nos ratings FIDE e CBX), Blog do NEMBlog Xadrez Natalense e Academia Damasceno de Xadrez.

 
Assim, o LQI ficou mais livre para exercer seu lado ‘ideias e divagações variadas’ e tratou até mesmo da Mega Sena da Virada!
 
O LQI sempre foi, também, um canal onde eu podia falar do que mais me impressiona na história do Xadrez. Em especial, a postagem sobre a lendária série de vinte vitórias consecutivas de Bobby Fischer no seu caminho até o título mundial foi uma das que mais gostei de escrever, e é até hoje a mais visualizada do LQI. Mais recentemente, está em andamento meu projeto sobre as posições mais famosas da história do nosso amado jogo.
 
Nesses quatro anos, foram 232 postagens, em sua totalidade autorais, sempre citando de onde as informações foram retiradas ou consultadas. Algumas delas eu gostaria de destacar, seja pelo prazer que tive em escrevê-las, seja pela repercussão obtida:
 

 

Como o Xadrez, o LQI já faz parte da minha vida, e, nesse ritmo “devagar se vai ao longe”, continuarei postando estes textos, assim como quem faz, na vida e no tabuleiro, uma sucessão de lances, nem sempre inocentes!
 

 

Série ‘Posições Famosas do Xadrez’

Posições publicadas até o momento. Sugira a próxima!

Alguns já devem ter percebido que, ultimamente, um certo padrão de postagens vem aparecendo aqui no LQI, sempre sob o marcador ‘Posições Famosas do Xadrez‘.

A ideia é apresentar ao jogador iniciante, ou ao mero curioso sobre o jogo, aquelas posições de importância histórica, seja pela beleza dos lances, da combinação arrematadora, da partida em que ela apareceu ter sido decisiva num campeonato mundial, por exemplo, e assim por diante. Motivos não faltam para tornar uma posição famosa. E isso gera uma dificuldade: sob que ótica julgar a fama de uma dada posição?

Até agora venho seguindo o caminho mais fácil, escolhendo algumas ‘unanimidades’, como as posições-chave da ‘Partida Imortal‘ e da ‘Sempreviva‘, ou da histórica vitória de Botvinnik sobre Capablanca em 1938. Aliás, me parece que as derrotas de Capablanca, de tão raras e tão comentadas, são candidatas naturais para este projeto e, das cinco publicadas até agora, já temos duas na qual o grande cubano Campeão do Mundo teve que inclinar seu Rei! Não vão pensar que é falta de admiração por ele, mas uma incomum oportunidade de homenagear e enaltecer mostrando, também, as derrotas!

Não existe ordem entre as posições, ainda que, inicialmente, eu tenha tentado a pesquisa com partidas mais antigas, que há mais tempo adquiriram sua fama e das quais é mais fácil encontrar referências. Não impede que uma partida recente apareça numa das próximas postagens.

E por que posições e não a partida completa? Bem, isso pode ser explicado de várias formas, a primeira é o tamanho de uma postagem, que não convém ser muito longa, pois dificilmente será lida até o final. Além disso, meu parco conhecimento do jogo não me permitiria jamais publicar partidas comentadas de mestres, tampouco vejo graça em copiar dos livros ou usar computadores. Em suma, o formato me parece ideal para o blog. Sempre deixo links para aqueles que quiserem ver a partida completa e enriquecer os conhecimentos.

Termino convidando os leitores do LQI para deixar comentários com posições que julguem interessantes para constar desta série. Obrigado!

Postagens já publicadas:

1938: um ponto de inflexão nos tabuleiros

Botivinnik,M. Capablanca, J.R.
Rotterdan, 1938
… uma das mais famosas combinações de todos os tempos” – Nunn
E, na 11ª rodada, Botvinnik jogou o que foi em suma ‘a partida de sua vida’ contra Capablanca. ” – Kasparov
Algumas vezes conseguimos identificar claramente os pontos de inflexão da história, esta partidafoi uma dessas ocasiões. Em 1938, os oito maiores mestres de Xadrez do mundo, inclusive Alekhine, o campeão mundial, tomaram parte num torneio que ficou conhecido como um dos mais fortes até hoje realizados. Torneio A.V.R.O. (sigla da empresa patrocinadora do certame), disputado em diferentes cidades da Holanda. Capablanca, então com 50 anos, recém-casado pela segunda vez, enfrentava o jovem Botvinnik, que viria a se tornar, anos depois, o primeiro campeão mundial soviético. Esta partida foi um dos alicerces da reputação de Botvinnik como patriarca do que veio a ser a Escola Soviética de Xadrez, que produziu (de uma forma ou doutra) todos os campeões mundiais de 1948 a 2005, exceto Fischer (americano, campeão de 1972 a 1975).

Capablanca comete uma (rara) falha na avaliação de sua posição, acreditando ser seguro o ganho do peão da coluna ‘a’. Para tanto, o grande cubano deixou um de seus cavalos fora de jogo.

Enquanto isso, Botvinnik fortalecia sua posição no centro e no flanco do rei. Para arrematar sua vitória, o mestre soviético encontrou uma combinação belíssima, que tornou esta partida obrigatória em quase todas as antologias de partidas que se publicaram posteriormente.

A partir do diagrama, a continuação é 30. Ba3!! (deslocando a dama negra da defesa do cavalo em f6) 30. … Dxa3 31. Ch5! (teriam gritado este lance da plateia antes que fosse jogado, tamanha a empolgação dos espectadores com a combinação, mas claro que Botvinnik previu isso muito antes do lance 30) 31. … gxh5 32. Dg5+ Rf8 33. Dxf6 Rg8 34. e7 (tudo agora depende se o rei branco vai encontrar abrigo para os xeques de Capablanca, ainda esperançoso de empatar) 34. … Dc1+ 35. Rf2 Dc2+ 36. Rf3 Dd3+ 37. Rh4 De4+ 38. Rxh5 De2+ 39. Rh4 De4+ 40. g4 De1+ 41. Rh5 eas negras abandonam.

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Uma miraculosa concatenação de circunstâncias

Adams, E. Torre, C.
New Orleans, 1920
… a truly miraculous concatenation of circumstances” – Tartakower
A mais bela partida que eu joguei” – Torre
Em 1920, o jovem talento mexicano, Carlos Torre Repetto, era patrocinado por Edwin Ziegler Adams, e esta posição advém, provavelmente, duma partida de treinamento entre os dois.

Torre (1905 – 1978) foi o primeiro mexicano a despontar no cenário internacional, 5º colocado no forte Torneio de Moscou em 1925 (vencendo Lasker numa partida também histórica), mas, já no ano seguinte, abandona as competições após sofrer um colapso nervoso causado por problemas pessoais e profissionais, jamais retomando a prática do xadrez magistral. Em 1977, a FIDE outorgou-lhe o título de Grande Mestre Internacional por seus resultados nos anos 1920 (quando se estima que seu desempenho o teria classificado, então, entre os dez melhores do mundo). Já Adams (1885 – 1944), além de mentor de Torre e ser um jogador mediano, passou à história do jogo somente por esta partida.

A posição acima só veio ao conhecimento público 5 anos depois de jogada, quando foi publicada no American Chess Bulletin, com notas do já forte mestre Carlos Torre. As notas de Torre, aliás, lançam certas dúvidas sobre os lances finais da partida, se realmente ocorreram ou se, após as negras abandonarem a partida no 15º lance, o magnífico desfecho teria sido parte da análise post mortem. Ou teria, ainda, sido uma homenagem do pupilo ao seu antigo amigo e benfeitor, atribuindo-lhe os méritos da brilhante sequência de sacrifícios de dama que decidem a partida?

A partir do diagrama, a continuação é 18. Dg4!! (a dama não pode ser tomada por causa do mate na oitava fila, se 18. … Dxg4?? 19. Txe8+ Txe8 20. Txe8#)18. … Db5 19. Dc4! Dd7 20. Dc7! Db5! (uma pequena armadilha armada pelo lado negro, se 21. Dxb7?? Dxe2! e agora as negras ganham)21. a4! Dxa4 22. Te4!! (provavelmente o lance mais difícil da combinação)Db5 23. Dxb7 perdendo a dama ou levando mate, as negras abandonam.
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