Lances Quase Inocentes (LQI) é um blog de xadrez. Contos, crônicas, entrevistas, cinema e dicas de conteúdo. Campeões mundiais de xadrez, história do xadrez, partidas e jogadas mais famosas da história.
O livro Serena(Ian McEwan, 2012) traz como protagonista uma moça que ” … era matemática, ex-enxadrista e (…) que precisava de consolo”.
O xadrez é citado apenas poucas vezes, quando, por exemplo, a narradora relembra seus tempos como capitã da equipe de xadrez de sua escola.
Certamente o livro não seria assunto deste blog não fosse por outa passagem, talvez a última a mencionar o xadrez, quando Serena está sendo entrevistada para uma vaga burocrática no serviço secreto britânico:
“… apliquei ao meu autorretrato uma demãozinha de enxadrismo, sem mencionar que não jogava havia três anos. Ele me perguntou se eu conhecia o final da partida entre Zilber e Tal em 1958. Eu não conhecia, mas podia muito bem falar da famosa posição de Saavedra.”
Assim como Serena, eu não conhecia a partida de Tal, mas lembrava de já ter visto a posição de Saavedra. Quando li Serena, eu já havia iniciado a série sobre posições famosas e logo achei que poderia ser uma boa candidata. Fui atrás de conhecer a história da partida e atestar a fama da posição (tinha que ser famosa, para aparecer assim, nominalmente, numa obra literária). Infelizmente, nos dois livros de Tal que consultei não se menciona a partida, e na internet há pouca coisa.
A referência mais esclarecedora foi no site chess.com, onde há uma página com a posição e fala-se que é oriunda da “clássica partida” entre Zilber e Tal em 1958. Em seguida, pede-se ao leitor que encontre a ideia vencedora. Segue a posição mostrada no chess.com:
Zilber – Tal, 1958 Posição após 42. … Rg4.
Não vou me arriscar a dizer que a posição acima é que confere fama à partida, ou se é este o final a que se referiu o autor, mas foi o melhor que pude apurar. Outra fonte de informação seriam os comentários à partida que alguns internautas fazem no site chessgames.com. Mas lá não houve grande ajuda.
Um dos poucos comentários diz que Zilber foi caracterizado no filme Lances Inocentes, sendo o senhor que colocou uma placa numa mesa de xadrez no Washington Square Park dizendo que venceu Tal em 1953 e cobrando 5 dólares por uma foto ou uma partida rápida:
Cena de Lances Inocentes (1993)
Porém, no chessgames.com não consta nenhuma vitória de Zilber contra Tal em 1953 (houve duas vitórias, uma em 1952 e outra em 1958 – esta que foi citada em Serena). Por outro lado, é praticamente certo que Zilber era frequentador das mesas de xadrez do Washington Square Park na década de 1980, e provavelmente, no filme, apenas houve erro da data da vitória.
A partir do diagrama acima, Zilber venceu Tal com as seguintes jogadas: 43. Te7 Rf5 44. Tf7 Td6 45. Bc5 Tf6 46. Tf6 Rf6 47. Rf3 Rf5 48. Bf8 Rg6 49. Rg4 h5 50. Rf3 Rf5 51. Be7 g4 52. Re3 Re6 53. Bd8 Re5 54. Bh4 1 – 0.
Para completar, a posição de Saavedra (como Ruy Lopez, também um padre ) é um belo estudo no qual Rei e Peão vencem Rei e Torre:
Estudo de Saavedra. Brancas jogam e ganham.
A sequência vencedora é: 1. c7 Td6+ 2. Rb5 Td5+ 3. Rb4 Td4+ 4. Rb3 Td3+ 5. Rc2 Td4! (um último recurso das negras) 6. c8 = T!! (não 6. c8 = D, pois seguiria 6. … Tc4+ 7. Dc4 e empate por afogamento do Rei negro) 6. … Ta4 7. Rb3 com ameaça de mate e da torre ao mesmo tempo.
As duas posições são, portanto, bastante distintas. A de Saavedra é indiscutivelmente famosa, a outra pede mais pesquisa, mas talvez ainda renda uma postagem aqui, afinal, derrotas de campeões mundiais sempre dão no que falar!
D. Byrne x R.J. Fischer New York, 1956 Posição após 17. Rf1
Meninos prodígio sempre chamam bastante atenção, seja na música, matemática ou xadrez. Em 1956, Robert James (Bobby) Fischer ainda era somente um garoto de 13 anos de idade quando começou a ser conhecido mundo afora por causa do seu talento enxadrístico. Donald Byrne foi campeão norte-americano em 1953 e mestre internacional de xadrez. Quando se sentou para enfrentar Fischer, o campeão juvenil norte-americano em 1956, Byrne dificilmente poderia imaginar a dimensão que aquela partida tomaria. A posição acima está prestes a revelar o ápice duma brilhante série de jogadas que se iniciou com 11. … Ca4!, a partir da qual já se escreveu: “As próximas 7 jogadas geraram uma das mais fantásticas sequências já registradas em toda a história do xadrez.” (J. Nunn e W.H. Cozens, em The king hunt, 1996).
A partir do diagrama, o ponto alto é a entrega da Dama com 17. … Be6!!. A Dama é uma peça tão poderosa no xadrez, que é sempre interessante ver quando ela é sacrificada. Principalmente quando a vitória do bando que oferta o sacrifício só vem muitos lances depois. Neste caso, Fischer trocou sua Dama por 2 Bispos, 1 Torre e 1 Peão, o que é materialmente suficiente para vencer, mas exige uma técnica apurada.
A mágica cena dum menino vencendo um experimentado mestre com tamanha técnica e visão, aliada à beleza dos lances, fez com que esta partida fosse rapidamente aclamada como ‘A partida do século’. Curiosamente, ela não aparece no famoso livro My 60 memorable games, a obra prima escrita por Fischer em 1969.
Uma linha interessante resultaria a partir do sacrifício da Dama, caso fosse recusado, pois poderia surgir um belo mate de Philidor em caso de 18. Bxe6? Db5 19. Bc4 Dxc4+ 20. Rg1 Ce2 21. Rf1 Cg3+ 22. Rg1 Df1+ 23. Txf1 Ce2#.
Toda a combinação que começa no 11º lance negro envolve o sacrifício de um cavalo em a4 (recusado), o sacrifício da qualidade em f8 (recusado) e, enfim, o sacrifício da Dama em b6 que, pela linha mostrada acima, o Branco foi forçado a aceitar.
A partida continuou por mais 24 lances. O menino Fischer não deu mais nenhuma chance. O mestre Byrne, talvez intuindo que naquele momento entrava para a história do xadrez (infelizmente da mesma forma que Kieseritzky), não exerceu seu direito de abandonar a partida e permitiu que ela seguisse até o mate com 41. … Tc2#.
L. Pachman x D. Bronstein Praga, 1946 Posição após 20. Td2.
“Uma partida que abriu uma nova página no desenvolvimento do pensamento enxadrístico” G. Kasparov
David Bronstein foi o mais humano dos grandes mestres, sem dúvida. Suas análises e ideias sobre o jogo vão além da busca árida por vitórias, mas pela beleza, pela alegria de explorar a vastidão das possibilidades do xadrez. Talvez tenha sido esse seu lado demasiado humano que o fez empatar o match pelo campeonato do mundo contra Botvinnik em 1951 – permanecendo, assim o título com este último. Tigran Petrossian resumiu assim a importância de Bronstein para o xadrez: “Os mais jovens podem pensar que o xadrez moderno começou com coisas como o Informador, mas os jogadores da minha geração sabem que começou com Bronstein”. A prova de que Petrossian não exagerou é que Bronstein é o autor do que talvez seja o mais influente livro sobre o jogo no século XX: Zurich International Chess Tournament, 1953.
Ludek Pachman foi um dos grandes mestres da elite mundial nos anos 50 e 60 (sendo inclusive um dos poucos a ter escore igual contra Bobby Fischer, +2 -2 = 4). Ficou conhecido para a grande maioria dos enxadristas como o autor de obras primas como Modern Chess Strategy.
A posição acima é uma das mais famosas de Bronstein e aconteceu durante o primeiro confronto entre estes dois grandes mestres. O resultado final foi tão avassalador para Pachman que ele jamais conseguiu derrotar Bronstein no restante de seus encontros ao longo dos anos (+0 -5 = 6, oúltimo em 1994)!
Bronstein mostra didaticamente como coordenar a ação concomitante das peças em determinadas casas do tabuleiro (a1, d4 e g3 principalmente), mesmo quando aparentemente as peças estão obstruídas por peças do adversário. O ataque se desenvolve nos dois lados do tabuleiro, ao mesmo tempo, com um só objetivo: matar o Rei branco!
A partida continuou assim: 20.… T×a1! Bronstein explica: “A única esperança branca repousa em seu Bispo de a1. Para demolir os cimentos da posição branca, as negras deveriam tomar o dito bispo com sua torre.” 21.T×a1 B×d4 22.T×d4 C×b3 23.T×d6 D×f2 24.Ta2 D×g3 25.Rh1 D×c3 26.Ta3 B×h3 27.T×b3 B×g2 28.R×g2 D×c4 29.Td4 De6 30.T×b7 Ta8 31.De2 h3+ e as brancas abandonam.
Frank Marshall foi o melhor enxadrista dos Estados Unidos da América no início do século XX e desafiante pelo título mundial contra Emanuel Lasker em 1907. Um jogador de ataque, considerado um dos últimos do antigo estilo romântico, que na época já vinha perdendo espaço para o xadrez mais científico. O que talvez tenha ofuscado um pouco a brilhante carreira de Marshall tenha sido o fato de ser contemporâneo de Capablanca, Lasker e Rubinstein, mesmo assim, ainda foi capaz de vitórias isoladas contra todos estes três gigantes do tabuleiro. Stepan Lewitsky foi um dos mais fortes mestres russos do período pré-soviético e tem seu nome na teoria enxadrística com o Ataque Lewitsky (1. d4 d5 2. Bg5). Porém, a exemplo de Kieseritzky, é mais lembrado por ter sido derrotado nesta partida de desfecho brilhante, jogada no torneio de Breslau em 1912.
A posição acima mostra o ponto crítico da partida, quando Marshall tem sua Dama e uma de suas Torres atacadas e aparentemente deve ceder material ao adversário. Mas o mestre norte americano surpreendeu a todos com uma jogada que poucos são capazes de sequer imaginar. Um lance que já foi chamado de brilhante e paradoxal, um caso de realismo fantástico aplicado ao Xadrez!
A partir do diagrama, as negras jogaram 23. … Dg3!!(alguns analistas já atribuíram !!! para este lance). A dama não pode ser tomada pelos peões por causa de ameaças de mate, por exemplo, se 24. fxg3?? Ce2+ 25. Rh1 Txf1#, ou se 24. hxg3?? Ce2#. As brancas poderiam seguir com 24. Dxg3 Ce2+ 25. Rh1 Cxg3+ 26. Rg1 Ce2+ 27. Rh1 Tc3 mas ficariam com uma peça a menos. Em face de suas pobres opções, as brancas abandonaram sem tentar nenhuma das continuações comentadas, o que ajudou a eternizar a posição final.
Posição final (0-1)
Existe uma lenda(confirmada pelo próprio Marshall) de que alguns dos presentes no salão de jogos teriam jogado moedas de ouro sobre a mesa, tamanha a euforia causada pelo sacrifício proibido da Dama frente aos peões brancos.
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