Xeque-mate no preconceito

O destino muitas vezes nos traz oportunidades inusitadas de provarmos a nós mesmos que somos menos sabidos do que imaginávamos.

A esta inexorável mecânica da vida, nem mesmo o inglês e Grande Mestre Internacional de Xadrez, Nigel Short, foi capaz de escapar.

Causou controvérsia, revolta e fúria um artigo publicado por Short, há alguns meses, no qual o GM dizia literalmente que o cérebro das mulheres era de tal modo construído que as tornava naturalmente menos aptas ao jogo de Xadrez que os homens. Antes deste desastroso artigo, Short era mais conhecido por ter sido o vice-campeão mundial do jogo em 1993, derrotado pelo lendário Kasparov.

Fico pensando o que teria levado um homem culto como ele a falar, ou melhor, escrever, tamanha bobagem. Talvez tenham sido as incontáveis horas desvendando a Abertura dos 4 Cavalos ou o Gioco Piano, que lhe diminuíram a capacidade para outros temas.

Os ânimos arrefeceram e o tempo passou, o assunto estava quase esquecido. Então, como que por mero acaso, foi dada à jovem GM indiana Harika Dronavalli, 12ª do ranking mundial feminino, a oportunidade de fazer Short engolir suas palavras.

Início da partida.
Short, visivelmente desconfortável,  podia estar pensando: “Eu e minha boca…”
(Fonte: Chessbase.com)

A partida aconteceu há poucos dias, na terceira rodada do Torneio Internacional de Gibraltar. Jogando com as peças pretas, o que dificulta um pouco a vitória, Dronavalli, magistralmente, forçou Short a inclinar seu Rei. Não sei se a jovem mestra indiana buscou algum tipo de revanche contra o falastrão inglês, mas o certo é que sua atuação foi impecável, com lances fortíssimos, como o da posição abaixo, que selou a partida.


Posição após 31. Dxd5 … . Pretas jogam e ganham.
No mesmo dia, as mestras Anna Muzychuk (Ucrânia) e Aleksandra Goryachkina (Rússia) também venceram convincentemente seus adversários do sexo oposto, apesar de ambos estarem mais bem colocados do que elas no ranking internacional.


Ao pensar no acontecido, lembrei da famosa frase do ex-campeão do mundo, Emanuel Lasker, “No tabuleiro, mentiras e hipocrisia não duram muito tempo”. Se faltava acrescentar algo a esta afirmação, a GM Harika e suas colegas certamente o fizeram, ao mostrar que nas 64 casas, não há espaço para o préconceito.

Campeonato Brasileiro de Xadrez – Final

Está em andamento a final do 82º Campeonato Brasileiro de Xadrez, sob organização da CBX. O torneio se realiza nas dependências do Clube de Xadrez Guanabara (mapa aqui).
Entre os 12 finalistas, temos 2 Grandes Mestres: Rafael Leitão e Krikor Mekhitarian, além de 5 MI´s e 4 MF´s. O único não titulado é Rafael de Souza, de Pernambuco, que vem com bom desempenho após 5 rodadas (Rp = 2408). O representante potiguar é o Mestre Internacional Iack Macedo, que está em sua sexta final de brasileiro.
Abaixo a tabela cruzada com classificação após 5 rodadas:


As partidas podem ser seguidas ao vivo pelo servidor Chessbase. Mais detalhes na página da CBX.

Será o fim dos livros de xadrez? (II)

Há alguns meses, escrevi aqui sobre o fim dos livros de xadrez. O mote foi a percepção que tive da escassez crescente de títulos sobre nosso amado jogo nas maiores, e menores, livrarias das cidades por onde tenho andado. Infelizmente, daquele texto para cá, a situação só piora.

Desta vez, acredito que o sinal de decadência é claro e irreversível. Vejam só o que descobri na seção de xadrez de uma grande livraria de um grande shopping da cidade do Rio de Janeiro:

Seção de xadrez numa das maiores redes do país.

Chegamos ao ponto de a seção de xadrez ser composta basicamente de livros sobre o jogo de Pocker (que tem atraído muito enxadristas, pelas similaridades analíticas e pelo potencial financeiro bem maior). Até aí, o susto estava moderado. Peguei, então, um dos poucos livros de xadrez na seção e me deparei com mais um disparate:

Um guia “definitivo” com dois erros grosseiros logo na capa.

Como pode a editora deixar passar uma capa dessas? Com dois erros crassos!? Uma que salta aos olhos: os cavalos e os bispos com a posição trocada (o outro erro, deixo como desafio ao leitor).

A desilusão estava grande, e fui caminhando para a saída da loja, onde estavam títulos com grande desconto, a maioria por R$ 9,90. Fiquei ali remexendo nos livros em oferta e tive a maior surpresa do dia:

 

Um clássico, jogado ali, entre as pechinchas.

O volume I da coleção predecessores do Kasparov (que, aliás, é o último dos grandes campeões do mundo cuja obra literária é digna de nota), em inglês (a original), em capa dura, ali, jogado no meio de livros sobre esoterismo e auto-ajuda. Um insulto sem tamanho! Lembro que, não tem nem um ano, eu vi o mesmo volume noutro local por mais de R$ 100.

Reduzida a indignação, fiz a única coisa decente para a ocasião: comprei o livro e saí limpando os pés na soleira da loja.

Ao Cavalo, com carinho

‘Saudades da Ilha de Lewis’. Foto de Rewbenio Frota


Uma vez, na casa de um tio avô, eu vi uma pecinha de madeira em forma de cavalo. Não era um cavalo inteiro, apenas cabeça e pescoço sobre uma base arredondada. Meu tio me explicou que era um Cavalo, uma peça de um jogo chamado Xadrez, que se movia formando um L. Não imaginava, mas eu acabava de conhecer a peça mais famosa do Xadrez, para muitos, como eu até uns cinco anos depois, a única que conhecem!


O Xadrez é composto por dois exércitos, cada um deles com seis tipos de peças. O Cavalo é só uma delas, não é a mais importante, nem a mais poderosa, mas é a mais conhecida.

Não é de se estranhar que seja assim, pois o cavalo é um símbolo bastante difundido em nossa cultura. Ele está presente em marcas de carros (Ferrari, Porsche, Mustang) na mitologia (unicórnios, cavalos alados, o Cavalo de Tróia etc), além de ser, talvez depois dos cachorros, o animal ao qual o ser humano mais se afeiçoa.

Apesar de sua forma e seu nome (na língua portuguesa), no Xadrez, a peça não representa um cavalo, mas sim um Cavaleiro. Alguns teóricos da origem do Xadrez, que derivou de um jogo chamado Chatrang ou Chaturanga, o que significaria o jogo das quatro partes, dos quatro ‘humores’ do homem, ou dos quatro elementos, associaram ao Cavalo o elemento água, pela fluidez de seu movimento.

O movimento de Cavalo (que descreve no tabuleiro um L da casa inicial à casa final) tem certas características que o tornam especial, por exemplo, ele pode saltar outras peças! O cavalo sempre pula de uma casa branca para uma casa preta, e essa alternância obrigatória de cores já virou o resultado de muitas partidas na história do jogo.

Muitas vezes, fico imaginando uma forma de explicar por que o Cavalo tem um movimento assim tão extravagante. Talvez seja porque um cavalo, ao trotar, toca patas alternadas no solo: dianteira direita e traseira esquerda, e vice-versa. Em seu “Libro del Acedrex“, Don Alfonso, o Sábio, explicou assim a causa do movimento do Cavalo:

“Os cavalos saltam movendo-se uma casa em linha reta e uma em diagonal (afastando-se da casa de origem). Tal como os bons oficiais que capitaneiam as linhas de combate dirigindo o cavalo para a direita e para a esquerda para defender os seus e vencer os inimigos.”

O movimento do Cavalo inspirou, por exemplo, um dos problemas mais famosos da matemática: O Passeio do Cavalo. Este problema é conhecido desde o século IX e consiste em encontrar uma forma de passar com o Cavalo por todas as casas do tabuleiro uma única vez a partir de qualquer casa inicial. Um problema que intrigou grandes matemáticos, dentre eles Leonhard Euler! Don Alfonso também menciona este problema, quando fala:

“O Cavalo tem mais vantagens que todas as outras peças, exceção feita à Torre*, pois quem souber bem jogar o Cavalo, poderá movê-lo de um canto do tabuleiro tomando peças em qualquer das outras 63 casas: tal é seu movimento que não falha em tomar.” *O livro de Don Alfonso é de 1283 D.C., portanto antes das alterações nos movimentos de Dama e Bispo (que eram limitados em quantidade de casas por jogada, já a Torre não tinha essa limitação).

Em seu livro, “O Xadrez na Idade Média” (de onde extraí as citações ao livro de Don Alfonso), do Prof. Luiz Jean Lauand, comenta a passagem acima com este tabuleiro onde se mostra uma solução para o problema do Passeio do Cavalo, adicionando uma interessante observação: “Na ilustração (abaixo) – extraída do 100 Classics…* – o cavalo pode mover-se sequencialmente também pelos números quadrados perfeitos (1,4, 9, …64) ou cubos perfeitos (1, 8, 27, 64).” *100 Classics of the Chessboard:


Passeio do Cavalo como um caminho por quadrados perfeitos
ou cubos perfeitos.

Apesar das vantagens citadas por Don Alfonso, por uma irônica questão geométrica, o Cavalo tem uma fraqueza, pois um rei e dois Cavalos atacando o rei adversário solitário não conseguem dar xeque-mate (exceto se o rei defensor ajudar muito). Antes do xeque-mate, ocorre uma situação conhecida como “afogamento”, que é quando um dos bandos não tem como fazer uma jogada válida e o seu rei não está em xeque.

Pesquisando em partidas magistrais nas quais os Cavalos foram decisivos, há casos curiosos. Por exemplo, o ex-campeão do Mundo Anand efetuou 13 jogadas seguidas com seus cavalos (talvez tentando resolver o problema do Passeio do Cavalo!). Noutra ocasião, o ex-campeão mundial Mikhail Tal efetuou 10 lances seguidos com o mesmo cavalo, numa partida contra Mikhail Botvinnik. Porém, a que mais me impressionou foi o desfecho duma partida de mais um ex-campeão mundial, talvez o maior deles, Garry Kasparov, que com 5 lances consecutivos do mesmo Cavalo, leva seu rival, Peter Leko, ao abandono da partida.


Que possam muitas outras crianças se encantar por este nobre jogo de Xadrez por causa desta amável e perigosa peça (como demonstrou Kasparov): nosso querido Cavalo.


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