Amizade de cores opostas

Amizade e xadrez

“Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. (…) Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade!” Nietzsche (A Gaia Ciência)

Entre os homens, a inimizade é mais antiga que a amizade, como podemos facilmente aferir nas primeiras páginas do Gênesis: a famosa história de Caim e Abel. Será a natureza humana? Essa é a maior razão para venerarmos ainda mais a amizade entre as pessoas!

Houve, uma vez, dois amigos que  se conheceram numa partida de xadrez.

Suas idades eram discrepantes, uma geração de diferença, mas o grande entusiamo pelo jogo, a salutar rivalidade no tabuleiro, as longas conversas sobre os melhores jogadores – um deles (o que jogava de forma mais agressiva) gostava do Karpov, o outro (um jogador mais posicional) venerava o Kasparov – foram transformando os dois em grandes amigos.

Quem nunca escutou dois enxadristas conversando sobre o jogo, não pode imaginar quanto assunto pode aparecer. Eles discutem se é melhor ter dois bispos ou dois cavalos, se devem mover o peão da dama uma ou duas casas na Defesa Siciliana, lembram antigas partidas, lamentam velhos erros, vangloriam-se de sacrifícios de peças e mates mirabolantes.

Aqueles dois amigos não fugiam à regra. Incontáveis vezes um chegava na casa do outro, começavam jogando umas partidas rápidas, de apenas cinco minutos para cada um no relógio. Depois, passavam ao assunto do dia, uma nova abertura que um queria aprender, o outro queria mostrar a última partida do Ivanchuck que vira no jornal de domingo.

Mesmo em esferas mais mundanas, como as namoradas, as metáforas de xadrez estavam todas lá: “tentei um avanço pelo flanco, mas ela defendeu”; “estava há dois lances do mate, mas os pais dela chegaram”.

Os anos, porém, vão colocando mais peças no tabuleiro da vida, as variantes vão-se complicando. Para um deles, chegou o tempo da universidade; o outro já estava trabalhando. A vida foi ficando mais complexa. As conversas mais escassas, o tempo mais curto.

Numa das últimas vezes em que se viram, começaram uma partida, mas não terminaram. Era uma posição de peão da dama. Ficaram de continuar depois. Falaram de alguns conhecidos, de marcar com a turma do xadrez. Desconcertados, ambos procuraram metáforas bem humoradas para aliviar o clima, mas todas pareciam esgotadas, peões que avançaram e não podiam voltar atrás.

Alguém que os observasse naquele momento doloroso teria a impressão de que amizade e inimizade são como as cores do tabuleiro: opostas, distintas, mas sempre lado a lado.

Se soubessem que nunca mais jogariam, que não mais se falariam, talvez tivessem se esforçado mais. Talvez tivessem jogado aquela derradeira partida até o final. Sem saber que era o fim, encerraram a amizade como se encerrassem uma partida, civilizadamente, com um frio aperto de mão.

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