Ao Cavalo, com carinho

‘Saudades da Ilha de Lewis’. Foto de Rewbenio Frota


Uma vez, na casa de um tio avô, eu vi uma pecinha de madeira em forma de cavalo. Não era um cavalo inteiro, apenas cabeça e pescoço sobre uma base arredondada. Meu tio me explicou que era um Cavalo, uma peça de um jogo chamado Xadrez, que se movia formando um L. Não imaginava, mas eu acabava de conhecer a peça mais famosa do Xadrez, para muitos, como eu até uns cinco anos depois, a única que conhecem!


O Xadrez é composto por dois exércitos, cada um deles com seis tipos de peças. O Cavalo é só uma delas, não é a mais importante, nem a mais poderosa, mas é a mais conhecida.

Não é de se estranhar que seja assim, pois o cavalo é um símbolo bastante difundido em nossa cultura. Ele está presente em marcas de carros (Ferrari, Porsche, Mustang) na mitologia (unicórnios, cavalos alados, o Cavalo de Tróia etc), além de ser, talvez depois dos cachorros, o animal ao qual o ser humano mais se afeiçoa.

Apesar de sua forma e seu nome (na língua portuguesa), no Xadrez, a peça não representa um cavalo, mas sim um Cavaleiro. Alguns teóricos da origem do Xadrez, que derivou de um jogo chamado Chatrang ou Chaturanga, o que significaria o jogo das quatro partes, dos quatro ‘humores’ do homem, ou dos quatro elementos, associaram ao Cavalo o elemento água, pela fluidez de seu movimento.

O movimento de Cavalo (que descreve no tabuleiro um L da casa inicial à casa final) tem certas características que o tornam especial, por exemplo, ele pode saltar outras peças! O cavalo sempre pula de uma casa branca para uma casa preta, e essa alternância obrigatória de cores já virou o resultado de muitas partidas na história do jogo.

Muitas vezes, fico imaginando uma forma de explicar por que o Cavalo tem um movimento assim tão extravagante. Talvez seja porque um cavalo, ao trotar, toca patas alternadas no solo: dianteira direita e traseira esquerda, e vice-versa. Em seu “Libro del Acedrex“, Don Alfonso, o Sábio, explicou assim a causa do movimento do Cavalo:

“Os cavalos saltam movendo-se uma casa em linha reta e uma em diagonal (afastando-se da casa de origem). Tal como os bons oficiais que capitaneiam as linhas de combate dirigindo o cavalo para a direita e para a esquerda para defender os seus e vencer os inimigos.”

O movimento do Cavalo inspirou, por exemplo, um dos problemas mais famosos da matemática: O Passeio do Cavalo. Este problema é conhecido desde o século IX e consiste em encontrar uma forma de passar com o Cavalo por todas as casas do tabuleiro uma única vez a partir de qualquer casa inicial. Um problema que intrigou grandes matemáticos, dentre eles Leonhard Euler! Don Alfonso também menciona este problema, quando fala:

“O Cavalo tem mais vantagens que todas as outras peças, exceção feita à Torre*, pois quem souber bem jogar o Cavalo, poderá movê-lo de um canto do tabuleiro tomando peças em qualquer das outras 63 casas: tal é seu movimento que não falha em tomar.” *O livro de Don Alfonso é de 1283 D.C., portanto antes das alterações nos movimentos de Dama e Bispo (que eram limitados em quantidade de casas por jogada, já a Torre não tinha essa limitação).

Em seu livro, “O Xadrez na Idade Média” (de onde extraí as citações ao livro de Don Alfonso), do Prof. Luiz Jean Lauand, comenta a passagem acima com este tabuleiro onde se mostra uma solução para o problema do Passeio do Cavalo, adicionando uma interessante observação: “Na ilustração (abaixo) – extraída do 100 Classics…* – o cavalo pode mover-se sequencialmente também pelos números quadrados perfeitos (1,4, 9, …64) ou cubos perfeitos (1, 8, 27, 64).” *100 Classics of the Chessboard:


Passeio do Cavalo como um caminho por quadrados perfeitos
ou cubos perfeitos.

Apesar das vantagens citadas por Don Alfonso, por uma irônica questão geométrica, o Cavalo tem uma fraqueza, pois um rei e dois Cavalos atacando o rei adversário solitário não conseguem dar xeque-mate (exceto se o rei defensor ajudar muito). Antes do xeque-mate, ocorre uma situação conhecida como “afogamento”, que é quando um dos bandos não tem como fazer uma jogada válida e o seu rei não está em xeque.

Pesquisando em partidas magistrais nas quais os Cavalos foram decisivos, há casos curiosos. Por exemplo, o ex-campeão do Mundo Anand efetuou 13 jogadas seguidas com seus cavalos (talvez tentando resolver o problema do Passeio do Cavalo!). Noutra ocasião, o ex-campeão mundial Mikhail Tal efetuou 10 lances seguidos com o mesmo cavalo, numa partida contra Mikhail Botvinnik. Porém, a que mais me impressionou foi o desfecho duma partida de mais um ex-campeão mundial, talvez o maior deles, Garry Kasparov, que com 5 lances consecutivos do mesmo Cavalo, leva seu rival, Peter Leko, ao abandono da partida.


Que possam muitas outras crianças se encantar por este nobre jogo de Xadrez por causa desta amável e perigosa peça (como demonstrou Kasparov): nosso querido Cavalo.


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3 comentários em “Ao Cavalo, com carinho”

  1. Concordo plenamente com o comentário anterior! A meu ver, é seu melhor texto! As conexões que você criou são lindas: Euler, matemática, cavalaria…É bonito, poético, simplesmente adorei mesmo! Sugiro até que você investigue com os nossos amigos da Cavalaria a essência desses saltos do cavalo. Não é à toa que estou insistindo tanto pelo texto com o movimento do Bispo. Adelante!

  2. Esse foi sem dúvida um dos posts mais interessantes sobre xadrez que eu li nos últimos tempos. Sem dúvida nenhuma, considero o Cavalo como a peça que mais possuí individualidade e elegância perante todo o elenco de peças poderosas que acompanham ele, incluindo a sempre citada Dama ou Torres, essencialmente mais poderosas, mas falhas em relação a muros que seu adversário vai impor (Há não ser que sendo um prodígio nos cálculos posicionais, as entregue deliberadamente por uma certeira vitória).

    Estava dando uma olha no "Passeio do Cavalo", eu nunca tinha ouvido sobre isso, o que me faz ver que preciso ler mais esse blog. Eu tenho um blog também, não essencialmente sobre xadrez, mas sempre que posso coloco partes de uma partida que eu acho interessante, como um diagrama que mostra Botvinnik derrotando Capablanca fazendo um belo sacrifício para ganhar uma posição memorável.

    Força e honra.

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